19 de Maio de 1923. No centro da primeira página do Diário de Lisboa desse dia aparece esta crónica assinada pelo jornalista Norberto de Araújo que se torna dificilmente desculpável pelos padrões actuais. Começa pela referência a um louvor que fora conferido ao jornalista e político Louis Derouet, como autor de um livro que relatava a viagem presidencial que, no ano anterior, o presidente António José de Almeida, fizera ao Brasil, por ocasião do centenário da independência daquele país. Mesmo que não conheça o conteúdo do livro, tenho a certeza que o seu autor não terá sido louvado por, para além dos discursos presidenciais e outros convencionalismos, o livro mencionar aquilo que de extraordinário se verificou naquela viagem: o completo fiasco que foi o facto do navio que transportava o presidente ter-se avariado sucessivamente em pleno Atlântico; tanto assim, que o presidente português estava ainda em pleno oceano no dia das cerimónias (7 de Setembro), tendo estas decorrido com a presença dos outros convidados solenes... excepto o português. Uma vergonha! Convenientemente abafada nos jornais da época e, constata-se aqui, também abafada em livro, com direito a louvor (e condecoração) governamental ao autor. Mas esta é apenas metade da vergonha. A outra metade da vergonha consta do resto da crónica, quando o seu autor se põe a pedir louvores idênticos para os cinco jornalistas (entre os quais, o próprio Norberto de Araújo...) que haviam acompanhado o voo atribuladíssimo de Gago Coutinho e Sacadura Cabral, que, passo a citar, «fizeram prodígios de jornalismo» (...) «não se limitando a narrar factos, mas, mais do que isso, atirando ideias, realizando diplomacia, renovando energias aparentemente mortas, criando esse ambiente dentro do país que tornou possível ao sr. ministro da Marinha assinar esse telegrama que é um título de honra do sr. Azevedo Coutinho: "Vai seguir outro Fairey"» Por tudo isso, por todo esse ânimo, Norberto de Araújo põe-se a jeito escancaradamente na primeira página do jornal onde escreve, para, também eles, receberem um louvor. Ou seja, não lhe parece mal que a propaganda seja agraciada. Sob o feito hiperbolado dos dois aviadores, volto a repetir o que já aqui havia escrito: entusiasmo aparte, a viagem demorou 70 dias; 114 anos antes, em 1808, o rei D. João VI demorara apenas 55. Sob o pedido de Norberto de Araújo, cito-o por uma última vez, no princípio do último parágrafo deste artigo deplorável: «Não devia ser eu talvez a escrever estas palavras». Pois não. Nem ele, nem ninguém.
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