14 julho 2009

SIM MAS NÃO

A actividade política é feita de palavras. De um jogo com o significado das palavras, cujo significado frequentemente se torna antagónico entre quem as profere e quem as escuta – é isso que confere uma validade semântica específica à expressão promessa eleitoral… Desde a Antiguidade que se coleccionam exemplos de afirmações políticas de significado múltiplo que, em muito poucas palavras, conseguem afirmar e infirmar a mesma coisa, verdadeiros prodígios da arquitectura gramatical, feita dos equilíbrios de que a actividade política também se faz.
Algumas das afirmações mais bonitas, porque mais escandalosamente habilidosas, têm sido injustamente esquecidas. A que quero destacar neste poste data de 1922, quando os fascistas italianos iniciaram a sua Marcha sobre Roma. A referida Marcha (acima), que se veio a concluir com a ascensão de Mussolini e dos fascistas ao poder, num processo que será incompreensível para quem não compreenda as idiossincrasias da política italiana(*), contou com uma oposição muito ténue da parte do governo liberal do Presidente do Conselho Luigi Facta (abaixo).
Surpreendentemente, a frase nem é da autoria do Presidente do Conselho, o político, mas antes do seu subordinado militar, o General Emanuel Pugliese(**). Quando este foi sondado pelo Presidente Facta quanto à lealdade das unidades de Roma e dos arredores e quanto à possibilidade destas desbaratarem os marchadores que se aproximavam da capital recebeu a seguinte resposta: Posso assegurar a V. Ex.ª que as unidades sob o meu comando permanecem leais mas seria de toda a conveniência política não testar essa lealdade
(*) – Quem, na actualidade, não compreende essas idiossincrasias da política italiana continua também sem perceber as razões que fazem com que Berlusconi, apesar de todos os escândalos que o rodeiam, seja eleito e reeleito em eleições livres.
(**) – Por curiosidade, refira-se que Pugliese era de ascendência judaica – um dos raros militares dessa confissão a atingir o generalato.

6 comentários:

  1. Pelo que me consta a oposição real à marcha foi quase nula por parte do sistema o que quer dizer que no fundo foi uma tomada de posse autorizada pelos "powers that be" - de certa forma até podia ser visto como a garantia de que caso as coisas não andassem muito bem todos teriam uma desculpa plausível já que afinal tinha existido uma "revolução".

    Já que falamos em exemplos da história também podíamos ir à Roma Republicana para perceber que muitas vezes a linha entre a promessa eleitoral e o suborno nu e cru é ténue e tende piorar com o acumular de desgaste do sistema...

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  2. Homem inteligente. O militar que não o político...

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  3. Isto é um blogue, Pedro Fontela, e um blogue lê-se num ecrã, num ritmo de leitura de ecrã, i.e. rápido, saltitante, de parágrafos empacotados.

    Sobre o primeiro tópico, gostaria apenas de lhe transmitir a minha impressão que o essencial da manobra fascista de 1922 foi a "conquista da rua", pela violência.

    A propósito disso, permita-me lembrar a ironia da leveza do emprego da expressão "anti-fascista" entre nós depois de 1974, e quanto ela deve ter significado em sacrifício (e ossos partidos...) na Itália de 1921-22.

    E sobre o segundo, gostaria apenas de deixar a reflexão que aquilo que ignoramos sobre a dinâmica política concreta da Roma Republicana é muito mais do que aquilo que dela sabemos. Os Gracos foram um fenómeno excepcional ou não?

    Mas que não fiquem dúvidas quanto às felicitações que lhe endereço, Pedro Fontela, pelas duas boas vias de desenvolvimento do tema do poste.

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  4. E com uma vocação para a escrita criativa, Donagata, atributo que os militares, reputadamente, não têm...

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  5. Caro A. Teixeira,
    Agradeço o elogio e se não se importar ainda me alongo mais um pouco nos dois temas (se me tornar aborrecido as minhas desculpas).


    Não sendo especialista no tema da ascensão do fascismo tenho as minhas dúvidas quanto a essa visão – não que ponha em causa a violência usada (para confirmar isso basta ver que apesar de não terem encontrado resistência à sua entrada em Roma os fascistas mataram 12 pessoas de forma gratuita) mas em última análise não foi isso que os colocou no poder, eles não o conquistaram, ele foi-lhes dado por serviços prestados e receios do futuro.
    Os grupos armados fascistas foram usados para destruir os movimentos comunistas, anarquistas e laborais que foram surgindo no pós guerra. As suas acções sempre tiveram o conluio do estado que os usou como arma não sabendo a dívida que podia estar a incorrer… As eleições em 1921 parecem ter tirado o fôlego popular ao fascismo já que os principais inimigos estavam fora de campo (e a sua razão de existir tinha desaparecido), sabendo que tinham sido usados e não estando dispostos a desaparecer no background os fascistas fizeram um buff gigantesco e montaram a tal marcha sobre Roma (30000 pessoas mal armadas que face a uma força militar teriam sido chacinadas ou mais provavelmente teriam simplesmente dispersado) querendo forçar o governo a ceder o lugar. O primeiro ministro Facta provou que era feito de outra fibra e não recuou tendo dado ordens para que houvesse uma repressão militar dos fascistas… o elemento que quebrou foi o rei e a clique à sua volta. Temendo pelo seu trono e tendo já um candidato ansioso por o substituir (o duque de Aosta, seu primo, que era um apoiante fascista) caso a defesa do governo falhasse ele escolheu o caminho fácil e não encontrou qualquer oposição por parte dos grandes poderes económicos e políticos da sua era (como poderia ter encontrado se eles próprios se vinham servindo dos fascistas há anos para se manterem no topo?). No fundo parecia ser uma boa solução para todos os envolvidos.
    Neste sentido a minha perspectiva sobre este tema parece ser um pouco oposta à sua :) mas sim a facilidade com que usam expressões como “fascismo” leva a menosprezar o fenómeno quando ele realmente surge (e já surgiu algumas vezes na memória recente) além de claro irritar profundamente ouvir pessoas a falar de batalhas que não foram as suas e sofrimentos que não os tocaram.

    O tema da Républica Romana (não sei o que se passa com Itália que parece um campo interminável de “case studies” de ciência política) é ainda mais espinhoso em termos de opiniões já que não se sabe a maior parte das coisas, andamos todos a colar fragmentos a ver se temos uma imagem mais ou menos nítida do que se andava a passar… terão sido caso isolado? Penso que terá havido alguns períodos tensos em termos das várias classes e “gentes” (no sentido clássico da palavra: clã, casta, etc) que foram sendo resolvidos com ampliações de direitos, expansão territorial, criação do ócio como modo de vida e pura repressão… não deixa de ser curioso que um sistema tão implacavelmente conservador na sua raiz tenha implementado um sistema republicano com algum grau de voto popular. Agora parece claro que para o fim dos dias da república as redes de patronos eram realmente um esquema de fraude organizada em larga escala em que se subornava com populismos variados ou quando havia fundos se compravam eleições – o facto de isto ser visto como ”normal” talvez já diga algo do estado do sistema político da altura.

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  6. Certa vez, houve um comentador deste blogue que, a propósito de um poste que aqui publiquei a respeito da história de um avião militar, colocou um comentário em que elogiava o poste e terminava-o considerando-se, a partir de então, um "expert".

    Já não tenho a certeza se alertei esse comentador que ninguém se especializa só por ler um poste, mas lembrei-me da história porque o Pedro Fontela parece situar-se precisamente "nos antípodas" dela.

    Para quem se apresentou previamente como um não especialista no tema do fascismo posso apenas dizer precavidamente que "então somos dois não especialistas" mas arriscamo-nos a entrar num debate que fará referência a acontecimentos que provavelmente 99% das pessoas que o lêem desconhecem...

    Quero que fique claro que as razões para não continuar o debate na caixa de comentários são perfeitamente sãs: acho que se tornam maçudas para todos os leitores que sejam "ligeiramente menos especialistas" que o Pedro Fontela.

    Mas, em querendo, estou à sua disposição e será mesmo com gosto (HerdeirodeAecio@hotmail.com) sustentar porque creio que a "conquista da rua" é o esteio nuclear da manobra fascista.

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