29 julho 2009

CONSTRUÇÃO

Chico Buarque compôs em 1971 esta Construção, um poema cantado evocando o enorme êxodo interno que o Brasil estava então a atravessar, com os muitos milhões das regiões rurais brasileiras a partirem em busca de emprego – muitas vezes na construção civil, daí o título da canção – nas grandes metrópoles de São Paulo, do Rio de Janeiro ou de Belo Horizonte.
30 anos depois de ter sido composta, um desses migrantes, vindo de Pernambuco para São Paulo em 1952 tornou-se Presidente da República, mas isso não marcou o fim da história bem ao jeito dum daqueles filmes de Hollywood. Os migrantes e seus descendentes constituem a maioria da população das favelas, de um Brasil urbano mas paralelo – o filme é outro.

Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou p´ra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou p´ra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou p´ra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contra-mão atrapalhando o sábado

Por esse pão p´ra comer, por esse chão p´ra dormir
A certidão p´ra nascer e a concessão p´ra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir,
Deus lhe pague
Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça e a desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair,
Deus lhe pague
Pela mulher carpideira p´ra nos louvar e cuspir
E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir,
Deus lhe pague

3 comentários:

  1. Fui dizer este poema no Instituto Multimédia 6ª feira à noite. Este e outros ilustrativos de músicas sul-americanas.
    Esta música foi depois dançada em ritmo de samba; um espectáculo!

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  2. Pelos vistos, o circuito cultural portuense continua a beneficiar-se com a presença de uma declamadora que, para além, de o declamar, parece andar apostada em ler toda a prosa de Chico Buarque e compartilhar connosco as suas impressões.

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  3. Também não tem muita prosa publicada. Portanto, não é difícil.Que eu conheça tem este e o Budapeste. Mas o que eu aprecio nele são as letras das músicas, a sua ironia, o seu modo fino de intervir...
    Lidas, dão poemas fortes, com alma, com humor, com crítica, com carisma...

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