Esta é a republicação de um poste originalmente publicado no Herdeiro de Aécio em 21 de Março de 2014, na sequência da crise que culminou com a ocupação da Crimeia pelos russos, poste esse que, historiando a questão sempre delicada das relações entre russos e ucranianos, as circunstâncias actuais terão tornado novamente interessante (re)considerar.
Uma das ironias mais interessantes da actual situação que confronta Rússia e Ucrânia é que o primórdio da História dos dois países é comum. Ou melhor: a História da Rússia começou na Ucrânia. O primeiro capítulo de A History of Russia c. 882 – 1996 de Paul Dukes é dedicado à construção e colapso de Kiev, 882 – 1240; também em Russia’s Empires de Philip Longworth o primeiro dos impérios russo é o de Kiev, c.850 – 1240. O primeiro capítulo deste segundo livro aborda até um tema pertinente, mas de discussão impertinente nos dias que correm: quem são os russos? Serão os ucranianos um subgrupo dos russos? Mas ultrapassemo-lo para começar a narrativa da fundação da cidade de Kiev (Kyiv em ucraniano) nas margens do rio Dniepre, na encruzilhada de duas rotas comerciais: uma terrestre que ligava de Leste para Oeste a Europa e a Ásia Centrais, a outra fluvial e na época muito mais importante, de Sul para Norte, conectando o mar Báltico e o mar Negro e, através deste, a grandiosa metrópole de Constantinopla, a capital do Império Romano.
As elites desse primeiro estado russo terão vindo de Norte, da Escandinávia, numa época em que, como vikings, os povos nórdicos atravessaram uma verdadeira explosão populacional que os fez instalarem-se por quase toda a Europa. Mas as principais influências culturais vinham do Sul. O ano de 988 é considerado o ano da adopção do cristianismo como religião oficial pela corte de Kiev – compare-se com datas simbólicas semelhantes para a Polónia (966) ou a Hungria (1000). Porém, ao contrário destes dois casos, o rito adoptado em Kiev é o Ortodoxo e a subordinação é ao Patriarca de Constantinopla, em vez do Papa. É a expansão deste estado conectando Kiev num eixo de Sul para Norte até à cidade mercantil de Novgorod (veja-se o mapa acima) que lhe confere o carácter pan-eslavo que o torna o antepassado daquilo que seria uma ideia mais vasta transcendendo o que seria apenas os primórdios da nacionalidade ucraniana. Esse estado foi-se expandindo e fraccionando em unidades menores autónomas ao longo dos Séculos XI e XII, até à data inequívoca do seu colapso final, a da conquista e o saque de Kiev pelos mongóis em 1240.
Os centros de poder mudaram-se com ela. A Ocidente haviam sobrado da conquista mongol os principados da Galícia e da Volínia, em breve fundidos num só reino e também numa complexa relação de hostilidade política mas aproximação cultural com os reinos católicos adjacentes da Polónia e da Hungria. A Nordeste, uma miríade de principados genuinamente russos começava a recompor-se dos efeitos do tsunami mongol e a evoluir paulatinamente para a concentração à volta de Moscovo como centro do primeiro estado genuína e especificamente russo. Mas foi de Noroeste que vieram os próximos senhores da Ucrânia: em 1362, Kiev foi conquistada, passando a fazer parte de um grão-ducado da Lituânia que estava em vias de se tornar territorialmente num dos maiores estados europeus (acima). Em 1386, esse grão-ducado reuniu-se ainda num regime de união pessoal com o reino da Polónia. Durante quase 200 anos a unidade dessa associação de coroas permaneceu frágil, à mercê das vontades dos nobres polacos, onde a escolha do rei se processava por eleição. Era um estado extensíssimo, mas frágil por falta de uma metrópole central: note-se no mapa abaixo o rosário de cidades importantes mas todas periféricas, sem capacidade de assumir a preeminência, desde Vilnius no Norte, a capital da Lituânia propriamente dita e depois, no sentido horário, Smolensk, Kiev, Lvov, Cracóvia e Varsóvia.
Finalmente, em 1569 deu-se a formalização da União dos dois estados, num figurino que iria durar outros 200 anos, embora a solução tenha sido alcançada à custa de uma supremacia da metade polaca (e católica) sobre as restantes nacionalidades. No entanto, reconheça-se que o ressurgimento económico de Kiev data dessa época da segunda metade do Século XVI. É nessa altura que a palavra Ucrânia (que quer dizer região fronteiriça) começa a ser empregue, que a nobreza ucraniana, que era originalmente lituana, se torna polaca por aculturação, e que uma identidade verdadeiramente ucraniana se começa a forjar com o aparecimento dos cossacos. Cossaco é uma palavra que tem uma interpretação fluida: há quem o considere um grupo étnico, há quem o considere sobretudo um modo de vida. Tratava-se originalmente de servos que abandonavam as suas regiões de origem para se irem instalar para lá do Dniepre, terras ainda por desbravar e que, por isso, estavam fora do alcance das autoridades tradicionais. Essas sociedades que aí se formavam eram predominantemente masculinas, violentas, permitiam ascensões sociais abruptas e eram também ferozmente ortodoxas, nem que fosse para acentuar o contraste com o catolicismo polaco do status quo que haviam abandonado. Os cossacos costumam ser frequentemente comparadas aos cow-boys do Oeste norte-americano embora tivessem ainda sobre eles a possibilidade adicional de se tornarem mercenários.
Em 1648, um desses generais mercenários, Bohdan Khmelnytskyi (1595-1657), desencadeou uma revolta bem-sucedida contra o poder lituano-polaco no fim da qual (1654) conseguiu obter o reconhecimento de uma autonomia para um estado cossaco na Ucrânia a Leste do Dniepre englobando a própria cidade de Kiev. O mapa acima mostra-nos a área desse estado autónomo. Mas note-se como, tratando-se da fronteira da civilização de então, quase todo o terço oriental da Ucrânia moderna, incluindo até a cidade de Kharkov (Kharkiv em ucraniano, cidade que só virá a ser fundada em 1656), ainda não faz parte dessa civilização. Ora, no Portugal contemporâneo já se havia dado a Restauração (1640) e era a última dinastia da sua História que ocupava já o trono. As inúmeras análises que se lêem actualmente sobre a Ucrânia tendem a esquecer esse aspecto: a sua relativa juventude quando comparada com os espaços da velha Europa. Para o que interessa, Khmelnytskyi transformou-se num herói da história ucraniana… mas também da história russa: as necessidades da política internacional obrigaram-no, para que a secessão tivesse sucesso, a trocar a suserania polaco-lituana pela dos russos de Moscovo. Em contrapartida, o tratamento histórico dado ao seu sucessor Ivan Mazepa (1639-1709) já não será assim tão consensual, porque ele tentou inflectir a política de associação com a Rússia, coligando-se com os seus inimigos suecos. Infelizmente para ele, o tsar Pedro o Grande venceu a decisiva batalha de Poltava em 1709. Os cossacos da Ucrânia Oriental perderam quase todos os seus direitos especiais. E 84 anos mais tarde, nas partições da Polónia de 1793 e 1795 (abaixo), a Rússia conseguia anexar quase toda a Ucrânia Ocidental, com excepção da Galícia (com a cidade de Lvov, rebaptizada de Lemberg), que coube à Áustria.
Apresentando-se repartida por dois Impérios multiculturais, a Ucrânia desaparece da História política por 200 anos para conseguir ressurgir no Século XIX através da sua identidade cultural. A questão é que existiam dois pólos que a dinamizavam, através da literatura e da poesia: Kiev na Rússia e Lvov na Áustria. Havia muito a distingui-los: o passado histórico, que fazia com que a religião predominante na Galícia fosse o greco-catolicismo (ortodoxos, mas integrados na hierarquia da igreja católica romana) enquanto a religião maioritária do resto dos ucranianos era a ortodoxa tradicional (sedeada em Moscovo); mas também o presente político, dividindo para reinar, os austríacos incitavam o nacionalismo ucraniano para que ele servisse de contrapeso ao polaco, os russos, pelo seu lado, reprimiam-no brutalmente, o ucraniano e o polaco. Entre 1876 e 1906 proibiu-se na Rússia a impressão de obras escritas em ucraniano. Eram publicadas em Lvov. A relação entre as duas metrópoles da cultura ucraniana faz lembrar, ainda hoje, a de dois irmãos que não desenvolveram grande intimidade entre si. Mas note-se a ausência nesta equação de cidades importantes situadas na Ucrânia, como a já acima referida Kharkov ou então Odessa, fundada em 1794 por decreto de Catarina II, uma cidade portuária de formação cosmopolita (teve até o duque de Richelieu por um dos seus primeiros governadores), situada nas costas do mar Negro. Em 1917, Odessa era a quarta maior cidade do Império e a maior da Ucrânia, mas era uma cidade imperial, mais russa que ucraniana.
O colapso dos Impérios russo em 1917 e austro-húngaro em 1918 constituiu uma oportunidade impar para que os nacionalistas obtivessem a independência da Ucrânia. A fotografia acima é de Janeiro de 1919, foi tirada em Kiev, uma manifestação celebrando a proclamação da união da antiga Ucrânia russa com a Ucrânia ocidental que fora austríaca. As ameaças à existência desta Ucrânia eram, porém, poderosas. Não apenas as duas facções russas (vermelhos e brancos) que se digladiavam na guerra civil pelo domínio do Império e que recolhiam significativas simpatias entre os ucranianos de concepção pan-eslava, mas também as aspirações nacionalistas de uma Polónia entretanto renascida, disposta a recuperar territórios da Ucrânia ocidental que haviam sido seus 125 anos antes. Em 1925, a Ucrânia estava de novo dividida por uma nova fronteira que se assemelhava muito à de 1914, só que a Galícia e a Volínia (com Lvov) estavam agora sob tutela polaca (abaixo). Agora era do lado russo que havia uma maior tolerância para a cultura ucraniana – embora a capital da república socialista soviética da Ucrânia até 1934 tivesse sido Kharkov! – enquanto a repressão cultural se fazia sentir mais vincadamente a Ocidente, com os polacos a procurar assimilar culturalmente os ucranianos. Porém, para além dos aspectos culturais, a administração soviética da Ucrânia tornou-se responsável por uma palavra específica, cunhada para acontecimentos que só se tornaram verdadeiramente conhecidos de há uns 25 anos para cá: Holodomor. É sinónimo de uma fome generalizada e deliberadamente provocada, consequência directa do processo de colectivização das terras agrícolas e que terá custado a vida a vários milhões nos princípios da década de 1930, sob Staline.
Foi em consequência disso que, durante a Segunda Guerra Mundial e especialmente depois da invasão da União Soviética pela Alemanha em 1941, os nacionalistas ucranianos começaram por acolher favoravelmente os invasores alemães até se aperceberem que eles não passavam de um terceiro partido num gigantesco embate de titãs, pouco atreitos às subtilezas de quem estava de permeio. Acabaram por ser aliados de uns e outros (alemães e soviéticos) assim como também os combateram. Serão poucos os que sabem que um dos principais generais soviéticos a ter combatido na Ucrânia, Nikolai Vatutin (1901-1944), morreu em consequência dos ferimentos causados por uma emboscada montada por guerrilheiros ucranianos; serão poucos os que sabem que vários anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial ainda havia uma guerrilha nacionalista activa que obrigava à mobilização de vários milhares de homens do KGB. Mas a verdade é que não foi apenas por culpa dos soviéticos que os nacionalismos dos povos constituintes da União Soviética (é também o caso dos povos bálticos) desapareceram da agenda mediática nos 45 anos que se seguiram ao fim da guerra. Os Estados Unidos também os consideraram causas nacionais desinteressantes, demasiado expostas e com poucas possibilidades de sucesso, situadas muito para além das fronteiras de segurança que os soviéticos haviam traçado em Ialta – nomeadamente a cortina de ferro. Mas não nos antecipemos…
A Ucrânia terá sido uma das repúblicas da União Soviética mais severamente devastada pelo conflito de 1941-45. Depois da guerra recuperou as duas províncias ocidentais que haviam pertencido à Polónia. O processo foi também acompanhado de uma importante migração de populações: mais de um milhão de polacos foram transferidos para Ocidente, um número substancialmente inferior de ucranianos atravessaram a fronteira no sentido inverso. A Ucrânia era a segunda república mais importante da União, a seguir à própria Rússia e a política oficial era de que tudo corria pelo melhor na relação entre elas (acima, um cartaz de propaganda a esse respeito). É claro que nem sempre era bem assim: em 1972, Leonid Brejnev afastara o primeiro secretário do partido comunista ucraniano Petro Shelest, acusado de nacionalismo e substituído por um Vladimir Shcherbytsky de muito mais confiança. Tanta, que ele ainda por lá estava, no mesmo cargo, em 1989… Nesse mesmo ano realizou-se aliás o último censo soviético. Segundo ele, 72% da população da Ucrânia era classificada como ucraniana, enquanto 22% era russa, concentrada sobretudo nas províncias (oblast) orientais e meridionais (abaixo). Mas tratava-se de uma daquelas imagens convenientes, típicas da lógica soviética de mostrar aquilo que se deseja (uma nacionalidade maioritária dentro da sua própria república), e não aquilo que já então deveria existir e que se mostra no mapa final, resultado do censo realizado em 2001: há uma apreciável proporção de ucranianos que se exprimem em russo e que constituem, com os russos propriamente ditos, um bloco sociológico (e também político) que tem um peso demográfico (e também eleitoral) muito semelhante ao dos ucranianos que se exprimem em ucraniano (mais abaixo).
Podem-se ver nesta ligação alguns exemplos da coincidência entre a distribuição geográfica das votações de diversos actos eleitorais e estes mapas etno-linguísticos. Pode dizer-se que na Ucrânia coexistem dois eixos ligando cidades importantes: há um, cultural, no sentido Leste-Oeste que liga Kiev a Lvov (azul), cidades a que aqui várias vezes nos referimos ao longo desta sintética História da Ucrânia; há outro, económico, de Nordeste para Sudoeste, unindo Kharkov com Odessa (vermelho), cidades que foram muito menos referidas. O que é muito mais difícil será perceber como se pode conectar um eixo com o outro… e manter a unidade da Ucrânia sem que uma das metades tenha a sensação que está a ser dominada pela outra. Trata-se de um país dividido e será uma evidência dizer que não se devem propor propostas de divisão de um país de ânimo leve. Mas também é verdade que não se pode excluir tal hipótese e que houve várias razões circunstanciais que levaram as potências a decidirem-se pela divisão de um país: fosse por 20 anos (o Vietname), por 70 anos (e ainda a contar: caso da Coreia) ou mesmo sem fim à vista (a Índia e o Paquistão). Mas permitam-me agora regressar à cortina de ferro que deixámos em suspenso lá em cima e evocar o exemplo da Alemanha, com uma sociedade aparentemente muito mais cimentada do que aquilo que acontecerá na Ucrânia, que também permaneceu dividida por 45 anos devido às tais circunstâncias. Vale a pena essa referência para nos apercebermos do quanto as fronteiras de segurança da Rússia recuaram neste últimos 25 anos, quando a criação de um estado satélite quase no centro da Europa (Alemanha Democrática) é agora substituída pela hipótese de um seu equivalente (Ucrânia oriental) na sua vizinhança imediata. Esta última observação não é para o leitor ter pena dos russos, é para que se perceba que os norte-americanos não andam nisto para lhes facilitar a vida.
Muito bem. Excelente texto. E muito atual.LS.
ResponderEliminarFev. 2002, finalmente encontro um resumo curo mas bem feito da estória deste sítio longínquo e complicado.
ResponderEliminarMuito obrigado!