06 maio 2013

JOSÉ DIOGO E O LATIFUNDIÁRIO COLUMBANO

A história já foi contada inúmeras vezes, existe mesmo um indispensável documentário a seu respeito, mas vale a pena repetir os detalhes da história da agressão que foi cometida por um camponês de Castro Verde de 36 anos chamado José Diogo Luís no dia 30 de Setembro de 1974 sobre um proprietário rural de 78 anos chamado Columbano Líbano Monteiro. A vítima fora esfaqueada depois de uma discussão entre os dois, tendo vindo a falecer das complicações dos ferimentos duas semanas depois. Teria sido uma história que se circunscreveria ao universo informativo dos antecessores do Correio da Manhã (jornal que ainda não existia, só apareceu em 1979), não se tivesse dado o caso de, dois dias antes dos acontecimentos, a 28 de Setembro de 1974, Portugal ter entrado no curso de um processo revolucionário
O repórter dessa tal hipotética reportagem (que não chegou a existir submersa no entusiasmo revolucionário que veio a propiciar uma das tragicomédias menos conhecidas do PREC) decerto descobriria que o defunto não parecia ser pessoa bem quista porque prepotente e conflituosa. Mais do que isso, Columbano Monteiro fora uma das figuras gradas na região do regime que fora derrubado cinco meses antes, em 25 de Abril de 1974. Em contraponto, o assassino era uma pessoa humilde, um pobre diabo, com mulher e três filhos a cargo. Não é difícil adivinhar como seriam os contornos da reportagem ou a cobertura noticiosa do seu julgamento, francamente simpática para com o réu que, mesmo assim, não se escaparia de uma pena de prisão. Mas tudo se tornou ridículo quando se quis misturar este pathos com o logos revolucionário.
Vale a pena ir ver a síntese da história que aparece na página da Wikipédia referente ao tal documentário, intitulado Liberdade Para José Diogo. Pelo título deduz-se logo o posicionamento do realizador (Luís Galvão Teles) mas é a redacção do artigo que é uma verdadeira peça de museu, a preservar, em genuína linguagem do PREC. Nela se leem passagens preciosas, descrevendo o espírito da uma época em que a sede de justiça se junta à sede de vingança, coisas inseparáveis perante a premência de derrotar de vez o fascismo ou então A velha Justiça vê-se a contas com o poder popular, o PREC não permitirá que ela se faça. (…) José Diogo (…) É julgado em tribunal popular. É absolvido e o patrão, depois de morto, acaba condenado. Descobre-se que a justiça nova não pretende ser cega, nem se pretende esquecer das condições sociais dos intervenientes num crime civil: ao longo da audiência o morto foi sempre tratado por Latifundiário Columbano.
Torna-se difícil compreender hoje as causas para tal ódio rábico por alguém que não passava de um velho de 78 anos, improvável protagonista de um contra-ataque do fascismo. Para comparação, seria difícil encontrar alguém que tivesse uma imagem pública mais detestável do que o sul-africano Eugène Terre’Blanche (1941-2010), o dirigente do movimento radical defensor da supremacia branca AWB, também agricultor e também assassinado por um dos seus empregados. Numa África do Sul que se considera hoje impermeável às questões da raça (mas não graças a ele…), e por muito que a personalidade do assassinado fosse desagradável, houve lugar ao julgamento dos dois suspeitos, culminando na condenação de um deles. Em Portugal, à originalidade de já ter tido uma rainha que fora coroada depois de morta, adicionou-se, graças ao pioneirismo do PREC, a de um assassinado que acaba por sair condenado do julgamento popular do seu assassino…

É verdade que os membros da geração que protagonizou o PREC se agarram à tendência de minimizar os disparates que então fizeram, sem qualquer tipo de contrição, como se tudo o que aconteceu não tivesse passado de um gigantesco Carnaval em que, como diz o ditado (também popular como era a justiça...), não seria para levar a mal. Um exemplo dessa atitude pode apreciar-se na apresentação que Luís Galvão Teles fez recentemente (Janeiro de 2013) de mais uma exibição do seu documentário na Cinemateca. Apreciando-o com distanciamento, o episódio será mais digno de comiseração do que propriamente de reprovação: teremos ali um grupo de nostálgicos que não se adivinha muito grande e que se dispõe a passar uma hora a matar saudades sem qualquer capacidade de distanciamento crítico – muito menos autocrítico – sobre o que acontece na tela.
Mais importante do que esse revivalismo inócuo é apontarem-se os responsáveis da fundamentação teórica da tal de justiça popular que culminou na absolvição de José Diogo Luís e na condenação a título póstumo do Latifundiário Columbano, sentença que foi promovida veementemente na época - como se constata no próprio documentário - por uma figura hoje imerecidamente obscura da sociedade chamada Amadeu Lopes Sabino. Entre os milhentos absurdos do PREC, este foi o género de argumentação que foi conceptualmente um dos mais perigosos porque atacava os alicerces sociais, ao relativizar o valor das vidas humanas em função da classe social da vítima. E intelectuais – que hoje estão transformados em ponderados burgueses – como o (adequada e simetricamente baptizado) Justiceiro Amadeu teriam já então obrigação de conhecer da História as consequências daquilo que então promoviam. Terá sido com aquela mesma massa que, por aquela mesma época, se construíram aberrações como a do Camboja...
(Cartaz soviético de 1930 a respeito dos kulaks)

1 comentário:

  1. Columbano Líbano Monteiro, que nome tão curioso. Faz-me lembrar dois Líbanos Monteiros que já por aí encontrei (um deles com nome próprio Cristina, o outro, do sexo masculino, já não me recordo), figuras destacadas da direita tradicionalista católica. Aqueles dois apelidos acoplados ficaram-me na memória, agora compreendo a sua origem.

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