O filme Gandhi inclui a cena marcante acima em que o protagonista é despejado sem qualquer dignidade de um comboio por insistir em viajar na 1º classe para a qual comprara o respectivo bilhete. A cena passar-se-á em 1893 na África do Sul e está cheio daquelas simplificações que ajudam a narrativa cinematográfica, incluindo o empregado negro admirado com a ousadia de Gandhi, o revisor bóer impermeável à argumentação, o passageiro snob ultrajado por aquela companhia. Na realidade, Gandhi ainda não estava autorizado a praticar advocacia na África do Sul (isso só viria a acontecer um ano depois), não há a certeza que Gandhi tenha sido atirado violentamente para o cais e, mais importante, quando reclamou, a companhia indemnizou-o com um bilhete para prosseguir a viagem no comboio seguinte… em 1ª classe.
Mas aquilo que não é óbvio no episódio e apenas se deduz dele, nomeadamente quando Gandhi reclama dizendo que viaja sempre em 1ª classe, é que aparentemente ele não se mostrará contrário a que haja uma estratificação social (não fossem as castas uma das marcas identificativas da sociedade indiana…), a injustiça que verdadeiramente o ferirá é a impossibilidade de lhe reconhecerem estatuto para exibir a sua distinção (apesar do seu fato ocidental…) e isso acontece apenas por uma questão de discriminação racial. Ora é esta combinação entre o entusiasmo pela cultura britânica e a ingenuidade perante os valores profundos dessa mesma cultura que melhor servirá de metáfora sobre o que considero ter sido o comportamento político adoptado pelas elites indianas antes e durante a Primeira Guerra Mundial.
Embora se pudessem identificar pelo menos duas facções entre os dirigentes do Congresso Nacional Indiano, com Gokhale a encabeçar a mais moderada e Tilak a mais radical, a mediana das atitudes do conjunto investiu no apoio a uma colaboração sem reservas com o Império durante a Primeira Guerra Mundial na espectativa de uma retribuição no fim: a autonomia, conhecida por Home Rule no idioma dos governantes, Swaraj no hindi dos governados. A espectativa não parecia descabida. Várias outras colónias britânicas haviam alcançado já esse estatuto, e eram agora conhecidos por Domínios. O Canadá em 1867, a Austrália em 1900, a Nova Zelândia e a Terranova em 1907, a África do Sul em 1910. Também a Irlanda se batia por ela e vi-la-ia a alcançar em 1922, embora por meios menos pacíficos…
As propostas de reforma apresentadas pelos britânicos em 1919, embora contivessem elementos de representação democrática, concedendo, por exemplo, o direito de voto a seis milhões e meio de indianos, o que equivaleria a cerca de 10% da população adulta masculina indiana à época, continuavam porém a concentrar o poder executivo nas mãos de um aparelho de funcionários que gravitava à volta dos Vice-reis britânicos que continuavam a ser nomeados por Londres – abaixo, dois deles, Lorde Reading (1921-26), à esquerda, e Lorde Willingdon (1931-36). Os indianos sentiram-se (creio eu que justamente) defraudados: não se tratava de um problema de direito de voto – na África do Sul só a minoria branca o tinha – era sobretudo uma questão de posse e exercício do poder – o 1º ministro sul-africano era Jan Smuts, um bóer não britânico...
A insatisfação indiana chocou-se com a intransigência britânica. As propostas que os segundos foram apresentando nos vinte anos seguintes apareciam desactualizadas pela radicalização das posições. Em 1937 o eleitorado indiano já contemplava trinta milhões de pessoas com direito a voto mas, em contraste, em 1939 o Vice-rei fez a Índia declarar guerra à Alemanha sem sequer ter consultado os dirigentes políticos indianos. Foi uma época em que, copiando Gandhi, os dirigentes já não se vestiam à ocidental (com excepções, como Mohammad Ali Jinnah). Os britânicos, para enfraquecer a oposição com que se defrontavam tentaram (e conseguiram) cindir o bloco nacionalista que os defrontava em linhas religiosas. O processo que conduziria à dolorosa independência da Índia (e do Paquistão) em 1947 estava lançado...
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