27 novembro 2022

DARLAN E A “GLÓRIA EM TOULON!”

27 de Novembro de 1942. O octogésimo aniversário do auto afundamento da frota francesa em Toulon é pretexto para a recuperação de um texto a esse respeito, publicado originalmente em 2006.
Qualquer descrição geoestratégica apresentará França e Alemanha como potências continentais por contraponto a um Reino Unido como potência marítima. A realidade é muito menos binária: mesmo à vista desarmada, os cerca de 1.600 km de costas francesas, quando medidos em linhas rectas grosseiras (Mancha e Mar do Norte 600, Atlântico 400, Mediterrâneo 600) quase que duplicam a extensão das costas alemãs medidas da mesma forma. Dentro dos exemplos europeus, a França será o caso que mais se aproxima de uma potência híbrida, tanto militar como naval, muito embora os pergaminhos históricos dos seus exércitos superem de muito longe os feitos das suas armadas. Mesmo assim, na relação histórica mais moderna entre os dois ramos das forças armadas francesas nunca se notou a predominância gozada noutros países, por exemplo pelo exército alemão ou pela marinha britânica em relação ao outro ramo. Essa rivalidade que se veio solidificando enquanto, a partir do século XVIII, a França se vai transformando num estado moderno, também se transpôs para a leitura das ameaças à soberania francesa. Cada ramo adquiriu o seu inimigo de estimação: para o Exército era a Alemanha e para a Marinha era o Reino Unido. Por causa das vicissitudes da História, em Junho de 1940, era preciso remontar a 1856 e à Guerra da Crimeia para testemunhar a Marinha francesa empenhada numa grande acção militar. Todo este percurso pode servir para desculpar um pouco o discurso descabido da Marinha francesa, a começar pelo do topo da sua hierarquia, quando, a propósito da assinatura do Armistício com a Alemanha em Junho de 1940, se arrogou a gloríola de que o seu ramo não havia sido derrotado pelos alemães no conflito que havia terminado com a referida assinatura. Como se não fossem evidentes naquele momento as fraquezas da França – contra as quais a sua Marinha nada podia fazer! Uma das cláusulas do Armistício assinado incidia precisamente sobre a frota francesa que teria de permanecer neutral no conflito que continuava. Era um ponto de honra francês que assim fosse, a que os alemães naturalmente cederam porque não era sua intenção virem a precisar dela: as operações conducentes à invasão da Grã-Bretanha nunca foram implementadas em profundidade. Em contrapartida, apenas a sua existência e o seu potencial emprego contra si - à distância de uma coacção alemã mais forte sobre o novo governo francês - tornavam-na muito desconfortável para os britânicos. Em 5 de Julho de 1940, em Mers-el-Kébir, uma base naval francesa na Argélia, houve um daqueles episódios da Segunda Guerra Mundial que as duas partes envolvidas estão de acordo que não vale a pena recordar. Apresentou-se ao largo uma frota britânica com um ultimato para o comandante da parte da frota francesa ali fundeada. O Almirante francês deparava-se com várias hipóteses, desde zarpar para portos britânicos até mudarem-se para portos franceses nas Antilhas, onde ficariam sob supervisão norte-americana (neutros, naquela altura). A resposta negativa francesa também é compreensível: os alemães poderiam ali ter o pretexto para denunciar o Armistício recém assinado e apoderarem-se dos navios fundeados nos portos da França metropolitana, nomeadamente os mais importantes da base naval de Toulon, no Mediterrâneo. No recontro naval que se seguiu, todos os navios franceses ficaram fora de combate, tendo sido mortos 1.300 marinheiros franceses, e acirrando ainda mais, se isso for possível, o ódio institucional do ramo contra os britânicos. Naquele momento, a Marinha francesa era comandada pelo Almirante Darlan, um almirante político que não tardará a fazer a sua carreira singrar até se tornar no nº 2 do regime francês saído do Armistício de Junho de 1940, à frente do qual emergia o Marechal Pétain, e a que se convencionou designar por Regime de Vichy. E é esse delfim do Marechal que se encontrava por acaso na Argélia, quando os norte-americanos - entretanto entrados na guerra em Dezembro de 1941 - ali desembarcam em 7 de Novembro de 1942. Vichy permanecera neutral no conflito e os americanos haviam previamente tentado encontrar uma solução política e militar para o problema francês na pessoa do General Giraud que se revelara, mesmo em cima da hora, um verdadeiro fiasco. A presença em Argel do Almirante Darlan ofereceu-lhes um interlocutor que tinha tanto de valioso quanto de inesperado. Foi ele quem deu ordem de cessar-fogo às forças franceses que defendiam o território contra os invasores e foi ele quem deu ordem à frota de Toulon para se lhes juntar em Argel. É um sinal do prestígio que este almirante político gozava junto dos seus homólogos de convés o facto de, do total da frota, apenas 4 submarinos tivessem obedecido às suas ordens para se juntarem aos aliados. Todos os restantes navios – 3 couraçados, 1 porta hidroaviões, 7 cruzadores, 16 contratorpedeiros, 13 torpedeiros, 15 submarinos, além de outros navios menores – auto-destruíram-se e afundaram-se no porto para evitar a sua captura pelos alemães que aproveitaram o gesto e a ocasião para denunciarem as cláusulas do Armistício que lhes desagradavam. Os jornais aliados deram ao relato e por razões de propaganda óbvia o título Glória em Toulon! É um exagero ridículo a que não escapa a ironia adicional de que a participação na Segunda Guerra Mundial da famosa frota que não fora derrotada pelos alemães se limitara a um gigantesco acto de imolação colectiva. E, ironia das ironias, menos de um mês passado sobre o suicídio da frota, o comandante a quem ela não obedecera também tinha sido assassinado…

3 comentários:

  1. Ao contrário da frota italiana (prevista para exibições mais ou menos conseguidas) a frota francesa até poderia ter tido um peso relativo na 2.ª Guerra Mundial.
    Creio que o grande problema dos franceses é não saberem, ainda hoje, de onde sopra o vento, o que, para a Marinha, é crucial!!!

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  2. Terá sido esse, porventura, o episódio que inspirou o jogo conhecido por "batalha naval" cujo primeiro lance foi um tiro no Porta Hidroaviões.
    Estive há três semanas em Toulon e não encontrei vestígios do suicídio da frota que faz lembrar o suicídio das baleias.
    A verdade é que não passei pelo porto, embora o conheça, de outras andanças, outras marés...

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  3. impaciente:

    No Teatro de Operações (TO) europeu, onde não chegou a haver qualquer disputa séria à supremacia naval anglo-americana a contribuição francesa na luta anti-submarina teria sido periférica para o desfecho final.

    Agora no TO asiático e mesmo sem uma grande componente aeronaval, os efeitos políticos de uma recuperação da soberania francesa sobre o seu império da Indochina em 1945, baseado na frota que foi ao fundo em 1942, poderia ter lançado o problema vietnamita numas outras bases.

    paciente:

    Dizem os relatos que o combustível derramado foi tanto que deixou o porto interdito a banhos por mais de dois anos...

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