Em 1944, durante o último ano da Segunda Guerra Mundial na frente da Europa ocidental, os soldados britânicos inventaram uma máxima espirituosa a propósito do apoio táctico que os combatentes recebiam das suas próprias forças aéreas: quando é a Luftwaffe alemã a voar por cima de nós, somos nós que nos agachamos (we duck); quando é a RAF britânica a voar por cima deles, são os alemães que têm de se agachar (they duck); mas, quando aparecem os americanos da USAAF, aí toda a gente tem de se agachar (everyone ducks). A máxima é inventiva, mas nem por isso verdadeira: houve centenas de episódios daquele género e também a RAF teve a sua quota parte de sucessos no bombardeamento de tropas próprias e aliadas. Mas adiante. O que me importa chamar a atenção naquela máxima militar é, como acontecia reputacionalmente com a aviação americana, o carácter ecléctico na distribuição de estragos por toda a gente, inimigos e amigos conjuntamente.
Eclectismo que vem a propósito quando desta publicação de um vingativo livro de memórias por parte do antigo governador do Banco de Portugal, Carlos Costa. Entendamo-nos: eu gosto desse género de memórias em que se ajustam contas com os protagonistas do passado do autor. O mais antigo e mais famoso exemplo desse género de memórias sacanas que eu conheço são as de Talleyrand, em cinco volumes, publicadas, sob expressa condição do autor, apenas 20 anos depois da sua morte (1838) e em que são descritos (de forma muito cínica) uma ampla galeria de protagonistas dos sucessivos regimes que Talleyrand serviu: Antigo Regime, República, Império (e Napoleão!), Restauração e Orleães. As memórias de Talleyrand, como as bombas dos bombardeiros da USAAF, não parecem poupar ninguém. Se o livro fosse bom, a assistência que eu soube que esteve presente na cerimónia de lançamento das memórias de Carlos Costa não teria sido a que foi.
Só para dar um exemplo cristalino, e mesmo sem ter lido o livro, só pela presença do próprio Cavaco Silva na cerimónia, fico com imensas dúvidas que este episódio acima tenha constado nestas Memórias de Carlos Costa, tanto mais que Cavaco Silva fez questão de frisar que diz o que diz (o BES colapsou dias depois!) porque o governador (Carlos Costa) o informou disso. Guarde-se para o fim esclarecer o que é também muito importante: com tudo o que eu disse até agora não pretendo deflectir as atenções das acusações que Carlos Costa faz a António Costa, mas pretendo chamar a atenção para aquilo que lá não aparece. Porque é para mim límpido que, se as Memórias de Carlos Costa não fossem selectivas, então, por tudo o que se viu vir a acontecer com o BPN, o BES ou o Banif, as suas historietas seriam eclécticas, muito mais merda para contar, e eu não vejo toda a gente a agachar-se... Afinal parece-me que Carlos Costa guardou muito vinagre em casa.
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