09 fevereiro 2006

DAR A MÃO À PALMATÓRIA

Esta é daquelas expressões que empregamos no português coloquial corrente sem nos apercebermos das razões da preferência do seu emprego em relação às alternativas. Assim a expressão ir a Canossa é demasiado erudita, o verbo penitenciar tem um cunho religioso que pode ser excessivo e pôr o baraço ao pescoço, como fez Egas Moniz, confere uma solenidade ao gesto que pode ser despropositada.

Assim, em vez de confessar o nosso engano, contornamos a confissão dando a mão à palmatória, como se a mão, esticada, pudesse ser um pouco distinta de nós, e assim minorasse em parte a nossa responsabilidade (ou a nossa ingenuidade) pelo engano. A mão é que apanha, não somos nós.

E em que é que há que dar a mão a palmatória? Uma das consequências deste episódio das manifestações dos muçulmanos radicais a propósito dos cartoons publicados no jornal dinamarquês foi o de enterrar uma certa ideia de que havia uma terceira via, europeia, mais compreensiva e cosmopolita, de lidar com a conflituosidade entre os Estados Unidos e o Islão radical.

Entre um Bush abrolho e desastrado e o radicalismo islâmico que, entre nós, evitava ter uma cara – teria de ser Ossama e não é muito curial ter como símbolo alguém que organiza operações suicidas – a nossa concepção do posicionamento correcto face ao conflito é a de alguém que compreende por igual o extremismo das duas posições.

É evidente que o que agora percebemos como equívoco só se manteve por causa da estrondosa falta de jeito da Administração Bush em cativar opiniões públicas fora dos Estados Unidos. A sua máquina de propaganda, tendo sido um sucesso dentro de casa – Bush foi reeleito – passou a um grande fiasco logo a um metro depois da vedação das fronteiras americanas.

Nas batalhas do softpower, onde se procura ganhar a simpatia da assistência, o radicalismo islâmico só precisou de andar calado e de beneficiar da simpatia natural que se ganha por ser o pequeno que defronta o grande.

Até se chegar aos episódios dos atentados de Madrid, de Londres, do desenvolvimento do armamento nuclear iraniano ou da reacção aos cartoons do jornal dinamarquês. A propósito do penúltimo, ligeiramente menos mediatizado, assistiu-se há dois meses ao anúncio por parte do, até então, cosmopolita e compreensivo presidente francês, da possibilidade do recurso ao armamento nuclear como forma de dissuasão.

Mas foram as manifestações em reacção aos cartoons que, como uma pedra largada de grande altura, fizeram a água transbordar do copo. O islamismo, tal qual é interpretado pelos radicais, não é simpático e tem opiniões sobre tudo e em todo o Mundo; agradece a nossa bonomia, mas não a retribui. Quanto aos radicais, eles bem sabem onde podemos meter as nossas declarações universais e documentação correlacionada.

É sempre triste ter feito figura de otário. Será pior para aqueles que se destacaram por ser das esquerdas plurais, multiculturais, diferentes, que já perderam imenso espaço de manobra, com os discursos do passado, para poderem inflectir sem confessar terem feito uma grande figura de otários.

Entretanto, como fez Fernando Rosas do Bloco de Esquerda num artigo do Público de 8 de Fevereiro, a propósito do Irão, assobiam e fingem que nada se passa, nem nada mudou, em elaboradas estruturas argumentativas. Exemplifica-se usando as vogais em ordem inversa, o designado UOIEA: um otário invocando estúpidos argumentos *.

Mas o mais aborrecido de tudo, para além de se sentir otário, é ser tratado por otário, com aconteceu com a famosa nota a propósito deste assunto, emitida pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros…

* “Até agora não foi apresentada qualquer prova que o Irão esteja a mentir” – como o que está em causa é uma intenção (a do Irão possuir armamento nuclear), a mentira só pode efectivamente ser comprovada com a existência de uma arma atómica iraniana – o que é precisamente aquilo que se pretende impedir…