01 agosto 2017

TODA A DIFERENÇA QUE UM CORRESPONDENTE PODE FAZER

Ontem à noite, o programa 360º da RTP3 contou com a presença simultânea dos correspondentes daquela estação em Moscovo e Washington. O assunto a discutir era a tensão crescente entre os dois países, com as sanções económicas norte-americanas a serem respondidas, em retaliação, pela decisão russa de expulsar 755 funcionários diplomáticos até ao final deste mês. A intervenção dos correspondentes – especialmente a de Márcia Rodrigues de Washington - viu-se entretanto embrulhada com a notícia entretanto aparecida da inesperada demissão do director de comunicação da Casa Branca que fora nomeado há apenas semana e meia para aquele cargo. Mas creio que não foi a diferença da agenda dos assuntos a tratar a verdadeira razão responsável pelo contraste qualitativo das intervenções dos dois correspondentes. Enquanto Evgueni Mouravitch tentou distanciar-se do discurso oficial e interpretar de fora quais serão as intenções de Vladimir Putin e do Kremlin em plena escalada de atitudes hostis entre os dois países, a intervenção de Márcia Rodrigues continha passagens, sem qualquer tratamento crítico, do que poderia passar muito bem por ser a tese como a Casa Branca estava a tentar explicar o mais benignamente possível a reversão de uma decisão que fora tomada apenas há 10 dias:

«...Donald Trump apercebeu-se finalmente de que tem uma situação de caos generalizado dentro do governo. De tal maneira, que foi chamar o homem que estava na segurança interna, este general Kelly para pôr ordem na casa. Donald Trump é um homem que confia muito nos generais, e isso tem a ver com a própria história pessoal do presidente, que foi colocado pelo pai num colégio militar e desde aí ele confia piamente nos generais para resolverem determinado tipo de problemas. É uma coisa que tem a ver com a sua própria psicologia. Ele foi portanto chamar este general, um homem de grande credibilidade e um general que colocou condições, dizendo que, em primeiro lugar, para tomar conta do governo,... porque é ele que vai coordenar todos os ministros e todos os conselheiros, eles têm de para de reportar directamente a Donald Trump e têm que passar por este general. Vai ser ele que vai estipular a agenda, vais ser ele que vai dizer quem é que pode bater à porta da sala oval, para falar directamente com o presidente, porque nesta altura toda a gente bate à porta da sala oval, toda a gente entra, uns queixam-se dos outros, e portanto o clima passou a ser absolutamente insustentável. Donald Trump, segundo sabemos, e a própria Casa Branca está neste momento a dar um “briefing” onde já explicou isso, Donald Trump deu autoridade total a este general para reorganizar a forma como funciona o governo, para disciplinar os membros deste governo. Ora a única questão que falta perceber é se o general vai conseguir disciplinar o próprio presidente
Pode ser visto nesta ligação, a partir dos 24 minutos. Mau grado o remate cauteloso, a explicação de Márcia Rodrigues assemelha-se a uma verdadeira história da carochinha: É evidente que a Casa Branca não é um internato de rapazes nem um general é para servir de vigilante porque a rapaziada se tem andado a portar mal. Seis meses de episódios recorrentes de indisciplina e improvisação têm mostrado que o elemento charneira de todo esse caos é o próprio presidente. E se ele não se autodisciplinar – algo que o tal colégio militar para onde o pai o enviou não terá conseguido fazer... – então tudo continuará na mesma. Se a correspondente em Washington da RTP não consegue concluir isto, ou não o quer assumir nas suas reportagens e se limita a traduzir para português uma fábula que foi produzida pela Casa Branca («...confia piamente nos generais para resolverem determinado tipo de problemas.»), então Márcia Rodrigues não está lá a fazer nada. E isso ontem foi ainda mais óbvio quando a sua intervenção pôde ser confrontada com a de Evgueni Mouravitch. Este último justifica que se mantenha um jornalista in situ a produzir análise e opinião; porém, esquecendo o novo-riquismo de exibir as ligações via satélite, trabalhos como este da primeira podiam ser perfeitamente realizados em Lisboa.

Diga-se que este assunto de disputar o acesso ao presidente é comum a todas as administrações, é um assunto que tem tanto de antigo quanto de controverso mas costuma ficar rapidamente resolvido, embora não a contento de todos. Vale a pena contar aqui, só para amostra do que Márcia Rodrigues poderia investigar, aprender e ensinar-nos já que está em Washington, o caso da dupla Bob Haldeman/John Ehrlichman (abaixo), quando da presidência de Richard Nixon (1969-74). Haldeman era o chefe de gabinete do presidente (o cargo ocupado desde há dias pelo disciplinador John F. Kelly) e os restantes membros do staff da Casa Branca deram à dupla a alcunha sarcástica de «Muro de Berlim»: por causa dos dois apelidos de sonoridade germânica combinados com a sua capacidade de bloquear aos outros membros do staff presidencial o acesso ao presidente. Ao contrário de quase todos os outros que ocuparam as mesmas funções e que as desempenharam de forma discreta, Haldeman e Ehrlichman tornaram-se famosos mas por terem sido ambos sacrificados quando do encobrimento que se seguiu ao Caso Watergate (claro que eles sabiam de tudo!). E, como facilmente se deduzirá, a maioria do staff da Casa Branca não estava propriamente triste quando isso aconteceu, em Abril de 1973. Quase todos os que rodeavam Richard Nixon detestavam Bob Haldeman, que se qualificava a si próprio como «the president's son-of-a-bitch». É o figurino que se espera agora do general Kelly? Esta era uma abordagem mais pedagógica quanto à descrição do ambiente de rivalidades que pode rodear um presidente mas sobretudo mais interessante de que aquela coisa a dar para o infantil das carências geradas pela frequência de um colégio militar...

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