Esta fotografia foi tirada quando da visita de João Paulo II à Nicarágua em Março de 1983, onde, na época, estava no poder um governo da esquerda revolucionária que derrubara violentamente em 1979 uma ditadura militar ao arrepio do status quo estabelecido pelos norte-americanos para a região. A hostilidade era portanto recíproca entre visitante e anfitriões. E, quando dos cumprimentos de boas-vindas, ainda na placa do aeroporto, João Paulo II teve oportunidade de marcar a sua posição diante do ministro da Cultura do regime sandinista, o padre Ernesto Cardenal que foi visivelmente admoestado quando, de joelhos, o cumprimentava. Conforme as partes, são várias as versões sobre aquilo que o papa terá dito ao sacerdote a acompanhar aquele dedo em riste mas algum consenso se gerou em volta de: Usted tiene que arreglar sus asuntos com la Iglesia. A hierarquia católica (no topo da qual se encontrava João Paulo II) havia exercido pressão sobre Ernesto Cardenal (e não só, Miguel d'Escoto, o ministro dos Estrangeiros também era sacerdote) para que abandonasse(m) o governo sandinista. Eles recusaram-se. Quase um ano depois da fotografia acima, em Fevereiro de 1984 e perante o impasse, eles e mais dois sacerdotes que desempenhavam funções governamentais (um dos quais era o irmão mais novo de Cardenal, Fernando) foram suspensos ad divinis. Antes de prosseguir, deixem-me deixar bem claro que, mesmo parecendo o mau desta história, considero que a razão nesta disputa pertence inteiramente a João Paulo II. Por detrás dos padres suspensos formara-se um bloco e uma aparência de facção teológica denominada Teologia da Libertação. Ora a Igreja Católica sempre foi uma organização fortemente hierarquizada e não é aceitável que alguém queira fazer parte do seu clero ao mesmo tempo que se quer furtar a essa contingência. Coisa outra porém é a coerência da conduta das hierarquias católicas quanto ao engajamento dos seus sacerdotes em causas políticas. Há as que não são aceitáveis, caso dos sandinistas com Cardenal, e depois há as outras, em que o que é de César e o que é de Deus se mistura galhardamente, de que um dos exemplos mais excessivos (já aqui o recordei num poste) terá sido o de Jozef Tiso, que se tornou no presidente e, mais do que isso, foi a personificação da Eslováquia independente durante os anos de 1939-45 em que o país teve esse estatuto devido ao beneplácito alemão. Apesar de executado em 1947 por colaboracionismo pelas autoridades checoslovacas, quanto ao magistério sacerdotal de Jozef Tiso não terá havido recriminações públicas (de Pio XII) nem suspensões ad divinis...
Trata-se de um preâmbulo explicativo da razão porque tal episódio e tal fotografia me ocorreram, quando me depararei há umas semanas com o artigo de opinião com a apresentação acima, publicado no (entretanto encerrado) jornal i. O título pode ser lido como um apelo ao papa Francisco mas o subtítulo acaba por se tornar uma censura à sua conduta e a continuação do artigo - que recomendo a leitura - ainda é menos equívoco nas críticas, ao enunciar nomeadamente aqueles que foram os bons pontífices, antecessores do actual: Ninguém nega a importância de Eisenhower e Pio XII, ou Reagan e João Paulo II, no combate ao comunismo enquanto ameaça ao Cristianismo e ao mundo Livre. Em contrapartida, o texto é omisso quanto à importância de João XXIII ou de Paulo VI; quiçá andavam entretidos, em vez do combate ao comunismo, com as minudências do Concílio Vaticano II. A autora de tal prosa chama-se Graça Canto Moniz, descobri ser uma jovem mestre em Direito de 26 anos, aplicada (até leu a encíclica Laudato Si...) e que ali se mostra segura de nos conseguir fazer distinguir aquilo que é de índole espiritual do que é de índole política. Assim, combater o comunismo inserir-se-á no primeiro caso, enquanto enaltecer virtudes como a humildade e, sobretudo, a pobreza, serão gestos de um cunho político vincado, subversivas mesmo. Cheguei a mencionar que a Graça é, desde 2013, militante do CDS-PP?... Mas deixem-me confessar-vos o que mais me intriga neste disparatado artigo de opinião, para além de ser indisputavelmente provocador. Foi o critério editorial que levou a promover uma aleivosia daquelas. Se fosse amigo de teses conspirativas poderia imaginar que o mérito das opiniões da Graça, confessando-se católica, seria o de estar protegida pelo braço comprido de organizações católicas ultra-conservadoras de que a Opus Dei é apenas o exemplo mais conhecido. Para algumas dessas organizações, pelo seu silêncio ensurdecedor, já se percebeu que a eleição do papa argentino no mesmo ano em que a Graça se filiou no PP foi, apesar da iluminação do Espírito Santo, um terrível erro de casting. Nomeadamente por causa de alguns das suas decisões mais políticas, como aquela que, em Agosto de 2014, derrogou a sanção que João Paulo II havia imposto espiritualmente 30 anos antes aos quatro padres nicaraguenses, incluindo Cardenal, tão severamente admoestado na fotografia inicial.
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