Começando por falar em livros compósitos, um dos grandes clássicos da nossa literatura portuguesa é assim: Viagens na Minha Terra. Almeida Garrett propõe-se no início do livro fazer uma viagem por Portugal para o descrever, depois demora dez capítulos a chegar a Santarém e, provavelmente embevecido pela figura da Joaninha de olhos verdes, deixa-se ficar por lá o resto do livro… Há em Viagens na Minha Terra duas histórias que praticamente não têm nada a ver uma com a outra e a juntá-las há um título enganador. Não se tratando rigorosamente do mesmo fenómeno (o título do livro de que quero falar é mais descritivo além de adequado ao conteúdo) e (creio eu...) sem pretensões a tornar-se um clássico da literatura, algo de muito semelhante acontece com Elites Militares e a Guerra de África de Manuel Godinho Rebocho (acima). Vale a pena falar com algum detalhe deste livro, porque o seu autor tem a pretensão de, com ele, ter produzido doutrina (veja-se o vídeo abaixo, com o trecho final da sua apresentação).
Percebe-se que a primeira parte do livro (as Elites Militares) terão feito parte de uma tese de doutoramento do autor – suponho que em Sociologia. O estudo das origens sociais dos oficiais do exército que abraçaram a carreira das armas entre 1900 e 1975 resulta muito interessante, um trabalho que julgo será pioneiro, pelo menos assim funcionará para quem não é especialista, como é o meu caso. Claro que haverá pormenores que despertam a nossa atenção pela negativa, como a contradição de não atribuir relevância estatística a uma diferença de 8,7% no topo da página (128) para depois, numa análise idêntica, atribuir significado a uma diferença de 4,6% no sopé dessa mesma página; ou fazer menção a 800.000 portugueses que terão cumprido o serviço militar nas colónias entre 1961 e 75, número que estará francamente inflacionado em relação à realidade (serão 450 a 500 mil), como eu já aqui havia explicado num poste deste blogue. Mas convém realçar que qualquer destes dois exemplos são pormenores de somenos importância, daquelas questões benignas que surgem numa normal arguição de uma tese como esta, função para a qual de resto, devido ao tema e ao grau (doutoramento), nem estaria, nem me sentiria habilitado.
O que não consegui perceber foi se a segunda parte do livro (intitulada a Guerra de África, um exagero como veremos adiante) também faria parte originalmente da tese de doutoramento do autor, ou se foi um acrescento baseado na experiência pessoal do autor como combatente nas tropas pára-quedistas na Guiné. Ao dispersar-se por dois temas com uma ligação tão frágil (como a chegada a Santarém e a Joaninha do Vale de Santarém…), ficou-me a questão se, com este livro compósito, se pretende atingir um objectivo (a análise sociológica das elites militares) ou dois objectivos (o anterior e também avaliar o comportamento destas nas guerras de África), ou se o verdadeiro objectivo será o de usar a primeira parte do mesmo para conferir respeitabilidade académica às teses muito mais polémicas que são apresentadas na segunda parte. De uma forma mais metafórica, e concebendo o livro como uma funda, perguntar-me-ia se as Elites Militares não serão a corda e a baladeira de onde o pedregulho de a Guerra de África é atirada ao alvo? Porque este livro, ao recorrer a exemplos, também criou alvos…
Analisando essa segunda parte, e começando pelo (meio) título, o de Guerra de África devia ser substituído por Guerra da Guiné, porque apenas é referido aquele Teatro de Operações, e melhor teria sido Guerra na Guiné, porque, pela forma como é abordada, nem sequer poderia existir a pretensão do autor em a descrever de forma cabal. Pela leitura, fica-se a saber que o autor cumpriu outra comissão em Angola mas a ela não se refere. É curioso, porque a evocação da sua experiência angolana contribuiria certamente para alargar a perspectiva do desempenho dos oficiais dessas elites militares para os quais ele se mostra agora tão crítico nesta outra fase do livro. Em contraste com o tratamento sistemático e estatístico que usou na primeira parte, as opiniões que agora defende sustenta-as em exemplos. Mas, mais do que à meia dúzia de exemplos pontuais do desempenho de capitães a que recorre (onde ressalta logo à vista o caso de Vasco Lourenço, saiba-se lá porquê…), o autor poderia ter feito uma investigação mais abrangente sobre o assunto, tanto mais que a tese que defende é tão controversa como, recorrendo a esta metodologia limitada, inconsequente: trata-se da frequente mediocridade dos oficiais profissionais quando em comparação com os milicianos.
Por exemplo, e este é um simples levantamento feito por mim para demonstrar o que Manuel Godinho Rebocho deveria ter feito, podia adiantar que a 1 de Janeiro de 1973, havia 783 capitães do Quadro nas três armas combatentes (infantaria, artilharia e cavalaria), dos quais havia 325 ocupando colocações no quadro metropolitano (67% de um total de 486 colocações disponíveis) enquanto 454 estavam na situação de adidos – ou seja, na sua esmagadora maioria, colocados no que então se designava por Ultramar. Quanto ao Quadro Especial de Oficiais, que acabara de abrir, tinha então apenas 51 capitães. E isto foi um levantamento que fiz em meia hora…
Aqueles números que usei, explorados mais a fundo e devidamente tratados resultariam numa imagem global mais sólida sobre a carência e a alocação dos oficiais do quadro (donde, segundo o autor do livro, eles sairiam privilegiados), além de outros indicadores que poderiam dar mais indicações sobre a sua qualidade relativa (o número de louvores e de condecorações será uma sugestão...). Era um trabalho que teria sido interessante e mais consistente para sustentar a doutrina de que o Doutor Rebocho se vangloria…
Por outro lado, e numa lógica ainda mais abrangente, deveria ter estudado para comparação, 1) o desempenho de outras elites portuguesas durante esse mesmo período - é o caso da dos médicos ou da dos advogados, para aferir da qualidade das elites militares no nosso contexto nacional; e 2) o desempenho de outras elites militares de outros países atravessando situações similares – estou a lembrar-me do caso mais flagrante da França e da Guerra da Argélia, para aferir dessa qualidade num contexto internacional. Se, em conclusão dessas comparações, se continuasse a advogar a mediocridade do desempenho de muitos dos membros das elites militares durante o período das Guerras de África, então essa conclusão imporia muito mais respeito... Vá lá, talvez se tratasse mesmo de doutrina...
Do ponto de vista metodológico e centífico a segunda metade do livro nada tem a ver com a primeira. É paupérrima. Ajuda a essa impressão decepcionante a sua redutora perspectiva de sargento que confere à escolha, por exemplo, do capítulo com o seu exemplo paradigmático: a Companhia de Caçadores Pára-Quedistas 123. Temos direito a descrições de técnicas de combate e emboscada de pequenas unidades de infantaria em que o autor se excedia. Temos direito a descrições de guerras de vontades entre o sargento veterano e o subalterno novato em que o autor vencia e impunha a sua. Seria a guerra, mas nivelada pelos horizontes do Sargento Rebocho... Mas ao Doutor Rebocho, que pretende passar por produzir doutrina, já se exige que nem seja preciso explicar como esses são aspectos acessórios para se alcançar a vitória numa guerra subversiva…
Na verdade, muito do que consta da segunda parte do livro é indigna de um Doutor Rebocho; parece ser apenas o Sargento Rebocho ajustando contas com o seu passado…
O que não consegui perceber foi se a segunda parte do livro (intitulada a Guerra de África, um exagero como veremos adiante) também faria parte originalmente da tese de doutoramento do autor, ou se foi um acrescento baseado na experiência pessoal do autor como combatente nas tropas pára-quedistas na Guiné. Ao dispersar-se por dois temas com uma ligação tão frágil (como a chegada a Santarém e a Joaninha do Vale de Santarém…), ficou-me a questão se, com este livro compósito, se pretende atingir um objectivo (a análise sociológica das elites militares) ou dois objectivos (o anterior e também avaliar o comportamento destas nas guerras de África), ou se o verdadeiro objectivo será o de usar a primeira parte do mesmo para conferir respeitabilidade académica às teses muito mais polémicas que são apresentadas na segunda parte. De uma forma mais metafórica, e concebendo o livro como uma funda, perguntar-me-ia se as Elites Militares não serão a corda e a baladeira de onde o pedregulho de a Guerra de África é atirada ao alvo? Porque este livro, ao recorrer a exemplos, também criou alvos…
Analisando essa segunda parte, e começando pelo (meio) título, o de Guerra de África devia ser substituído por Guerra da Guiné, porque apenas é referido aquele Teatro de Operações, e melhor teria sido Guerra na Guiné, porque, pela forma como é abordada, nem sequer poderia existir a pretensão do autor em a descrever de forma cabal. Pela leitura, fica-se a saber que o autor cumpriu outra comissão em Angola mas a ela não se refere. É curioso, porque a evocação da sua experiência angolana contribuiria certamente para alargar a perspectiva do desempenho dos oficiais dessas elites militares para os quais ele se mostra agora tão crítico nesta outra fase do livro. Em contraste com o tratamento sistemático e estatístico que usou na primeira parte, as opiniões que agora defende sustenta-as em exemplos. Mas, mais do que à meia dúzia de exemplos pontuais do desempenho de capitães a que recorre (onde ressalta logo à vista o caso de Vasco Lourenço, saiba-se lá porquê…), o autor poderia ter feito uma investigação mais abrangente sobre o assunto, tanto mais que a tese que defende é tão controversa como, recorrendo a esta metodologia limitada, inconsequente: trata-se da frequente mediocridade dos oficiais profissionais quando em comparação com os milicianos.
Por exemplo, e este é um simples levantamento feito por mim para demonstrar o que Manuel Godinho Rebocho deveria ter feito, podia adiantar que a 1 de Janeiro de 1973, havia 783 capitães do Quadro nas três armas combatentes (infantaria, artilharia e cavalaria), dos quais havia 325 ocupando colocações no quadro metropolitano (67% de um total de 486 colocações disponíveis) enquanto 454 estavam na situação de adidos – ou seja, na sua esmagadora maioria, colocados no que então se designava por Ultramar. Quanto ao Quadro Especial de Oficiais, que acabara de abrir, tinha então apenas 51 capitães. E isto foi um levantamento que fiz em meia hora…
Aqueles números que usei, explorados mais a fundo e devidamente tratados resultariam numa imagem global mais sólida sobre a carência e a alocação dos oficiais do quadro (donde, segundo o autor do livro, eles sairiam privilegiados), além de outros indicadores que poderiam dar mais indicações sobre a sua qualidade relativa (o número de louvores e de condecorações será uma sugestão...). Era um trabalho que teria sido interessante e mais consistente para sustentar a doutrina de que o Doutor Rebocho se vangloria…
Por outro lado, e numa lógica ainda mais abrangente, deveria ter estudado para comparação, 1) o desempenho de outras elites portuguesas durante esse mesmo período - é o caso da dos médicos ou da dos advogados, para aferir da qualidade das elites militares no nosso contexto nacional; e 2) o desempenho de outras elites militares de outros países atravessando situações similares – estou a lembrar-me do caso mais flagrante da França e da Guerra da Argélia, para aferir dessa qualidade num contexto internacional. Se, em conclusão dessas comparações, se continuasse a advogar a mediocridade do desempenho de muitos dos membros das elites militares durante o período das Guerras de África, então essa conclusão imporia muito mais respeito... Vá lá, talvez se tratasse mesmo de doutrina...
Do ponto de vista metodológico e centífico a segunda metade do livro nada tem a ver com a primeira. É paupérrima. Ajuda a essa impressão decepcionante a sua redutora perspectiva de sargento que confere à escolha, por exemplo, do capítulo com o seu exemplo paradigmático: a Companhia de Caçadores Pára-Quedistas 123. Temos direito a descrições de técnicas de combate e emboscada de pequenas unidades de infantaria em que o autor se excedia. Temos direito a descrições de guerras de vontades entre o sargento veterano e o subalterno novato em que o autor vencia e impunha a sua. Seria a guerra, mas nivelada pelos horizontes do Sargento Rebocho... Mas ao Doutor Rebocho, que pretende passar por produzir doutrina, já se exige que nem seja preciso explicar como esses são aspectos acessórios para se alcançar a vitória numa guerra subversiva…
Na verdade, muito do que consta da segunda parte do livro é indigna de um Doutor Rebocho; parece ser apenas o Sargento Rebocho ajustando contas com o seu passado…
O meu amigo, com esta recenção, poupou-me dois trabalhos:1- comprar
ResponderEliminaro livro,2-ter que ler uma tese com
estatisticas e coisas do género.
Estava a esquecer-me,parece-me ter,
sobre os militares QP, uma perpectiva bastante diferente da do
autor da obra em causa,apesar de ter sido um miliciano.
Abraço
Em vídeo, agora visto,diz o Doutor
ResponderEliminarque as unidades africanas não tinham oficiais do quadro,não é verdade, o Cap Matos Gomes,o Cap.Folques,comandaram em combate
Cªs de Comandos Africanos,que faziam parte do Bat de Comandos sob
o comando do Major Almeida Bruno.E isto não acontecia só nas tropas especiais,estou a lembrar-me que o
Cap. Ayalla Botto comandou em Bedanda a CCAÇ 6 (cª africana)e há outros que agora não recordo.
Também no mesmo vídeo,fiquei com a
ideia( mas eu não sou Dr,nem Doutor)que a Academia Militar é uma
merda...deveria haver uma escola para formar combatentes até Sargento-Mor...a partir daqui entravam os funcionários públicos...fiquei baralhado
E também me baralhou aquela ideia de só em 1995 os US terem descoberto a guerra assimétrica...
como vou classificar o Vietnam?
Fiquei muito confuso também com os
coronéis no Iraque e Afeganistão...
Concluindo fiquei desnoutrinado...
parabens! estas verdades fazem mossa mas não a mim! eu tambem andei na gerra
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