A Ocidente sempre houve uma enorme atracção por todas aquelas histórias das disputas políticas secretas que se travaram (e ainda travam) entre as cúpulas chinesas. Ainda nos últimos anos apareceu a moda das biografias de Mao Zedong das quais se publicaram várias versões(*). Esgotado esse primeiro filão editorial, suponho que terá sido na continuação da exploração do mesmo sucesso comercial que terá aparecido a edição (e respectiva tradução portuguesa) desta biografia de Zhou Enlai da autoria de Gao Wenqian, que foi editado originalmente em mandarim em 2003.
Se há característica que o livro possui é a de ser um livro genuinamente chinês... Ou seja, o seu autor é capaz de retocar a realidade até a um ponto de a tornar inverosímil. Assim como o quadro acima não passa de uma fábula de uma hipotética visita de Mao aos camponeses que sabemos nunca poder ter acontecido daquela forma, também a capa do livro (mais acima) mostra-nos um Zhou Enlai diante de uma limousine de inspiração soviética, de mãos nas ancas, numa pose que nos parece desafiadora, a simular uma atitude política que nunca foi a sua ao longo da sua carreira…
Na verdade, esta biografia de Zhou Enlai nem é verdadeiramente uma biografia. Cobre apenas o período inicial da sua vida, desde 1898 até ao princípio dos anos 30 e depois salta para os seus últimos dez anos (1966-1976), porventura os mais importantes, os mais interessantes e os mais agitados (acima, Zhou a receber o Presidente Nixon em Fevereiro de 1972). E, por outro lado, a biografia política de Zhou Enlai durante esse período de nada vale sem se contar com a omnipresença de Mao Zedong... Assim, mais próximo da verdade, o livro é uma história dos anos terminais do maoismo
Muito apreciado no exterior, Zhou parece ter funcionado, para empregar por uma vez uma metáfora com raízes ocidentais, como uma espécie de grande mordomo encarregado da administração das propriedades enquanto o senhor feudal (Mao) se dedicava aos seus caprichos que quase arrastavam o património à falência... E os ciúmes e caprichos do senhor eram violentos, como se pode observar pela comparação das fotografias anexas: o mesmo Zhou em destaque na visita de Nixon (acima) podia ser posto de castigo durante a visita de alguém tão insignificante quanto o Rei do Nepal (abaixo).
A descrição dos conflitos internos que assolaram naquela década o Partido Comunista Chinês é tão desprovida de conteúdo ideológico quanto a dos partidos portugueses da actualidade. E, segundo a narrativa do livro, Zhou parece ter sobrevivido às manobras de Mao, flutuando por cima delas quando possível e vergando-se à sua vontade quando não(**). Contudo, quanto mais nos aproximamos do fim, mais difícil se torna aceitar a continuação da infalibilidade maquiavélica de Mao Zedong ali descrita, quando as fotografias de época mostram Mao completamente debilitado (abaixo, Fevereiro de 1976).
Recorde-se que, se Zhou Enlai morreu em Janeiro de 1976, Mao Zedong não lhe sobreviveu por muito tempo, tendo vindo a falecer em Setembro desse mesmo ano. Seguiu-se uma tremenda luta pelo controlo do PCC e dos destinos da China. Também neste aspecto, este livro de Gao Wenqian é genuinamente chinês, ao desenvolver uma narrativa que legitima, por uma caução de Zhou Enlai concedida nos seus últimos meses de vida, a sucessão que, como se sabe, veio a recair em Deng Xiaoping (o 3 da fotografia abaixo)… Enfim, um livro não propriamente rigoroso, mas muito interessante…
(*) Desde a mais conhecida Mao, a História Desconhecida, de Jung Chang e Jon Halliday até Mao Uma Vida, de Philip Short, A Vida Privada do Presidente Mao, de Li Zhisui ou Mao: Uma Vida, de Jonathan D. Spence.
(**) Registe-se contudo, através da leitura de um clássico como A Arte da Guerra de Sun Tzu, como é facilmente compreensível que na China um comportamento tão flexível como o assumido por Zhou Enlai é avaliado de uma forma globalmente favorável, ao contrário do que aconteceria no Ocidente.
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