A descrição que se segue, consta da História Oficial Britânica da Primeira Guerra Mundial, e refere-se a uma passagem de uma acção que teve lugar em 8 de Agosto de 1916, em Guillemont, no quadro geral da grande ofensiva britânica que ficou conhecida pelo nome de Batalha do Somme:
Surgiu alguma confusão na frente esquerda, onde a 166ª Brigada (brigadeiro L. F.Green Wilkinson) estava a substituir a 164ª – uma substituição particularmente difícil – e apesar do 1/10º King´s (Liverpool Scottish), escondendo-se atrás da barragem, se aproximar do arame farpado alemão, registaram-se perdas importantes em duas tentativas desesperadas, mas em vão, para chegar ao inimigo. Quase todos os oficiais foram atingidos, incluindo o tenente-coronel J. R. Davidson, que ficou ferido. A seguir, à esquerda, o 1/5º Loyal North Lancashire (também da 166ª Brigada) chegava demasiado tarde, embora não por falta sua; tendo começado depois da barragem ter sido levantada, não tinha qualquer hipótese de êxito. Por isso o 1/7º King´s atacou da posição conquistada pela sua própria Brigada (a 165ª) no dia previsto, mas não conseguiu avançar.
A terminologia empregue é técnica, quem escreve distancia-se imenso do que está a descrever e o conteúdo dessas descrições é sóbrio, omisso, ou quando muito, discreto, quanto ao sofrimento humano entre feridos e mortos que esteve associado aquela acção. Para os seus registos, os militares raramente se referem às consequências sangrentas da sua actividade. Não são só os militares: um comunista empenhado como Vítor Dias adoraria usar o estilo de redacção acima para uma descrição de um episódio embaraçoso para a sua causa, como o da colectivização das terras na URSS sob Estaline na década de 1930. Claro que por detrás dessas narrativas pretensamente desprendidas, escapa sempre um ou outro pormenor que dão ao entendedor o indício da extrema violência que esteve associado ao episódio.
No caso da acção de Guillemont o pormenor é uma nota de rodapé que informa que a Victoria Cross foi concedida ao oficial-médico do 1/10º King´s, capitão N. G. Chavasse*, pelo seu trabalho excepcional de salvamento de feridos sob fogo cerrado”. Ora a Victoria Cross é a mais importante e mais rara de todas as condecorações militares britânicas, concedida em condições absolutamente excepcionais, e que naquela acção ela foi concedida a um oficial-médico. A nota acaba por dizer quase tudo sobre o insucesso e o carácter extremamente sangrento que terá tido toda aquela acção. A visão de quem nela participou pessoalmente – era esse, aliás, o propósito do livro onde me inspirei para esta passagem: O Rosto da Batalha de John Keegan – nada terá de parecido com a de quem a descreveu e registou para os livros da História Oficial.
E é aqui que entra a minha analogia, pois também creio que todos atravessamos as crises económicas um pouco da mesma maneira como os soldados participam nas batalhas. Percebe-se que se atravessam momentos maus, vemos as vítimas que nos rodeiam, mas nada percebemos das causas que as provocam. Falemos, por exemplo, de uma crise atravessada pela economia norte-americana há 170 anos que ficou conhecida pela designação de Pânico de 1837. Considera-se hoje que foi uma crise económica induzida pelo sector financeiro. Sob a presidência de Andrew Jackson (1829-37, abaixo) o Governo Federal teve milhões de dólares de receitas resultantes da alienação das novas terras do Midwest a compradores interessados. E muitos dos que o fizeram, fizeram-no por especulação.
Falta acrescentar que, quantos a mecanismos de regulação financeira, Jackson era de um ultraliberalismo radical, de um género que só se terá tornado a ver cerca de 170 anos mais tarde… Na opinião do Presidente Jackson não era necessária a existência de um Banco Central (na altura já existente com o nome de Bank of the United Sates) que regulasse aquilo que mais tarde se passou a designar pela massa monetária em circulação na economia. A Administração Jackson passou a depositar as suas receitas em bancos comerciais que rentabilizaram o dinheiro depositado emprestando-o por sua vez aos especuladores imobiliários que continuaram a comprar terras ao Governo, desencadeando um daqueles frágeis processos cíclicos onde tudo se aguenta enquanto não aparecem os pormenores que entravam o ciclo e fazem tudo desmoronar.
No caso do Pânico de 1837, a causa próxima da hecatombe financeira terá sido a aprovação de uma lei bancária, já durante a presidência do sucessor de Jackson, Martin Van Buren (1837-41 e que ganhou por causa disso a alcunha de Martin Van Ruin…) que obrigava a banca comercial a pagar os empréstimos que contraíra junto do governo em espécie (i.e. em ouro). Claro que houve bancos que não poderam cumprir... Adivinha-se o resto do que depois aconteceu ao sistema financeiro norte-americano, com notícias semelhantes às recentes do desaparecimento da Merrill Lynch & Co e da falência da Lehman Brothers Holdings Inc. Mas estas notícias que agora aparecem não passam da observação de soldado, do rosto da crise que se adivinha preparar-se para afectar toda a economia norte-americana. Tomará tempo, mas poder-se-á apurar depois quem terá sido o Andrew Jackson por detrás dela…
* Chavasse é um dos três únicos militares (2 britânicos e 1 neozelandês) que foram condecorados por duas vezes com a Victoria Cross, embora da segunda vez o tivesse sido a título póstumo.
A terminologia empregue é técnica, quem escreve distancia-se imenso do que está a descrever e o conteúdo dessas descrições é sóbrio, omisso, ou quando muito, discreto, quanto ao sofrimento humano entre feridos e mortos que esteve associado aquela acção. Para os seus registos, os militares raramente se referem às consequências sangrentas da sua actividade. Não são só os militares: um comunista empenhado como Vítor Dias adoraria usar o estilo de redacção acima para uma descrição de um episódio embaraçoso para a sua causa, como o da colectivização das terras na URSS sob Estaline na década de 1930. Claro que por detrás dessas narrativas pretensamente desprendidas, escapa sempre um ou outro pormenor que dão ao entendedor o indício da extrema violência que esteve associado ao episódio.
No caso da acção de Guillemont o pormenor é uma nota de rodapé que informa que a Victoria Cross foi concedida ao oficial-médico do 1/10º King´s, capitão N. G. Chavasse*, pelo seu trabalho excepcional de salvamento de feridos sob fogo cerrado”. Ora a Victoria Cross é a mais importante e mais rara de todas as condecorações militares britânicas, concedida em condições absolutamente excepcionais, e que naquela acção ela foi concedida a um oficial-médico. A nota acaba por dizer quase tudo sobre o insucesso e o carácter extremamente sangrento que terá tido toda aquela acção. A visão de quem nela participou pessoalmente – era esse, aliás, o propósito do livro onde me inspirei para esta passagem: O Rosto da Batalha de John Keegan – nada terá de parecido com a de quem a descreveu e registou para os livros da História Oficial.
E é aqui que entra a minha analogia, pois também creio que todos atravessamos as crises económicas um pouco da mesma maneira como os soldados participam nas batalhas. Percebe-se que se atravessam momentos maus, vemos as vítimas que nos rodeiam, mas nada percebemos das causas que as provocam. Falemos, por exemplo, de uma crise atravessada pela economia norte-americana há 170 anos que ficou conhecida pela designação de Pânico de 1837. Considera-se hoje que foi uma crise económica induzida pelo sector financeiro. Sob a presidência de Andrew Jackson (1829-37, abaixo) o Governo Federal teve milhões de dólares de receitas resultantes da alienação das novas terras do Midwest a compradores interessados. E muitos dos que o fizeram, fizeram-no por especulação.
Falta acrescentar que, quantos a mecanismos de regulação financeira, Jackson era de um ultraliberalismo radical, de um género que só se terá tornado a ver cerca de 170 anos mais tarde… Na opinião do Presidente Jackson não era necessária a existência de um Banco Central (na altura já existente com o nome de Bank of the United Sates) que regulasse aquilo que mais tarde se passou a designar pela massa monetária em circulação na economia. A Administração Jackson passou a depositar as suas receitas em bancos comerciais que rentabilizaram o dinheiro depositado emprestando-o por sua vez aos especuladores imobiliários que continuaram a comprar terras ao Governo, desencadeando um daqueles frágeis processos cíclicos onde tudo se aguenta enquanto não aparecem os pormenores que entravam o ciclo e fazem tudo desmoronar.
No caso do Pânico de 1837, a causa próxima da hecatombe financeira terá sido a aprovação de uma lei bancária, já durante a presidência do sucessor de Jackson, Martin Van Buren (1837-41 e que ganhou por causa disso a alcunha de Martin Van Ruin…) que obrigava a banca comercial a pagar os empréstimos que contraíra junto do governo em espécie (i.e. em ouro). Claro que houve bancos que não poderam cumprir... Adivinha-se o resto do que depois aconteceu ao sistema financeiro norte-americano, com notícias semelhantes às recentes do desaparecimento da Merrill Lynch & Co e da falência da Lehman Brothers Holdings Inc. Mas estas notícias que agora aparecem não passam da observação de soldado, do rosto da crise que se adivinha preparar-se para afectar toda a economia norte-americana. Tomará tempo, mas poder-se-á apurar depois quem terá sido o Andrew Jackson por detrás dela…
* Chavasse é um dos três únicos militares (2 britânicos e 1 neozelandês) que foram condecorados por duas vezes com a Victoria Cross, embora da segunda vez o tivesse sido a título póstumo.
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