Nestes dias de tensão no Cáucaso, todas as notícias oriundas da Rússia que lhe dêem um aspecto de potência agressiva são notícias bem vindas, para publicar. Houve um Almirante russo reformado chamado Eduard Baltin (acima) que fez um grande favor à classe jornalística e proferiu umas declarações de aspecto ameaçador que saltaram logo para o noticiário internacional: Apesar das aparências, o Grupo naval da NATO no Mar Negro não tem capacidade de combate. Se necessário, umas salvas de mísseis do cruzador Moskva (em baixo) conjuntamente com mais dois ou três navios seriam suficientes para aniquilar todo o Grupo. Em 20 minutos o assunto estaria resolvido.
As declarações do Almirante prosseguiram, realçando que considerava a probabilidade dum cenário de confrontação naval como remota: Não seremos nós a atacar primeiro, e eles não parecem pessoas com tendências suicidas. Claro que esta segunda parte tem muito menos interesse jornalístico, além de que uma investigação elementar sobre quem proferiu tais afirmações poderia acrescentar que a especialização naval de Baltin foi em submarinos e não em navios de superfície, que adora dizer coisas tonitruantes à imprensa e que é um dos animadores de uma das centenas de organizações saudosistas do período imperial soviético, chamada Renascimento do Poder*.
Mas, por detrás dos cabeçalhos informativos primários, suponho que teria valido mais a pena efectuar uma reflexão, ainda que sintética, sobre o objecto desta disputa, o próprio Mar Negro, com as suas características e a História das populações das sua regiões ribeirinhas, assim as actuais relações de poder entre os seis países que o rodeiam: começando pelo Sul e seguindo o sentido dos ponteiros do relógio, Turquia, Bulgária, Roménia, Ucrânia, Rússia e Geórgia. Há um livro do jornalista Neal Ascherson (acima) muito interessante, que embora esteja um pouco datado (1995) e que se intitula Black Sea**, faz essa descrição, análise e esse périplo, que aqui tentarei resumir.
O Mar Negro tem uma forma que nos faz lembrar um rim com um máximo de 1.000 km de extensão medidos de Leste para Oeste e 530 km de Norte para Sul, onde se destaca a protuberância da Península da Crimeia cujas costas apenas distam cerca de 230 km das da Turquia. A sua área total é de 436 000 km² - quase cinco vezes a dimensão de Portugal continental. A profundidade média do Mar Negro é elevada: 1 315 metros. No entanto aquele valor é um cálculo que resulta de duas regiões contrastantes: as zonas litorais, assinaladas a azul mais claro no mapa acima, onde a profundidade é inferior aos 200 metros, e a bacia central onde ela chega a ultrapassar os 2 200 metros!
Além desta configuração, há algo que muito me surpreendeu: o Mar Negro vem a revelar-se um mar morto a partir dos 150 a 200 metros de profundidade (acima). A concentração salina das camadas superior e inferior são distintas, assim como a densidade da água. Abaixo daquela fronteira a água é anóxica, ou seja, não contém oxigénio dissolvido que foi substituído pelo corrosivo ácido sulfídrico (H2S), o que praticamente impossibilita a existência de vida animal. Estes factos apontam para que o Mar Negro, embora antigo em termos geológicos, tenha tido um processo gradual de formação até à sua forma actual – processo acerca do qual ainda hoje existe um animado debate científico.
Se os Romanos chamavam seu ao Mar Mediterrâneo, o Mar Negro foi durante quase dois milénios um mar onde os gregos exerceram toda a sua influência económica e cultural sem serem disputados. Uma das facetas históricas de importância estratégica para esse regime harmonioso que vigorou durante quase todo aquele período foi a complementaridade e a consonância entre os detentores dos poderes da Costa Sul (gregos) do Mar Negro e os da Costa Norte (eslavos ou aparentados). Tipicamente para essa harmonia, a cidade de Constantinopla (capital de romanos e bizantinos, fundação grega do Século VII a.C.), localiza-se no único local de acesso marítimo do Mar Negro para o exterior.
Mesmo depois da queda de Constantinopla para os turcos (1453) o panorama não se alterou, pois os tártaros muçulmanos que então dominavam a Crimeia (acima) comportaram-se para com o regime otomano e o Sultão precisamente da mesma forma que aqueles que eles haviam derrotado o haviam feito para com o Imperador Romano do Oriente. Do ponto de vista estratégico a situação só se veio verdadeiramente a modificar nos finais do Século XVIII (1783) quando os russos conquistaram e anexaram a Crimeia. Desde então, há um poder na Costa Norte (a Rússia) e um poder antagónico na Costa Sul (a Turquia). Os restantes países ribeirinhos costumam alinhar-se em função das circunstâncias.
Mas, mesmo apesar dessa tensão constante, a verdade é que desde 1783 apenas por uma vez foi necessário que potências exteriores (Reino Unido, França e Itália) interviessem para reporem o equilíbrio regional, que na altura se apresentava demasiado favorável à Rússia: foi a Guerra da Crimeia (1854-56) que terminou com a vitória das potências ocidentais (acima). Na realidade, o equilíbrio em vigor parece resultar mais do facto da superioridade do poderio russo se equivaler à vantagem da posição estratégica da Turquia. Afinal é esta última que continua, a partir de Constantinopla (agora chamada Istambul mas tão cobiçada pelos russos como sempre) a controlar o acesso do Mar Negro ao exterior.
Regressando ao principio deste poste e ao conteúdo das afirmações bombásticas do Almirante Baltin, creio que depois desta explicação se torna compreensível que, por muito que a situação se agrave, não parece haver quaisquer razões militares para que a Esquadra da NATO (organização de que a Turquia faz parte) actualmente destacada para o Mar Negro tome a iniciativa de se envolver numa batalha naval com a sua homóloga russa… A sua vantagem estratégica dispensar-lhe-ia a iniciativa e, sobretudo, a seriedade da situação no Cáucaso merece análises mais consequentes do que intervenções de Almirantes reformados que falam porque gostam de se ouvir…
* Vozrozhdenie Derzhavy.
** Neste caso, ao contrário doutros, suponho que posso assegurar que não há uma muito mais acessível e prosaica versão traduzida do mesmo livro.
As declarações do Almirante prosseguiram, realçando que considerava a probabilidade dum cenário de confrontação naval como remota: Não seremos nós a atacar primeiro, e eles não parecem pessoas com tendências suicidas. Claro que esta segunda parte tem muito menos interesse jornalístico, além de que uma investigação elementar sobre quem proferiu tais afirmações poderia acrescentar que a especialização naval de Baltin foi em submarinos e não em navios de superfície, que adora dizer coisas tonitruantes à imprensa e que é um dos animadores de uma das centenas de organizações saudosistas do período imperial soviético, chamada Renascimento do Poder*.
Mas, por detrás dos cabeçalhos informativos primários, suponho que teria valido mais a pena efectuar uma reflexão, ainda que sintética, sobre o objecto desta disputa, o próprio Mar Negro, com as suas características e a História das populações das sua regiões ribeirinhas, assim as actuais relações de poder entre os seis países que o rodeiam: começando pelo Sul e seguindo o sentido dos ponteiros do relógio, Turquia, Bulgária, Roménia, Ucrânia, Rússia e Geórgia. Há um livro do jornalista Neal Ascherson (acima) muito interessante, que embora esteja um pouco datado (1995) e que se intitula Black Sea**, faz essa descrição, análise e esse périplo, que aqui tentarei resumir.
O Mar Negro tem uma forma que nos faz lembrar um rim com um máximo de 1.000 km de extensão medidos de Leste para Oeste e 530 km de Norte para Sul, onde se destaca a protuberância da Península da Crimeia cujas costas apenas distam cerca de 230 km das da Turquia. A sua área total é de 436 000 km² - quase cinco vezes a dimensão de Portugal continental. A profundidade média do Mar Negro é elevada: 1 315 metros. No entanto aquele valor é um cálculo que resulta de duas regiões contrastantes: as zonas litorais, assinaladas a azul mais claro no mapa acima, onde a profundidade é inferior aos 200 metros, e a bacia central onde ela chega a ultrapassar os 2 200 metros!
Além desta configuração, há algo que muito me surpreendeu: o Mar Negro vem a revelar-se um mar morto a partir dos 150 a 200 metros de profundidade (acima). A concentração salina das camadas superior e inferior são distintas, assim como a densidade da água. Abaixo daquela fronteira a água é anóxica, ou seja, não contém oxigénio dissolvido que foi substituído pelo corrosivo ácido sulfídrico (H2S), o que praticamente impossibilita a existência de vida animal. Estes factos apontam para que o Mar Negro, embora antigo em termos geológicos, tenha tido um processo gradual de formação até à sua forma actual – processo acerca do qual ainda hoje existe um animado debate científico.
Se os Romanos chamavam seu ao Mar Mediterrâneo, o Mar Negro foi durante quase dois milénios um mar onde os gregos exerceram toda a sua influência económica e cultural sem serem disputados. Uma das facetas históricas de importância estratégica para esse regime harmonioso que vigorou durante quase todo aquele período foi a complementaridade e a consonância entre os detentores dos poderes da Costa Sul (gregos) do Mar Negro e os da Costa Norte (eslavos ou aparentados). Tipicamente para essa harmonia, a cidade de Constantinopla (capital de romanos e bizantinos, fundação grega do Século VII a.C.), localiza-se no único local de acesso marítimo do Mar Negro para o exterior.
Mesmo depois da queda de Constantinopla para os turcos (1453) o panorama não se alterou, pois os tártaros muçulmanos que então dominavam a Crimeia (acima) comportaram-se para com o regime otomano e o Sultão precisamente da mesma forma que aqueles que eles haviam derrotado o haviam feito para com o Imperador Romano do Oriente. Do ponto de vista estratégico a situação só se veio verdadeiramente a modificar nos finais do Século XVIII (1783) quando os russos conquistaram e anexaram a Crimeia. Desde então, há um poder na Costa Norte (a Rússia) e um poder antagónico na Costa Sul (a Turquia). Os restantes países ribeirinhos costumam alinhar-se em função das circunstâncias.
Mas, mesmo apesar dessa tensão constante, a verdade é que desde 1783 apenas por uma vez foi necessário que potências exteriores (Reino Unido, França e Itália) interviessem para reporem o equilíbrio regional, que na altura se apresentava demasiado favorável à Rússia: foi a Guerra da Crimeia (1854-56) que terminou com a vitória das potências ocidentais (acima). Na realidade, o equilíbrio em vigor parece resultar mais do facto da superioridade do poderio russo se equivaler à vantagem da posição estratégica da Turquia. Afinal é esta última que continua, a partir de Constantinopla (agora chamada Istambul mas tão cobiçada pelos russos como sempre) a controlar o acesso do Mar Negro ao exterior.
Regressando ao principio deste poste e ao conteúdo das afirmações bombásticas do Almirante Baltin, creio que depois desta explicação se torna compreensível que, por muito que a situação se agrave, não parece haver quaisquer razões militares para que a Esquadra da NATO (organização de que a Turquia faz parte) actualmente destacada para o Mar Negro tome a iniciativa de se envolver numa batalha naval com a sua homóloga russa… A sua vantagem estratégica dispensar-lhe-ia a iniciativa e, sobretudo, a seriedade da situação no Cáucaso merece análises mais consequentes do que intervenções de Almirantes reformados que falam porque gostam de se ouvir…
* Vozrozhdenie Derzhavy.
** Neste caso, ao contrário doutros, suponho que posso assegurar que não há uma muito mais acessível e prosaica versão traduzida do mesmo livro.
Uma análise histórico-estratégica excelente. Permite avaliar os equilíbrios geopolíticos que, actualmente, nos dão uma ideia bem impressiva do que se encontra em jogo. Provavelmente, para a Turquia, a região passou a ultrapassar a região do Médio Oriente em termos de interesse estratégico. O Irão também estará atento ao que aí se passa, interrogando-se se o Ocidente cometerá erros suficientes para que a Rússia lhe forneça os sistemas antimíssil que tanto ambiciona, para se defender de um ataque aéreo israelita e tornar mais difícil idêntica iniciativa norte-americana. Ou se, pelo contrário, a Rússia não o fará, em troca de Israel deixar de fornecer material de guerra e treino militar à Geórgia. Enfim, muitas interrogações...
ResponderEliminarLS