É sempre ingrato apreciar severamente textos referentes a acontecimentos com mais de 30 anos em que ainda se lê facilmente como o que foi escrito ainda está dominado pela emoção. É o que se passa com uma acumular de textos referentes aos acontecimentos que levaram à independência de Moçambique que, por coincidência, acabei por ler aqui na blogosfera num curto intervalo de tempos, fosse no Água Lisa, a propósito de uma recensão de um livro chamado Os Dias do Fim, ou no Nonas, a propósito de vários textos comemorativos do movimento anti-FRELIMO da comunidade branca moçambicana que teve lugar a 7 de Setembro de 1974.
Certa manhã de uma banal semana de trabalho nos finais da década de 70, numa camioneta de uma carreira suburbana dos arredores de Lisboa, envolta naquele silêncio sonolento típico daquela hora, lembro-me de estar a seguir a conversa (única em toda a camioneta) do que parecia ser uma laurentina* com a sua companheira de viagem onde ela se lamentava de tudo o que deixara para trás, entre bens materiais e estilo de vida. Isso era normal ouvir naqueles tempos da parte dos chamados retornados. O que era menos usual e talvez deselegante, era o resto da sua conversa, sobre a sua profunda insatisfação com a nova vida que levava em Portugal.
Os termos eram de tal forma que tocaram alguma corda sensível de um outro viajante da camioneta mais desperto e menos paciente, que resolveu romper o silêncio ensonado e resolveu perguntar à queixosa: - Então, se isto aqui é assim tão mau, porque é que não volta para lá? Eu nasci em Moçambique, vivi lá, tenho familiares muito próximos e amigos que tiveram de fugir de lá depois da independência, mas tenho que reconhecer que enquanto comunidade (com os riscos inerentes a estas generalizações), os brancos moçambicanos eram bastante herméticos e antipáticos em relação aos forasteiros, e isso já se sentia desde o período colonial.
Certa manhã de uma banal semana de trabalho nos finais da década de 70, numa camioneta de uma carreira suburbana dos arredores de Lisboa, envolta naquele silêncio sonolento típico daquela hora, lembro-me de estar a seguir a conversa (única em toda a camioneta) do que parecia ser uma laurentina* com a sua companheira de viagem onde ela se lamentava de tudo o que deixara para trás, entre bens materiais e estilo de vida. Isso era normal ouvir naqueles tempos da parte dos chamados retornados. O que era menos usual e talvez deselegante, era o resto da sua conversa, sobre a sua profunda insatisfação com a nova vida que levava em Portugal.
Os termos eram de tal forma que tocaram alguma corda sensível de um outro viajante da camioneta mais desperto e menos paciente, que resolveu romper o silêncio ensonado e resolveu perguntar à queixosa: - Então, se isto aqui é assim tão mau, porque é que não volta para lá? Eu nasci em Moçambique, vivi lá, tenho familiares muito próximos e amigos que tiveram de fugir de lá depois da independência, mas tenho que reconhecer que enquanto comunidade (com os riscos inerentes a estas generalizações), os brancos moçambicanos eram bastante herméticos e antipáticos em relação aos forasteiros, e isso já se sentia desde o período colonial.
Durante o período colonial havia duas grandes comunidades brancas rivais nas colónias portuguesas: a de Angola e a de Moçambique. A começar pelas regras de circulação de trânsito**, a influência sul-africana e anglo-saxónica sobre a comunidade moçambicana era fortíssima. Viajando para Lisboa, muito mais frequentemente um angolano diria que ia à Metrópole, usando a terminologia oficial do regime, do que um moçambicano, que diria mais provavelmente que ia a Portugal. Aliás, a grande cidade de referência para o moçambicano branco nem era Lisboa, mas sim Joanesburgo, para onde ele (se fosse de Lourenço Marques…) até podia viajar de carro.
Os investimentos em transportes condicionaram (e suponho que continuam a condicionar) a percepção que os moçambicanos tinham dos cerca de 800.000 km² do seu território: havia excelentes vias de comunicação tanto rodoviárias como ferroviárias da costa para o interior, de Lourenço Marques para o Transval e da Beira para a Rodésia. Contudo para conseguir fazer uma viagem rodoviária unindo o Norte e o Sul de Moçambique (do Maputo ao Rovuma) era então preciso preparar uma verdadeira expedição, e impensável utilizar a maioria dessas vias de comunicação para o comércio interno… - que se fazia por navegação de cabotagem.
A percepção do Moçambique de grande parte da comunidade branca (que estava concentrada em Lourenço Marques e na Beira) era assim muito incompleta, porque a verdadeira massa crítica, tanto territorial como populacional de Moçambique estava (e está) situada acima do Rio Zambeze. Essa ignorância tinha também implicações políticas porque foi por essa área a Norte do Zambeze que começou a infiltração da FRELIMO, numa actividade de guerrilha e contra-guerrilha que era uma abstracção para o branco moçambicano típico. Que contraste com o branco angolano de Luanda e das regiões do café, que se sentiram ameaçados logo desde 1961…
É por isso que se podem ler disparates inacreditáveis nos textos que acima referi, como uma explicação que atribui a causa da expansão da guerrilha da FRELIMO ao sistema remuneratório dos oficiais portugueses, que ganhavam mais se a sua zona fosse zona de guerra… Foi só pouco antes do 25 de Abril de 1974 que a comunidade branca da Beira (e só a da Beira) começou a ter contacto com as actividades da FRELIMO. E a culpa, claro, foi atribuída por ela aos militares que estavam no Norte, a encherem-se… Dada esta animosidade (que também era recíproca...), nem se pode excluir que o cumprimento do programa do MFA tivesse em Moçambique um certo travo de desforra…
A esta distância, consegue-se perceber agora que, ao contrário das comunidades da vizinhança (África do Sul e Rodésia) que ela tanto pretendia imitar, a comunidade branca de Moçambique não parecia estar verdadeiramente enraizada no território, a maioria dela prosperava directa ou indirectamente à custa dos serviços de intermediação do comércio externo dos dois vizinhos, mas faltava-lhe a quantitativamente pequena, mas qualitativamente fundamental, classe dos fazendeiros brancos que a prendesse à terra*** que em Moçambique praticamente não existia. O que não invalida, antipatias à parte, que ela se vá tornar uma vítima do que se vai seguir.
A revolta de 7 de Setembro de 1974, referida nos textos acima mencionados, parece ser uma última tentativa dos brancos de interferirem no processo de negociações entre Portugal e a FRELIMO. O precedente da Rodésia (cuja comunidade branca proclamara unilateralmente a independência em 1965) só mesmo em teoria é que poderia servir de inspiração para o caso moçambicano. Ao fim de dez anos de guerrilha (1964-74), a comunidade branca nunca considerara seu o problema da sua auto-defesa, nem um esboço existia sequer de um dispositivo militar autónomo que pudesse intimidar a FRELIMO e, agora, que as coisas politicamente se precipitavam, chamavam era pela África do Sul…
* Natural de Lourenço Marques, hoje Maputo.
** Em Moçambique circula-se pela esquerda, à inglesa.
*** A que Robert Mugabe está a procurar extinguir no Zimbabué.
Os investimentos em transportes condicionaram (e suponho que continuam a condicionar) a percepção que os moçambicanos tinham dos cerca de 800.000 km² do seu território: havia excelentes vias de comunicação tanto rodoviárias como ferroviárias da costa para o interior, de Lourenço Marques para o Transval e da Beira para a Rodésia. Contudo para conseguir fazer uma viagem rodoviária unindo o Norte e o Sul de Moçambique (do Maputo ao Rovuma) era então preciso preparar uma verdadeira expedição, e impensável utilizar a maioria dessas vias de comunicação para o comércio interno… - que se fazia por navegação de cabotagem.
A percepção do Moçambique de grande parte da comunidade branca (que estava concentrada em Lourenço Marques e na Beira) era assim muito incompleta, porque a verdadeira massa crítica, tanto territorial como populacional de Moçambique estava (e está) situada acima do Rio Zambeze. Essa ignorância tinha também implicações políticas porque foi por essa área a Norte do Zambeze que começou a infiltração da FRELIMO, numa actividade de guerrilha e contra-guerrilha que era uma abstracção para o branco moçambicano típico. Que contraste com o branco angolano de Luanda e das regiões do café, que se sentiram ameaçados logo desde 1961…
É por isso que se podem ler disparates inacreditáveis nos textos que acima referi, como uma explicação que atribui a causa da expansão da guerrilha da FRELIMO ao sistema remuneratório dos oficiais portugueses, que ganhavam mais se a sua zona fosse zona de guerra… Foi só pouco antes do 25 de Abril de 1974 que a comunidade branca da Beira (e só a da Beira) começou a ter contacto com as actividades da FRELIMO. E a culpa, claro, foi atribuída por ela aos militares que estavam no Norte, a encherem-se… Dada esta animosidade (que também era recíproca...), nem se pode excluir que o cumprimento do programa do MFA tivesse em Moçambique um certo travo de desforra…
A esta distância, consegue-se perceber agora que, ao contrário das comunidades da vizinhança (África do Sul e Rodésia) que ela tanto pretendia imitar, a comunidade branca de Moçambique não parecia estar verdadeiramente enraizada no território, a maioria dela prosperava directa ou indirectamente à custa dos serviços de intermediação do comércio externo dos dois vizinhos, mas faltava-lhe a quantitativamente pequena, mas qualitativamente fundamental, classe dos fazendeiros brancos que a prendesse à terra*** que em Moçambique praticamente não existia. O que não invalida, antipatias à parte, que ela se vá tornar uma vítima do que se vai seguir.
A revolta de 7 de Setembro de 1974, referida nos textos acima mencionados, parece ser uma última tentativa dos brancos de interferirem no processo de negociações entre Portugal e a FRELIMO. O precedente da Rodésia (cuja comunidade branca proclamara unilateralmente a independência em 1965) só mesmo em teoria é que poderia servir de inspiração para o caso moçambicano. Ao fim de dez anos de guerrilha (1964-74), a comunidade branca nunca considerara seu o problema da sua auto-defesa, nem um esboço existia sequer de um dispositivo militar autónomo que pudesse intimidar a FRELIMO e, agora, que as coisas politicamente se precipitavam, chamavam era pela África do Sul…
* Natural de Lourenço Marques, hoje Maputo.
** Em Moçambique circula-se pela esquerda, à inglesa.
*** A que Robert Mugabe está a procurar extinguir no Zimbabué.
Não fazia ideia que eras moçambicano. Estive lá há uns anos, muito depois de terminados os confrontos pós-independência e fiquei exactamente com a ideia que aqui transmites.
ResponderEliminarAdorei o país, é lindíssimo e eu nunca tinha estado em África. Contudo, a ideia com que fiquei foi essa mesmo, a de uma enorme diferença entre o colonialismo praticado aqui e o praticado em Angola. Talvez por isso a evolução política de um e do outro país, também tenha sido substancialmente diferente.
Para a evolução política que se seguiu, uma das diferenças fundamentais é que um dos países é rico em recursos extractivos e o outro nem por isso...
ResponderEliminarpois..a questão é mesmo essa..é que Angola é um país rico em recursos naturais e Moçambique é pobre.
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