É um cepticismo político muito acentuado que me leva a duvidar da coincidência da visita do primeiro-ministro aos serviços de urgência do hospital da sua área de residência (Amadora-Sintra), acompanhando um familiar próximo (nunca especificado) no dia de Natal. Para quem conhecesse o problema que se vive naquele hospital (desde Novembro), a situação anunciava-se (mais do que) previsível, e há também o pormenor não negligenciável de que a visita do tal familiar se revelou inútil porque o doente que o primeiro-ministro acompanhava acabou por ser referenciado para o serviço de urgência básica da zona onde mora. Por outras palavras, menos caridosas mas mais objectivas, o familiar de Pedro Passos Coelho foi, como muitos outros, para o hospital entupir desnecessariamente a urgência, porque aquilo de que se queixaria dispensava intervenção hospitalar. Mas a presença de tão excelso acompanhante do doente, submetido aos mesmos tratos de polé da plebe, revelar-se-á muito útil para a imagem de um primeiro-ministro conhecido por ter reduzido cegamente tudo aquilo que é a actividade assistencial do estado – e preservando simultaneamente um amplo leque de outros encargos do Estado. É que transmitir a imagem de o ter a passar pelas mesmas agruras da maioria dos portugueses é muito bem capaz de nos despertar o grau de empatia suficiente para que não se lhe peça satisfações pelos resultados das suas decisões, antes considerando-o mais uma das vítimas das políticas cuja responsabilidade parece que nos querem fazer esquecer que é sua, como chefe do governo. É como pôr o primeiro-ministro a evitar pegar o touro pelos cornos, para o pegar de cernelha; o touro é, obviamente, essa besta também conhecida por opinião pública, e as boas agências de comunicação existem precisamente para aconselhar os políticos como não a confrontar.
31 dezembro 2014
«CLOCKS»
Hoje é o dia do ano em que mais atenção se dedica aos relógios para que o ritual do champanhe, das passas, de tudo o resto, decorra cronometricamente ao som das badaladas virtuais que as reais praticamente ninguém ouve. Em homenagem a esses momentos anualmente repetidos, sem os quais até parece que os anos não cederiam o lugar uns aos outros, Clocks, os Coldplay.
30 dezembro 2014
2015
Recorde-se que no segundo filme da saga Back to the Future, que foi estreado em 1989, a personagem de Michael J. Fox viaja dessa vez para o futuro e que o ano de destino é... 2015, precisamente aquele que começará depois de amanhã. A cena do vídeo acima, com um Marty McFly acabado de chegar à sua cidade, mas a uma cidade distante no tempo daquela que ele conhecia em 1985, será portanto uma projecção de como há 25 anos se anteciparia que hoje viveríamos. E vale sempre a pena comparar se a evolução compassada do tempo segue pelas trilhas rasgadas pela imaginação dos homens...
COMENTÁRIOS COMO OBUSES DE UM SÍTIO DESNECESSARIAMENTE CRUEL
Em Junho de 1937, em plena Guerra Civil de Espanha, Antoine de Saint-Exupéry foi o enviado especial do jornal Paris-Soir a uma Madrid ainda nas mãos dos republicanos mas sitiada pelas forças nacionalistas. Na sua reportagem da edição de Domingo, 27 de Junho (acima), o jornalista-aviador-escritor narrava a peripécia de uma noite em que fora conduzido até à linha da frente, nos arredores que circundavam a cidade. A cada dois minutos a coluna cruzava-se com um obus passando por cima da sua cabeça em direcção a uma Madrid atrás de si que mal se distinguia no seu blackout de guerra. Naquela mesma tarde, Saint-Exupéry assistira à chegada de um desses obuses à cidade que caíra por perto de onde se encontrava e que matara uma rapariga. E escrevia o quanto tudo aquilo lhe parecia absurdo, porque não havia qualquer interesse militar naquele bombardeio. A haver consequências e a contrário, por cada disparo reforçava-se a vontade da população em resistir, como se um ferreiro gigante forjasse Madrid.
Lembrei-me desta inesquecível descrição de Saint-Exupéry ao ler hoje algumas reacções ao terceiro fracasso para a eleição do presidente grego que precipitou mais uma crise naquele país. Para além da seriedade da situação, ela só se agravará na percepção dos intervenientes principais – os gregos – com as múltiplas atitudes e declarações intrusivas que o caso está a suscitar (do FMI e da Comissão Europeia, do comissário Moscovici ao presidente Juncker, passando pelo ministro alemão Schäuble, a quem se devia dar rebuçados para estar calado, tais são os anticorpos que desencadeia...). Como os obuses que Saint-Exupéry acima descrevia a flagelar Madrid, estes comentários, pela crueldade igualmente contraproducente, parecem propositada e desnecessariamente concebidas para gerar nos gregos o mesmo espírito de resistência ultrajado como acontecia com os madrilenos de outrora.
29 dezembro 2014
O OUTRO LADO DA HISTÓRIA DO CASAL HARDING
Warren G. Harding (1865-1923), o 29º presidente dos Estados Unidos (1921-23), ignorado quando não classificado como um dos piores presidentes que o país conheceu, fotografado no jardim de sua casa ao lado da sua esposa Florence (1860-1924), que parece contemplá-lo em toda a sua majestade (o enquadramento da foto eleva-o bem mais para cima do que o seu 1,83), embevecida de admiração. A realidade é outra. Quando os Harding se casaram Warren tinha 25 anos, Florence já ia nos 30 com um filho de 10 de um casamento anterior. Ela era filha do grande rival político local de Harding, que ambos detestavam. Podia não ser um casamento de amor mas o casal parecia complementar-se: Warren seria a face do projecto mas foi Florence que assumiu a direcção e fez prosperar o jornal do marido, o Marion Daily Star, a publicação regional do condado homónimo do estado do Ohio (que ainda subsiste). A carreira política de Warren G. Harding que o levou à presidência terá sido ajudada pelo facto de se ter tratado do primeiro jornalista a ocupar aquele cargo mas não se deve subestimar a importância de uma primeira-dama também experimentada como editora, consciente do poder que o tratamento da imagem pode ter junto do público. O casal não teve filhos, o marido tratava a esposa por duquesa, uma alcunha que se difundiu possivelmente por ser muito sugestiva da personalidade da visada e a bela figura ostentada acima por Warren Harding tê-lo-á feito manter diversas ligações sentimentais ao longo da vida de casados, uma delas suficientemente prolongada para que existam cerca de cem cartas escritas por si à amante, outra delas suficientemente intensa para que dela tivesse resultado uma filha. Abafar tudo isso – entre outros pecadilhos menores – terá sido a preocupação do aparelho do partido Republicano durante a campanha presidencial de 1920 que culminou com a sua vitória. Já na Casa Branca, competiu a Florence Harding amolecer os jornalistas fazendo-os esquecer que ela fora casada (era melhor escrever-se que enviuvara...) ou que tivera um filho (o enteado do presidente morrera em 1915, tuberculoso e alcoólico). E tê-lo-á conseguido até a morte súbita do marido em Agosto de 1923. Depois disso, a questão deixou de ter importância alguma, mas a viúva distinguiu-se ainda por algumas disputas quanto ao destino a dar à documentação do marido, mas morreu pouco mais de quinze meses depois. Quase cem anos passados, actualmente bem poderia ser uma outra Hillary Clinton.
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CARTAZES DO PPD QUE PODERIAM VOLTAR A ESTAR NA MODA
O PPD/PSD já terá no seu historial de 40 anos centenas de cartazes apelando ao voto. O que estes têm de especial, pertencendo àqueles poucos anos primevos da Democracia (que parecem possuir mais significado pela inocência da época de quem os viveu), é que, apesar do optimismo das mensagens, eles assinalam o nadir dos resultados da história do partido, que conseguiu uns fracos 24,35% nas eleições legislativas de 25 Abril de 1976, complementados por uns não mais animadores 24,30% nas eleições autárquicas seguintes, a 12 de Dezembro desse mesmo ano. Se aqui os afixei foi, não só pela semelhança das circunstâncias políticas, onde o PSD se arrisca a levar neste ano que entra uma talhada eleitoral que o remeta para resultados eleitorais semelhantes, senão piores; foi pela simplicidade crua, o crudelismo, das mensagens de antanho, estranhamente semelhantes às que emanam de dentro do aparelho actual do partido para fora, onde se parecem acumular as presunções que sendo muitos, amanhã ainda podem voltar a ser milhões ou que Portugal está com eles. Fiem-se...
28 dezembro 2014
A CANÇÃO MISTÉRIO
Há caricaturas que se podem tornar excessivamente cruéis quando expõem a facilidade como aquilo que é parodiado foi criado, tal a competição qualitativa entre a versão burlesca e os originais. No caso acima Hugh Laurie parodia um certo estilo musical baseado em letras pretensamente intimistas cujas rimas se encaixam à martelada, naquilo que, por mim, bem poderia passar por uma (outra) boa evocação dos 20 anos de carreira de Pedro Abrunhosa...
27 dezembro 2014
A MENSAGEM DE NATAL DE PEDRO PASSOS COELHO
A mensagem de Natal do primeiro-ministro dura quase oito minutos e meio (abaixo) mas, por mim (e para outros), bem se pode sintetizar na imagem acima: um Coelho que tenta – e fracassa ao – tirar um outro coelho de dentro de uma cartola, ficando-se só pelas orelhas. Um exemplo académico do que em psicologia social se classifica por dissonância cognitiva: ele acha que vive num país e nós vivemos noutro.
OS CHAPÉUS DE CHUVA DE CHERBURGO
Há mais de cinquenta anos este instantâneo das filmagens de Os Chapéus de Chuva de Cherburgo realizado por Jacques Demy (ao centro) transmitia a importância que, para além da banda sonora (trata-se de um musical totalmente cantado), se procurava dar à cor. Embora não goste do género, foi uma prenda que espero que venha a ser apreciada.
26 dezembro 2014
AS TRÉGUAS DE NATAL DE 1914: O SEU SIGNIFICADO NA ÉPOCA E A ELABORAÇÃO DO MITO ACTUAL
O mapa acima (atenção: está orientado para Leste, o Norte fica para a esquerda) procura sintetizar o conjunto de operações da Frente Ocidental no Outono de 1914. Os historiadores militares acabaram por as baptizar de Corrida para o mar: tendo-se enfrentado no centro de França em Setembro, na Batalha do Marne, os dois exércitos tentaram depois flanquear-se mutuamente deixando tropas em guarnição ao longo da linha de contacto. Noutros conflitos anteriores, os exércitos ter-se-iam esfarelado no processo de distribuição dos efectivos por centenas de quilómetros de frente; neste, a existência de milhões de soldados permitiu que o processo prosseguisse até ao Canal da Mancha, onde teve que terminar. Aprecie-se o percurso dessa linha traçada no mapa acima, uma linha paralela de cor verde do lado de cima (assinalando as tropas alemãs) e azul (francesas), vermelha (britânicas) ou azul clara (belgas) do outro lado. É a partir daí que a Primeira Guerra Mundial se caracteriza por ser a guerra das trincheiras. Umas trincheiras muito simples, escavadas, que, a princípio se limitavam a ser guarnecidas por tropas de infantaria, como são retratadas na fotografia abaixo. E eram as próprias circunstâncias que as levavam a assumir naturalmente um comportamento defensivo:
nos manuais militares não se havia previsto aquele tipo de impasse numa guerra que, pelos mesmos manuais, já devia ter sido vencida por aquela altura. A produção de guerra não acompanhava o material gasto pelos exércitos em operações, faltava artilharia, munições, nada fora previsto sobre a rotação dos efectivos empenhados na frente de combate, a questão de reabastecer mais de um milhão de homens dispersos ao longo de centenas de quilómetros era um novo desafio para a logística da época. À entrada do Inverno de 1914/15, havia imensos aspectos comezinhos a organizar antes que as melhores cabeças dos estados-maiores se debruçassem sobre as tácticas que permitiriam a ruptura da frente inimiga, o grande quebra-cabeças para o qual só se viriam a descobrir soluções dali por três anos e meio. Tréguas episódicas já se haviam começado a registar ao longo da frente desde Novembro de 1914. Muitas dessas tréguas decorriam daqueles entendimentos tácitos baseados na própria capacidade de retaliação e por motivos bem prosaicos e imediatos do bem-estar das tropas. Do género: nós não atiramos sobre a carreta que traz o vosso rancho quente e vocês não atiram sobre a nossa;
ou então: não se dispara sobre quem esteja a cagar, senão isso obrigar-los-ia a todos a fazer as necessidades nas respectivas trincheiras, o que as tornaria (ainda mais) insuportáveis. Contudo, o que aconteceu em 25 de Dezembro de 1914 foi bastante mais do que esses entendimentos informais: chegou a haver uma verdadeira confraternização entre inimigos na no man's land. Porém, quando se observa o punhado de fotografias que chegaram a ser tiradas durante esse dia de Natal de 1914 (acima e abaixo), quem consiga reconhecer os uniformes apercebe-se as fotos apenas mostram soldados britânicos e alemães. E a verdade é que, com apenas nove divisões em linha¹ (e como se comprova pelas zonas pintadas a vermelho do mapa inicial), os britânicos ocupavam apenas 50 dos mais de 750 km que a Frente Ocidental viera a ter de extensão, das praias junto ao Canal da Mancha até à fronteira com a Suíça. O convívio que é agora tão celebrizado ocorreu numa parcela muito reduzida de toda a linha da Frente porque, do lado de cá das trincheiras, guarnecido numa ampla maioria por tropas francesas, nunca houve esse mesmo espírito de empatia para com o inimigo. Da parte dos franceses (e também dos belgas) não poderia haver essa cordialidade para com inimigos que haviam invadido e ocupado uma parte (substancial no caso dos belgas) dos seus respectivos países.
Nos Natais dos anos de guerra que se seguiram (1915, 1916, 1917) já a ritualização da violência na nova guerra das trincheiras fora de tal forma apreendida que o episódio não teve quaisquer hipóteses de se repetir. O que tem acontecido muito depois disso (talvez de há uns cinquenta anos para cá) é que o mesmo episódio da Trégua de Natal de 1914 tem sido recontado de uma forma progressivamente mais benigna, aparecendo agora como se se tratasse de um protesto premonitório dos soldados às sangrentas batalhas que se seguiriam – algo que nunca poderia ter existido porque, esses soldados de ambos os lados, não só ainda pensavam que o seu lado venceria o conflito em poucos meses, como não tinham ainda a mínima ideia do que viriam a ser os custos humanos da crescente industrialização da guerra. Mais ridículo do que isso, nas últimas versões e para que a correcção política pró-europeia seja melhor preservada, até os franceses vêm confraternizar, conforme acontece no filme abaixo, datado de 2005. É sabido quanto a época de Natal é tempo de boa vontade, mas, por muito receptivos que sejamos a ela, creio que é desnecessário que, para que exista, atropele uma parte substantiva da verdade.
¹ As 1ª, 2ª, 3ª, 4ª, 5ª, 6ª, 7ª e 8ª divisões britânicas e também a divisão Meerut (indiana). Em comparação com essas 9, por essa altura os franceses alinhavam 74 divisões.
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25 dezembro 2014
O DISCURSO DE NATAL
Como acontece na esmagadora maioria dos países cristãos, também no Reino Unido a rainha Isabel II usa os meios audiovisuais da comunicação social para proferir a sua mensagem de Natal, cumprindo uma tradição de décadas. O curioso, com um certo toque nostálgico para a geração a que pertenço, nesta fotografia acima da transmissão televisiva de uma dessas alocuções (a do Natal de 1968), é que o colorido do conjunto é o das luzes e decorações da árvore de Natal, porque o ecrã ao seu lado exibe tão só aqueles matizes de cinzento que caracterizavam as vetustas televisões a preto e branco. A fotografia é de Linda McCartney.
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A PROPÓSITO DO NATAL DE HÁ CEM ANOS NAS TRINCHEIRAS
O Natal de 1914 foi vivido nas trincheiras da Frente Ocidental¹ pelos soldados alemães, franceses e britânicos com o espírito de improvisada resignação que a foto acima documenta para o primeiro caso. Há um episódio associado a umas Tréguas de Natal celebradas tácita e explicitamente pelos antagonistas nessa quadra que foi originalmente um episódio menor que o tempo tem vindo a ampliar despropositadamente o significado. Ficará para outro dia explicar e fundamentar porque assim o penso. Para hoje queria, com o pretexto da data, recuperar o significado da solidariedade que há que prestar nestes dias para com os militares quando nestas circunstâncias e evocar os Natais que muitos veteranos portugueses passaram há mais de 40 anos em locais remotos de África e que provavelmente nunca mais esquecerão. Recorde-se quanto, nesses dias, era quase imperioso - e muito mal visto se assim não fosse porque os exemplos têm de vir de cima - que os comandantes-chefe visitassem o maior número possível de unidades durante a quadra e dessem mesmo o exemplo de passar a noite da consoada numa delas. Quando hoje vejo as organizações de caridade a realizarem ceias de natal com mais de uma semana de antecedência em relação à consoada e escolhendo datas que sejam o menos incómodas possíveis para a agenda dos benemerentes, pergunto-me por onde anda a parte do espírito de sacrifício que torna verdadeiramente genuína a vivência cristã da quadra que apregoam?
¹ Na Frente Oriental, por causa da diferença do calendário litúrgico dos Ortodoxos, os russos celebravam o Natal em data distinta da dos seus inimigos alemães e austro-húngaros.
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24 dezembro 2014
FELIZ NATAL!
Os votos são tão mais sinceros quanto a estética é sóbria e os enfeites ainda mais, compatibilizando o espírito da quadra com os tempos difíceis, que alguns, afinal, consideram ainda não suficientemente difíceis. A fotografia é de Josef Koudelka.
23 dezembro 2014
SOBRE AS DISSIDÊNCIAS E AS DOENÇAS INFANTIS QUE ATACAM AS IDEOLOGIAS
A apostasia de Carlos Abreu Amorim, cegado pelo Espírito Santo numa estrada de Damasco, cuja visão se terá recuperado à mesa de uma comissão parlamentar e que veio a ser proclamada nos jornais, parece estar a ser o mote para uma verdadeira reedição de aprofundados debates ideológicos na imprensa portuguesa. O fenómeno é giro demais para deixar escapar a analogia com o que me lembro que acontecia outrora com as interpretações dos comunismos, qual delas a mais pura, conforme o autor. O palavrão moderno deixou de ser comunismo para passar a ser liberal mas, no meio de referências teóricas necessariamente diferentes, as estruturas argumentativas para defender a causa própria parecem permanecer rigorosamente as mesmas: a) Evocando que dissidências e cisões são óptimas ocasiões para clarificar aqueles aspectos do comunismo que têm sido distorcidos pela propaganda hostil, de onde resulta uma clarificação tão decantada que se torna uma utopia; b) Alegando que os dissidentes não são nem nunca foram verdadeiros comunistas, que o comunismo é uma outra coisa distinta, esvaziando de sustentação as causas da dissidência. Mas o melhor sobre o tema, nestes casos em que há intervenientes demais a reclamarem-se detentores da razão, seja do que era o comunismo, seja do que é ser-se liberal, é mesmo retratá-los através do monólogo de Hermann José: Eu é que sou o presidente da Junta!
DO SPUTNIK AO «KAPUTNIK» ATÉ À CORRIDA ESPACIAL
O início da corrida espacial foi verdadeiramente acirrado pelos relatos da comunicação social norte-americana e pelo impacto que esses relatos tiveram na sua própria opinião pública. É verdade que o ano de 1957 fora proclamado na ONU como o Ano Internacional da Geofísica e que os Estados Unidos, numa pose não desprovida de sobranceria, se haviam comprometido a prosseguir os seus esforços para a colocação de um satélite artificial em órbita. Mas, o impacto do feito dos soviéticos quando, em 4 de Outubro de 1957, colocaram eles o Sputnik-1 em órbita, nunca poderia ter sido entendida cabalmente pelo americano médio se os jornais e a restante...
...informação da época não tivessem trabalhado devidamente a dimensão da afronta, inserindo-a no quadro da Guerra-Fria que então se travava. E tudo o que de mau se descrevera só se agravou quando, um mês depois, os soviéticos colocaram em órbita um segundo satélite ainda maior, levando uma cadela a bordo (3 de Novembro de 1957). Por essa altura, os poderes norte-americanos ainda se atabalhoavam na organização da reacção ao ultraje que, entretanto, parecera apoderar-se de toda a sua opinião pública. A resposta, marcada para 6 de Dezembro de 1957 teve que ser marcada por uma cobertura mediática que os soviéticos...
...haviam cuidadosamente sabido evitar, conscientes da falta de fiabilidade das novas tecnologias. E, como prognosticaria o Murphy da Lei que leva o seu nome (e que, a propósito e não por acaso, trabalhava num ramo colateral ao da astronáutica), como era para dar fiasco, deu: diante de todos, o foguetão que devia levar o satélite para órbita subiu um penoso metro... e despencou-se em chamas. Homenagem aos construtores do putativo satélite baptizado com o visionário nome de Vanguard-1, esse resistiu ao desastre e continuou a transmitir no meio dos destroços... Mas os jornalistas não pareciam numa disposição humorística ou capazes de...
...aceitar ver o lado optimista do incidente: no dia seguinte ao fiasco as primeiras páginas estavam cobertas de trocadilhos sarcásticos a respeito do que acontecera rebaptizando o satélite: flopnik, kaputnik, etc. Quando dali por quase dois meses, a 31 de Janeiro de 1958, os Estados Unidos conseguiram finalmente colocar um satélite em órbita, o Explorer, accionando um projecto (foguetão e satélite) concorrente ao do Vanguard, a atitude vitoriosa desproporcionada como o acontecimento foi mostrado e noticiado explicava-se mais por se tratar do clímax do enredo psicológico colectivo entretanto gerado do que pelos méritos científicos objectivos da proeza.
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SEGURANÇA E DEFESA NA QUADRA DE NATAL E FIM DE ANO
Apesar de a sua agenda não nos dar conta do seu paradeiro por estes dias, em jeito de postal de Boas-Festas endereça-se, através deste apropriado vídeo, os tradicionais votos da quadra a Sua Excelência o ministro da Defesa Nacional, José Pedro Aguiar-tracinho-Branco, um dos pilares mais sólidos da equipa governamental. Adenda de dia 25: Afinal Sua Excelência, o ministro da Defesa Nacional, estava em visita às tropas portuguesas estacionadas no Kosovo. Ainda bem. Pena que a agenda do ministro não o mencionasse, como se pode constatar abaixo. Será um assunto classificado?
22 dezembro 2014
SIMULAÇÕES FEITAS COM RECURSOS LOCAIS
Não fosse o nosso tradicional eurocentrismo (e uma certa condescendência para com os outros povos...) e aperceber-nos-íamos de imediato o que liga estas duas fotografias: o fazer de conta. Se na África subsariana se reúnem em volta de uma mesa de barro seco e caniços pretendendo que é uma mesa de bilhar, na Europa setentrional vai-se para um sítio arenoso à beira mar fingindo que se trata de uma praia.
CONVERSÕES OCORRIDAS NAS INÚMERAS ESTRADAS QUE LEVAM A DAMASCO
Carlos Abreu Amorim (à esquerda) nasceu em 1963. João Carlos Espada nasceu em 1955. Os oito anos de idade que os separam são contudo divididos por um enorme fosso geracional. Se ambos são hoje dois entusiasmados liberais, o primeiro é-o, por assim dizer, desde nascença, embora tenha agora anunciado ruidosamente – e daí a razão deste poste – que o deixou de o ser. O segundo só se tornou liberal depois de um rocambolesco percurso que o fez abraçar (com o entusiasmo que dispensará a tudo o que abraça) inicialmente o marxismo-leninismo-maoismo da UDP nos anos 70, para depois chegar ao liberalismo numa navegação ideológica à bolina da extrema esquerda para a direita, numa caravela baptizada de Clube da Esquerda Liberal, viagem marítima que durou a década seguinte, espaço ideológico onde finalmente se estabeleceu e onde veio a medrar. Da última vez que dei por Espada aí pela imprensa, dava ele parabéns a Mário Soares por, entre outras coisas, ter feito aquilo a que ele, Espada, se opusera no momento em que Soares o fizera a 25 de Novembro de 1975, mas com que ele agora concorda. Não é assim muito coerente mas parece ter sido remunerador. Mas, como assinalei acima, a novidade que motiva este texto não é a sedentarização de alguém que foi um nómada intelectual na juventude (Espada), mas a inesperada nomadização de quem a atravessara - à juventude - como um acomodado sedentário ideológico (Amorim) e que acabou de anunciar ribombantemente (e ele sabe-o lá fazer de outra forma?...) numa entrevista que Já não é um liberal: O estado tem de ter força.
Ora não restam duvidas que a conversão de Carlos Abreu Amorim surpreende tanto que lembra a que se verificou com Saulo na estrada de Damasco (Actos dos Apóstolos 9: 1–30, relembremos, já que ele reintroduziu a moda de citar antigos textos religiosos). Mas também esta transumância é capaz de deixar inúmeras interrogações atrás dela: Será que ser-se liberal estará a sair de moda? Se sim, e porque estarão a deixar-se ficar para trás, será que o sempre atento João Carlos Espada – e outros – estarão a perder a sensibilidade do que é estar-se na moda? Ou será que existe um limite máximo de piruetas ideológicas por carreira intelectual e há veteranos – como Espada – que já as gastaram todas? Ou será, tão simplesmente, que o gesto de Carlos Abreu Amorim se virá a revelar prematuro e/ou inconsequente?
21 dezembro 2014
FORÇAS DE OCUPAÇÃO
A 23 de Agosto de 1941, registou-se o primeiro acto de violência contra os ocupantes alemães de Paris, concretizado pelo assassinato na estação de metro de Barbès-Rochecouart (a norte da cidade) de um aspirante da Kriegsmarine, Alfons Moser. Como seria previsível, a retaliação alemã não se fez esperar: um amplo leque de reféns passíveis de execução retaliatória foi sendo reduzido à custa de penosas negociações entre as autoridades alemãs e as de Vichy até que a morte de Moser foi vingada pela execução na guilhotina de seis indivíduos, três deles delinquentes de direito comum, os outros três militantes comunistas. A massa ainda discreta e informe daqueles franceses que, desde 1940, queriam fazer alguma coisa contra a ocupação alemã, acolheu de olhar desconfiado estes comunistas recém-chegados à Resistência que haviam passado todo o ano anterior (Junho de 1940 - Junho de 1941) numa benévola neutralidade para com a ocupação alemã, conforme as instruções recebidas de Moscovo (decorrentes da assinatura do Pacto Germano-Soviético) e que num instante súbito haviam passado dessa indiferença para a resistência o mais militante possível, logo depois das notícias da Invasão da União Soviética em 22 de Junho de 1941, num frenesim que pareciam agora interessados em alimentar de vítimas. O atentado parecia propositadamente concebido para assinalar o segundo mês do início da Operação Barbarossa.
Nos Estados Unidos, sendo raro, por esses anos da década de 1940, os polícias também se abatiam, ainda que só ocasionalmente: basta recordarmo-nos da cena em O Padrinho em que Michael Corleone mata o capitão McClusky conjuntamente com o mafioso Solozzo, providenciado que ao assassinato se seguiria uma campanha de imprensa que o expusesse como o polícia corrupto que era (abaixo). Mas ao contrário das outras polícias de países ocidentais, a norte-americana nunca depois disso se preocupou em persuadir, apenas em intimidar e nesse sentido podia ser tão alienígena ao corpo social como alemães entre franceses numa França ocupada. A sensação gerada na opinião pública pela cobertura mediática destes últimos casos de despotismo policial será talvez capaz de, pela primeira vez, obrigar a uma inflexão nisso. O jingle de Bad Boys que faz parte da banda sonora da série televisiva Cops é capaz de estar em baixa. Os discursos oriundos da Casa Branca de simpatia tanto pelas vitimas da polícia como, mais recentemente, pelas vítimas policiais estarão a tentar amenizar o quadro em que, pelo menos para as comunidades marginalizadas dos Estados Unidos e por muito que considerem o actual presidente um dos seus, as ruas do seu país são agora apresentadas ostensivamente na informação como território ocupado pelos outros.
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DESDE «A HEIDI E O AVÔZINHO» ATÉ À «VERMELHA DE NEVE E OS SEIS COORDENADORES»
Hoje que se comemoram os 77 anos da estreia cinematográfica de Branca de Neve e os Sete Anões permitam-me ironizar como as últimas soluções directivas do Bloco de Esquerda se parecem inspirar consecutivamente em histórias da literatura infantil: havia a dupla constituída pela Heidi e o Avôzinho; depois de um impasse que durou uma semana no final do mês passado, a antiga Heidi aparece-nos agora mascarada no seu novo papel de Vermelha de Neve, acompanhada dos Seis Coordenadores, todos iguais em tamanho que se desconfia não ser grande... Apesar do enredo ser conhecido e apesar das interpretações dadas pelos analistas à retórica, parece muito remota a hipótese de António Costa aparecer no enredo como príncipe.
POR OCASIÃO DOS 25 ANOS DO ÚLTIMO DISCURSO DE CEAUSESCU ou A CENOGRAFIA DE UM COLAPSO
Há precisamente 25 anos, 21 de Dezembro de 1989, o regime romeno parecia colapsar. E isso acontecia porque a cenografia de uma cerimónia tradicional fugiu pontualmente ao convencionado. A multidão congregara-se (e também fora congregada...) diante da varanda de onde o ditador Nicolae Ceausescu iria fazer o tradicional discurso de Natal - que só não era de Natal porque um estado marxista-leninista não tinha costumes desses. A assistência mais segura posicionava-se junto à varanda para largar os hurras canónicos mas a intervenção esteve interrompida pelas vaias dos outros, vaias essas que o tempo entretanto decorrido tem tornado cada vez mais certo que foram tão espontâneas quanto o eram os aplausos. Porém o inesperado da cena, as vaias, provocaram não apenas uma interrupção do discurso do orador (como se observa no vídeo acima)...
...como sobretudo uma suspensão da emissão televisiva em directo que transmitia a cerimónia para a Roménia e para o Mundo (veja-se este noticiário francês) projectando uma imagem de fragilidade que se aguardava de um regime que se recusava a tombar como já acontecera com os restantes equivalentes do bloco socialista, depois da queda do Muro de Berlim. Os vídeos que procuram relembrar a cena, como aquele mais curto que escolhi para encimar este poste são montagens distorcidas realçando um Ceausescu temeroso quando o vídeo completo do discurso com cerca de 20 minutos exibe uma cerimónia recuperada depois da perturbação inicial, em que a velha raposa, farejando provavelmente o perigo, anuncia aumentos de 10% nos ordenados, nas pensões, nas prestações sociais. Não lhe iria servir de nada: seria julgado sumariamente e executado apenas quatro dias depois.
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20 dezembro 2014
MULHERES PERIGOSAS NESTES DIAS QUE SE AVIZINHAM
Não sei se se recordam da cena de Tootsie em que ela, equipada de dois
impressionantes conjuntos de sacos de compras, um em cada mão, disputa, enfrenta e
derrota um concorrente pela posse de um táxi nova-iorquino, a golpes de sacos.
Pois bem, hoje não foi preciso táxi, mas eu ia acompanhado de alguém que, pelo
arsenal, teria sido até capaz de intimidar Dustin Hoffman.
EM PORTUGAL NÃO SE RECEBE MAL
A fila acumulara-se à porta daquele restaurante da Baixa lisboeta em dia de intenso frio e as circunstâncias haviam feito que uma mesa originalmente concebida para quatro fosse dividida entre um casal de nativos e um casal de turistas. Corteses e agradecidos por uma cedência que não parecia comum na sua terra, os segundos embrenharam-se na leitura da página em francês do menu enquanto os vizinhos, mais rotinados, se despacharam com os seus pedidos. Ou porque a mestria do tradutor para francês não havia sido inspirada ou por uma outra razão qualquer a hesitação ainda se arrastava quando os pratos da vizinhança chegaram: dois bacalhaus apropriados à quadra, à Brás para ele, cozidinho com grão para ela. Prazenteiros, funcionando quase como anfitriões, a dupla portuguesa não tardou a reagir às perguntas naturais dos vizinhos do lado propondo que os turistas provassem o Bacalhau à Brás para ajuizar. E lá foram os turistas servidos de uma entradinha de Bacalhau à Brás roubada à própria bandeja. Quando, na mesa do lado, me levantei para sair, já se aceitara a proposta que eles também provassem a versão cozida com grão, para comparar. Será tão frequente assim nos outros países do Mundo que os vizinhos de uma mesa de restaurante nos proponham assim, espontâneos e às suas próprias custas, um menu de degustação da especialidade local?
19 dezembro 2014
OS TRÊS ÚLTIMOS HOHENZOLLERN
Hohenzollern era o nome de família dos reis da Prússia (1701-1918), depois imperadores da Alemanha (1871-1918). Guilherme II (1859-1941), o último a ostentar esses dois títulos (1888-1918) aparece ao centro da fotografia acompanhado do seu filho primogénito Guilherme (1882-1951) e do seu neto, primogénito do anterior, e também chamado Guilherme (1906-1940). A fotografia foi tirada nos Países Baixos em 1927, onde Guilherme II havia tido que se exilar depois do derrube da monarquia no final da Primeira Guerra Mundial. Há na fotografia um contraste interessante entre as semelhanças da hereditariedade (notória) e as diferenças de atitude de cada uma das gerações. Há o formalismo traquejado do avô Guilherme, encarnando a tradição, habituado a predominar em cena e que assume a pose para a fotografia cruzando os braços atrás das costas para esconder uma, mais do que conhecida, deformidade do seu braço esquerdo. O contraste é grande com a atitude de seu filho, uma mão casualmente apoiada nas costas, retirando implicitamente a dignitas que o progenitor quereria conferir à ocasião. A partir da pose é tentadora a especulação que, a pensar numa restauração, ele acharia que ela teria de ter lugar num figurino modernizado. As aproximações que tentou fazer a Adolf Hitler e os aproveitamentos que este último tentou fazer da sua pessoa vieram a demonstrar que seria demasiado ingénuo para a missão. O que nos leva ao ar compenetrado da geração mais nova, aquela que já não havia vivido as responsabilidades da representação e que tenderia a ver o destino dos Hohenzollern de uma forma mais abstracta. Com a mesma expressão séria do avô, ao contrário deste que olha altivo por cima, Guilherme fixa a câmara, como se o preocupasse ser, não parecer. O resto da sua vida comprová-lo-á. Casou com a mulher que gostava, morganaticamente, o que o fez ser excluído da sucessão. Veio a morrer por ferimentos recebidos em combate quando da campanha de França em Maio de 1940. Por uma vez, os feitos de um Hohenzollern incomodaram Adolf Hitler à conta do capital de simpatia pró-monárquico que o seu sacrifício provocara na opinião pública alemã. Na sequência e por decreto especial, todos os membros das dinastias das antigas monarquias alemãs foram proibidos de servir em unidades combatentes da Wehrmacht. Depois disso e depois de a Alemanha ter sido reduzida a ruínas em 1945, Hohenzollern tornou-se um apelido como outro qualquer.
O PALHAÇO BATATINHA E O PALHAÇO BATATÃO
Não tendo o objectivo directo de nos fazer rir, a função destes programas acima é análoga à dos diálogos humorísticos, animando-nos e pretendendo convencer-nos que aquilo (normalmente ribombante) que por lá se diz é capaz de ter consequências que mudem a realidade. Não muda e não é para mudar. Na verdade as estrelas andam há anos nisto, sendo conhecidas e confiáveis: já sabemos de antemão o que vão dizer. Olhando para o fenómeno com distanciamento, há que reconhecer que Marinho Pinto, Paulo Morais ou ainda Medina Carreira fazem tanto parte do circo do entretenimento televisivo quanto Hermann José ou Ricardo Araújo Pereira.
18 dezembro 2014
A PENSAR NUM ENREDO PARA UM FILME DE HOLLYWOOD
Se se tratasse de um enredo de um daqueles filmes de Hollywood, haveria uma cena no fim do mesmo em que um dos funcionários bonzinhos iria perguntar a Cavaco Silva se ele não estranhara que as acções da SLN que Oliveira e Costa lhe vendeu em 2001 fossem ao preço pelas quais as comprou. É que eles estranharam quando se depararam com um envelope com um depósito com 4.407 euros no lixo. As pessoas não costumam tratar assim o dinheiro, deitá-lo fora. Em conhecimentos de economia e em exemplo de honestidade não sei quem é que terá prestigiado quem nesta cerimónia... Adenda do dia seguinte: Em contraste, acho que Cavaco Silva esteve bem em deixar cair o processo do homem que viria a ser julgado por o ter insultado há ano e meio em Elvas.
A PRIVATIZAÇÃO DA POLÍCIA
Já de há muitos anos (27, para ser preciso), muito antes de se tornar mundialmente famoso como Dr. House, Hugh Laurie tem este sketch contracenando com Stephen Fry, onde o tema é a privatização da polícia. Laurie regressa de férias, descobre que haviam roubado o seu carro e foi à esquadra para apresentar queixa, ignorando que entretanto a polícia fora privatizada. Quem o recebe é muito mais simpático do que acontecia tradicionalmente, mas aquilo que se sucede depois deixa bastante a desejar: oferecem-lhe uma bebida, mas não há o chá que pediu. A linha telefónica que usara antes mandara-o para um atendedor automático que só lhe dava música. Quando explica o seu problema recebe uma brochura na volta, explicando as três categorias de serviços de recuperação de automóveis furtados – super, adorável e espectacular. Este último é obviamente o mais caro, mas, como lhe explica pacientemente o polícia de turno, para além do maior número de efectivos atribuídos às investigações, inclui a (hipotética) lavagem e enceramento da viatura depois de recuperada! A personagem de Laurie não sabia mas já não estava numa esquadra de polícia: tornara-se uma delegação da nova empresa intitulada Lei Britânica, SARL. O resto do sketch é engraçado mas já não é fundamental para perceber qual o sentido da sátira. Embora datada do período Thatcher, vem muito a propósito dos fundamentalismos privatizadores que observei por aí, agora a respeito da TAP.
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Literalmente... A PASSARINHA
O decoro, mas também um parecer da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), aconselham-nos que a publicação da fotografia supra seja acompanhada da tradicional bolinha vermelha no canto superior esquerdo. Faço votos que ninguém a leve a mal: trata-se tão somente de um nu. Se não artístico, pelo menos ornitológico.
17 dezembro 2014
SOB O SIGNO DO DEVIR E DO DEVER SOCIALISTA
Ainda a pretexto de fotografias de cabisbaixos, deixem-me afixar esta que é para ser apreciada em conjunto com a música que, tão a propósito, abaixo a acompanha. Como se deduz pelo que consta da parede a fotografia data de 1972, ocasião em que se celebravam os 50 anos da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), embora a atitude dos presentes não seja propriamente de efusiva celebração. A bonita peça musical que a acompanha, muito posterior e da autoria de Yann Tiersen, adequa-se ao espírito dos presentes. Faz parte, aliás, da banda sonora do filme Adeus Lenine!, o mesmo Lenine que, da parede, nos dedica aquele olhar confiante. Será que a antevisão que, dali por vinte anos, em 1992, já não se comemorariam os 70 anos da URSS, se sabida, modificaria a atitude dos fotografados?
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A DATA DA FOTO
São raras as fotografias que têm o privilégio de assinalar o dia e hora da sua feitura como acontece com o exemplo acima, uma fotografia na Praça dos Restauradores incluindo a fachada do Cinema Condes tirada na noite (que se suspeita quente) de Sábado, 18 de Agosto de 1956, pelas 21H36, já depois de jantar. Em Portugal, no Porto disputara-se a primeira etapa da 19ª edição da Volta a Portugal em Bicicleta. Lá fora, o Mundo vivia o embate do anúncio por Nasser da nacionalização do Canal do Suez.
Mas em geral as fotografias antigas às fachadas dos cinemas podem, pela identificação do filme em cartaz, datar, ainda que de forma aproximada, o ano em que ela foi tirada. Esta do Cinema Aviz, que passava então o filme Operação Montgomery será de 1959 ou 1960. O filme estreara em 1958 no Reino Unido (de onde era originário) sob o título I Was Mounty’s Double.
O Rolls-Royce Amarelo exibido pelo Cinema Mundial é também de origem britânica, mas um pouco posterior (1964) e o IMDB até nos informa a data da sua estreia em Portugal (Abril de 1965), o que remeterá a fotografia para esse ano.
Quanto ao Cinema Olímpia, ele era conhecido por passar dois filmes simultaneamente. A antiguidade de ambos, Os Três Estarolas na Volta ao Mundo e Os Argonautas é praticamente coincidente: Junho e Agosto de 1963. Contando com a décalage com que os filmes eram então estreados entre nós a fotografia datará provavelmente de 1964, quiçá 1965.
16 dezembro 2014
«FOZZIE BEAR»
Ao longo de todos estes anos em que tenho escrito este blogue algumas pessoas me têm perguntado porque elegi a figura do Fozzie Bear para representar a minha imagem nestes meios. Num caso, mais do que questionado, até cheguei a ser insultado por me esconder anonimamente por detrás dele, do Fozi (assim nesta ortografia na acusação original). E em todos estes anos tenho-o mantido sem ter uma resposta precisa. Recordando as aparições originais do boneco nos Marretas (acima), as suas aparições eram tão desastradas e tão sem piada que me faziam desatar a rir. Seria um estilo de humor de vanguarda, que no Colégio Militar adquirira a qualificação de infelicidade – uma piada que adquirira qualidade e até fazia rir de tão desastrada. No mesmo estilo sofisticado, conheço quem ainda hoje reaja assim, rindo-se, das actuações mais infelizes do presidente Cavaco Silva, que se tendem a multiplicar - será da idade? Mas o fenómeno permanece inexplicável para mim: o que nos faz rir? Não sei. Fozzie consegue-o comigo. Wacka, wacka. Aos desempenhos actuais de Bruno Nogueira (no panorama nacional) ou de Jim Carrey (no internacional), por exemplo, considero-os com tanta falta de piada básica quanto os do Fozzie, mas deixam-me indiferente. O Bruno ainda se pode perceber, porque ele não abana as orelhas a assinalar a punchline como Fozzie fazia, mas Carrey até costuma fazer umas caretas adicionais com aquele mesmo objectivo e o resultado, sendo uma desgraça, é uma desgraça sem graça.
A MEMÓRIA COLECTIVA E OS HOMENS SANTOS DESTE MUNDO
Zandinga foi um fenómeno que despontou em Portugal no início dos anos 80, um aldrabão que rapidamente consolidou essa reputação quando teve a ousadia de prever factos que as pessoas tendiam a fixar. No exemplo acima, em Setembro de 1981, previa que o Benfica iria ganhar o campeonato que se iniciava... e ganhou o Sporting. Apesar de convidado todos os anos para ir à televisão anunciar o que traria o novo ano, Zandinga adquiriu a reputação hoje herdada pelo professor Marcelo: aquilo que ele prevê... depois não acontece. Em política também não se podem fazer promessas que as pessoas fixem. É clássico o exemplo de George Bush (pai) que prometeu que não ia haver novos impostos. E está a tornar-se um outro clássico o de Barack Obama, que anda há seis anos a prometer que vai encerrar a prisão de Guantanamo. Não fora a fama de santidade do papa e eu pensaria que Francisco está a ser irónico com o presidente norte-americano quando se anuncia publicamente a sua disposição em ajudá-lo a encerrar a famosa prisão de Cuba. E no entanto, por outras pequenas notícias que se lêem por aí, como esta em que se fica a saber que Francisco se mostrou indisponível para receber o Dalai Lama, vê-se que a piedade de Francisco é a de um santo católico, daqueles que caminha com os pés bem assentes no chão...
15 dezembro 2014
«TWO DOWN: ONE TO GO»
Se eu admitir honestamente que o plano que eles se propunham implementar era muito difícil de ser bem-sucedido, será que recebo em troca a admissão honesta que a execução do mesmo se revelou um fiasco? É que, pelas previsões originais do programa da tróica, por esta altura a nossa economia cresceria a 2,5% ao ano e a taxa de desemprego cifrar-se-ia nos 12,5%, para não tornar a mencionar o défice orçamental de 2,3%. E isto é jogando em casa, ou seja, usando apenas as estatísticas elegidas pelos próprios para avaliação do sucesso do programa, sem referências a outros indicadores económicos e sociais. Se isto não são constatações de um fracasso completo nos objectivos a que o programa se propunha, o que é que então o será?
UM PEQUENA HISTÓRIA DA BETERRABA NA EUROPA E DE COMO PORTUGAL PASSOU AO LADO DELA
O aproveitamento da beterraba como produtora de açúcar tem pouco mais de 200 anos e nasceu de circunstâncias políticas. O bloqueio continental imposto pelos britânicos à Europa continental sob Napoleão, conjugado com a independência do Haiti, que fora até então o maior fornecedor daquele produto à França, fez com que se acelerasse a investigação e o incentivo à plantação daquela planta como substituto do tradicional açúcar de cana, que era ainda então um produto relativamente raro na maioria dos países europeus. A beterraba podia-se cultivar em zonas de clima temperado, ao contrário da cana, que exigia climas tropicais que estavam agora fora do alcance dos europeus do continente por causa da acção dos navios da Royal Navy. As raízes das estirpes originais só continham cerca de 5% de sacarose mas a investigação agrária conseguiu nos anos que se seguiram que a percentagem subisse significativamente: actualmente ela pode chegar a atingir cerca de 20%, o que é mesmo superior à proporção que se pode encontrar nos talos da cana-de-açúcar concorrente (12 a 16%). Mas a distinção entre os dois açúcares continua a fazer-se pela qualidade e não nos estamos a referir somente ao aspecto culinário: por exemplo, o etanol obtido a partir do açúcar de cana é, enquanto combustível, energeticamente mais eficiente do que o seu homólogo de beterraba. Porém, ao longo do Século XIX, a cultura da beterraba foi-se expandindo para os grandes países europeus como a Alemanha e a Rússia, normalmente acompanhadas de tarifas aduaneiras proteccionistas incidindo sobre o açúcar de cana cujo comércio mundial era controlado pelos britânicos. Logo em 1813, Napoleão Bonaparte proibira a importação de açúcar de cana vindo do Caribe e da América do Sul. Só os subsídios faziam a actividade subsistir mas, num remate irónico da História, até o Reino Unido, quando se viu por sua vez bloqueado pela ameaça submarina alemã durante a Primeira Guerra Mundial, acabou por ter de recorrer à plantação de beterraba açucareira. O Reino Unido tornou-se hoje no 9º produtor mundial de uma lista que é encabeçada pela Rússia, a que se segue a França, os Estados Unidos, a Alemanha e a Ucrânia. Outro grande produtor europeu é a Polónia. Mas importa esclarecer que só 20% do açúcar actualmente consumido em todo o Mundo provém da beterraba; o resto é de cana. E a produção continua a ser fortemente subvencionada embora de formas mais sofisticadas que as interdições à importação e as pesadas pautas aduaneiras de outrora.
Importa esclarecer, embora de forma simplificada, como a história da produção do açúcar em Portugal quase não tem nada a ver com a do resto da Europa acima descrita. Começando pelo surto de prosperidade vivido na Madeira dos Séculos XV e XVI com a produção de açúcar de cana para o mercado europeu. E que continuou depois com a colonização do Brasil, que ainda hoje é o maior produtor mundial daquele produto. Uma outra pista para compreender a convivência antiga de Portugal com o açúcar vê-se pela riqueza e variedade da nossa doçaria tradicional quando em comparação com as outras gastronomias europeias. Pequeno mercado, habituado desde cedo a ser abastecido do exterior, Portugal terá passado completamente ao lado do ciclo desenvolvimentista do açúcar de beterraba descrito mais acima. Até à nossa adesão à CEE. Quando, para ocupar uma quota de produção de 70 mil toneladas de açúcar de beterraba que nos coubera numa daquelas negociações, se construiu uma fábrica de refinação de beterraba em Coruche, para processar a produção nacional que se tornou conveniente que existisse para justificar a quota. Entretanto, em 2006, a fábrica veio a ser reciclada para refinar açúcar de cana. Como se explica neste texto que deixo disponível para quem o quiser consultar, como os preços à produção são totalmente artificiais (de subsidiados), qualquer decisão tomada a uma mesa de negociações pode mandar automaticamente quase todos os produtores portugueses para fora do mercado. Ou tornar a produção de beterraba miraculosamente rentável. A causa dos produtores nacionais de beterraba pode ser abraçada pelos políticos de todos os quadrantes políticos (do PSD ao PCP) e ainda hoje, pela enésima vez, se anuncia que vai recomeçar a produção de açúcar a partir de beterraba em Portugal, mas isto parece-me a Europa em toda a sua perversão, aquela que nos põe à cata de subsídios (normalmente concebidos para beneficiar os grandes países) para a produção daquilo onde não temos, nem vantagens comparativas, nem qualquer tradição. De uma certa forma diferente, faz-me lembrar aqueles tempos aberrantes do baixo cavaquismo em que chegámos a viver pela mesma hora de Berlim.
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