26 dezembro 2014

AS TRÉGUAS DE NATAL DE 1914: O SEU SIGNIFICADO NA ÉPOCA E A ELABORAÇÃO DO MITO ACTUAL

O mapa acima (atenção: está orientado para Leste, o Norte fica para a esquerda) procura sintetizar o conjunto de operações da Frente Ocidental no Outono de 1914. Os historiadores militares acabaram por as baptizar de Corrida para o mar: tendo-se enfrentado no centro de França em Setembro, na Batalha do Marne, os dois exércitos tentaram depois flanquear-se mutuamente deixando tropas em guarnição ao longo da linha de contacto. Noutros conflitos anteriores, os exércitos ter-se-iam esfarelado no processo de distribuição dos efectivos por centenas de quilómetros de frente; neste, a existência de milhões de soldados permitiu que o processo prosseguisse até ao Canal da Mancha, onde teve que terminar. Aprecie-se o percurso dessa linha traçada no mapa acima, uma linha paralela de cor verde do lado de cima (assinalando as tropas alemãs) e azul (francesas), vermelha (britânicas) ou azul clara (belgas) do outro lado. É a partir daí que a Primeira Guerra Mundial se caracteriza por ser a guerra das trincheiras. Umas trincheiras muito simples, escavadas, que, a princípio se limitavam a ser guarnecidas por tropas de infantaria, como são retratadas na fotografia abaixo. E eram as próprias circunstâncias que as levavam a assumir naturalmente um comportamento defensivo:
nos manuais militares não se havia previsto aquele tipo de impasse numa guerra que, pelos mesmos manuais, já devia ter sido vencida por aquela altura. A produção de guerra não acompanhava o material gasto pelos exércitos em operações, faltava artilharia, munições, nada fora previsto sobre a rotação dos efectivos empenhados na frente de combate, a questão de reabastecer mais de um milhão de homens dispersos ao longo de centenas de quilómetros era um novo desafio para a logística da época. À entrada do Inverno de 1914/15, havia imensos aspectos comezinhos a organizar antes que as melhores cabeças dos estados-maiores se debruçassem sobre as tácticas que permitiriam a ruptura da frente inimiga, o grande quebra-cabeças para o qual só se viriam a descobrir soluções dali por três anos e meio. Tréguas episódicas já se haviam começado a registar ao longo da frente desde Novembro de 1914. Muitas dessas tréguas decorriam daqueles entendimentos tácitos baseados na própria capacidade de retaliação e por motivos bem prosaicos e imediatos do bem-estar das tropas. Do género: nós não atiramos sobre a carreta que traz o vosso rancho quente e vocês não atiram sobre a nossa;
ou então: não se dispara sobre quem esteja a cagar, senão isso obrigar-los-ia a todos a fazer as necessidades nas respectivas trincheiras, o que as tornaria (ainda mais) insuportáveis. Contudo, o que aconteceu em 25 de Dezembro de 1914 foi bastante mais do que esses entendimentos informais: chegou a haver uma verdadeira confraternização entre inimigos na no man's land. Porém, quando se observa o punhado de fotografias que chegaram a ser tiradas durante esse dia de Natal de 1914 (acima e abaixo), quem consiga reconhecer os uniformes apercebe-se as fotos apenas mostram soldados britânicos e alemães. E a verdade é que, com apenas nove divisões em linha¹ (e como se comprova pelas zonas pintadas a vermelho do mapa inicial), os britânicos ocupavam apenas 50 dos mais de 750 km que a Frente Ocidental viera a ter de extensão, das praias junto ao Canal da Mancha até à fronteira com a Suíça. O convívio que é agora tão celebrizado ocorreu numa parcela muito reduzida de toda a linha da Frente porque, do lado de cá das trincheiras, guarnecido numa ampla maioria por tropas francesas, nunca houve esse mesmo espírito de empatia para com o inimigo. Da parte dos franceses (e também dos belgas) não poderia haver essa cordialidade para com inimigos que haviam invadido e ocupado uma parte (substancial no caso dos belgas) dos seus respectivos países.
Nos Natais dos anos de guerra que se seguiram (1915, 1916, 1917) já a ritualização da violência na nova guerra das trincheiras fora de tal forma apreendida que o episódio não teve quaisquer hipóteses de se repetir. O que tem acontecido muito depois disso (talvez de há uns cinquenta anos para cá) é que o mesmo episódio da Trégua de Natal de 1914 tem sido recontado de uma forma progressivamente mais benigna, aparecendo agora como se se tratasse de um protesto premonitório dos soldados às sangrentas batalhas que se seguiriam – algo que nunca poderia ter existido porque, esses soldados de ambos os lados, não só ainda pensavam que o seu lado venceria o conflito em poucos meses, como não tinham ainda a mínima ideia do que viriam a ser os custos humanos da crescente industrialização da guerra. Mais ridículo do que isso, nas últimas versões e para que a correcção política pró-europeia seja melhor preservada, até os franceses vêm confraternizar, conforme acontece no filme abaixo, datado de 2005. É sabido quanto a época de Natal é tempo de boa vontade, mas, por muito receptivos que sejamos a ela, creio que é desnecessário que, para que exista, atropele uma parte substantiva da verdade. 
¹ As 1ª, 2ª, 3ª, 4ª, 5ª, 6ª, 7ª e 8ª divisões britânicas e também a divisão Meerut (indiana). Em comparação com essas 9, por essa altura os franceses alinhavam 74 divisões.

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