Quem olhar para a fotografia acima espantar-se-á pelo disparate da montagem das portas dos privados daquela casa de banho que, ao contrário do que o nome sugere, não conferem qualquer privacidade aos utilizadores. Mas por detrás dessa observação mais simples pode tentar-se deduzir uma explicação para aquele resultado absurdo: não será possível que se esteja perante um empreiteiro particularmente obtuso que não se tenha apercebido que, para além da de urinol, as outras funcionalidades de uma retrete se fazem com o utente sentado (no caso duma utente todas as funcionalidades)? Ora bem, serve esta introdução quiçá imprópria para me perguntar porque é que certos debates aparecem lançados em bases inquestionáveis sem que quem opina se pergunte porquê, da mesma forma que ali acima o empreiteiro terá aparafusado as portas sem perceber o que é que se pretendia preservar.
Um exemplo concreto e actual é o da limitação dos mandatos autárquicos, cuja disputa até à decisão do tribunal constitucional se dividia entre os que achavam que sim e os que achavam que não, mas ambas as opiniões a jusante da necessidade, da aplicabilidade e da bondade a que houvesse uma limitação de tais mandatos. O que foi raríssimo ler foi discussões a respeito dos fundamentos para as limitações de mandatos sustentadas em exemplos históricos dos mesmos, como por exemplo o caso da presidência dos Estados Unidos, onde essa regra que impedia um presidente de se apresentar a um terceiro mandato vigorou durante os primeiros 150 anos da sua história, mas de forma informal: não estava escrita mas cumpria-se. Foi Franklin D. Roosevelt que rompeu o entendimento tácito e se apresentou a um terceiro mandato em 1940 (e a um quarto em 1944) invocando as circunstâncias excepcionais da Segunda Guerra Mundial. E foi só em 1951 que, através da aprovação do 22º Aditamento à Constituição, a limitação de mandatos presidenciais se tornou numa Lei impedindo, por exemplo e para citar apenas um caso mais flagrante, Ronald Reagan de se reapresentar em 1988.
Refira-se contudo, que esta limitação no poder executivo contrasta com uma tradição norte-americana de parlamentares (do legislativo) a ocuparem os seus cargos por décadas e décadas, não sendo incomum verem-se congressistas com carreiras superiores a 40 anos. Mas registe-se, antes de passar a um outro caso, como, no exemplo norte-americano, a coacção social e política pôde impor uma prática política de limitação dos mandatos sem recorrer a legislação. Em contraste, no caso da Rússia pós-soviética, mesmo existindo essa legislação, Vladimir Putin, presidente entre 2000 e 2008, contornou-a fazendo eleger para o cargo o comparsa Medvedev entre 2008 e 2012, para regressar à função presidencial em 2012. Mais aproximado do nosso tema, há ainda o exemplo da presidência portuguesa, cujo exercício está também constitucionalmente limitada a dois mandatos, com uma prática de onde se deduz que a nossa capacidade de aceitação dos dinossauros se aproxima muito mais da tolerância russa do que do exemplo norte-americano: não houvesse aquela limitação e os nossos presidentes do passado tenderiam a perpetuar-se: as vozes que dominam estabelecem que Eanes foi muito bom, que Soares deixou saudades e que Sampaio se emocionava muito… Em Portugal, este estampido de 2005 contra os dinossauros nas autarquias pareceu ter ido contra a tolerância social a esses fenómenos: fora da política, Jorge Nuno Pinto da Costa é presidente do Futebol Clube do Porto há 31 anos, Manuel Carvalho da Silva coordenou a CGTP-Intersindical por 25 anos, Manuela Eanes dirige o Instituto de Apoio à Criança há 30 anos, etc.
Ao fim e ao cabo, será assim tão importante limitar administrativamente aquilo que parece não incomodar a sociedade? Sobretudo quando se torna tão fácil contornar a lei? É que não é apenas o expediente em foco de se mudar para a autarquia vizinha, pode-se fazer como Putin e candidatar um substituto, como, de resto, já o faz Isaltino de Morais, mesmo na prisão…
Enfim, mais do que uma opinião definitiva sobre a limitação de mandatos autárquicos, o que gostaria de transmitir ao leitor é o meu desapontamento com a densidade e a amplitude do debate a que se assistiu.
Vale de facto a pena discutir o assunto, mas olhando para os fundamentos e as razões, questioná-las e pensar. Obrigada por (mais) esta reflexão.
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