24 fevereiro 2019

ODILE E O CHEGAR A FINGIR QUE É DOR, A DOR QUE DEVERAS SE SENTE

O livro de bolso de Georges Simenon passeava-se cá por casa, esquecido, comprado para posterior e eventual leitura num impulso que só a etiqueta afixada na contracapa consegue datar de Agosto de 2001. Quando os preços ainda podiam ser expressos em escudos (e francos) e as Twin Towers eram apenas um par de edifícios de Nova Iorque! Como seria o seu destino certo, foi um acaso que o fez ser lido e muitos anos depois, um romance curto (180 páginas), mesmo ao estilo do autor. No entanto, não apenas, a síntese afixada na contracapa...
«Aos dezoito anos, cansada de uma família onde ela se sente totalmente incompreendida, Odile decide partir de Lausana para Paris. A carta que deixa ao seu irmão indica claramente que ela está a pensar em suicidar-se.»
...mas também o desenrolar da trama acumulam as coincidências com aquilo que conheço da família Simenon, e Odile a assemelhar-se à filha do autor, Marie-Jo Simenon. Tantas são as semelhanças, que o editor não hesitou (embora não o anunciando) em colocar uma fotografia que descubro depois ser da própria Marie-Jo na capa. Por uma vez, aqueles dizeres precavidos que acompanham as obras de ficção, que personagens e factos são puramente imaginários (abaixo, à esquerda), são uma mentira flagrante. Odile tem a mesma idade (18 anos) e aparência e estilo de vestir que Marie-Jo teria na altura em que o livro foi escrito (1970/71), tem um irmão quatro ou cinco anos mais velho a quem tratam por Bob (na realidade, Johnny Simenon), vive em Lausana, na Suíça, tem um pai que se dedica à escrita. Pai esse que, de resto, nem se incomodou muito a dissimular as semelhanças com o que se sabia da sua intimidade. Só que as 180 páginas do enredo acabam bem: Odile ainda ensaia o suicídio, cortando os pulsos, mas é salva e tem um novo sobressalto de entusiasmo pela vida por causa do seu salvador, um estudante de medicina. Mas no romance mais extenso e não paginado da vida de Marie-Jo Simenon o desfecho viria a ser diferente: dali por sete anos, em 1978 com 25 anos, ela suicidar-se-ia com um tiro. Foi uma descoberta curiosa esta exposição própria disfarçada de ficção. Mas não foi uma descoberta estranha: Fernando Pessoa explicara-nos a atitude de Georges Simenon muitos anos antes.

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