25 junho 2024

A CAUSA DAS ÁRVORES

Há causas cuja discussão pública é obrigatoriamente enviesada. Sejam quais forem as circunstâncias, o pressuposto é que a remoção de árvores nos meios urbanos incomoda os circunstantes e é só a partir daí que se pode falar do assunto. Se Ideiafix era apenas uma personagem cómica do universo das aventuras de Astérix, hoje esses radicalismos são assumidos muito a sério.

«CAPITÃO DE ABRIL, CONSTRUTOR DA DEMOCRACIA, COMBATENTE PELA PAZ»... MAS TAMBÉM "DESTRUIDOR" DO REGIME NOVEMBRISTA

25 de Junho de 1984. Por ocasião da realização do 2º Congresso Regional da UDP no Machico (Madeira), o dirigente nacional Mário Tomé destacava-se pelo tom inflamado e radical do seu discurso opinando que a única saída para a situação política económica e social de então seria «a destruição daquele regime reaccionário novembrista» (referência ao 25 de Novembro de 1975). A solução seria a instauração em Portugal da «República Popular», única que «permitiria ao povo a mais ampla liberdade para se organizar e lutar». Também se mostrava contra a presença de Portugal na NATO e contra o FMI, já que, segundo ele, «o povo português não devia nada a ninguém e era, isso sim, vítima há muitos e muitos anos da roubalheira e das negociatas dos burgueses com os estrangeiros». Enfim, trata-se de um conteúdo capaz de ombrear em despropósito e disparate com aquelas coisas que agora se ouvem a André Ventura. O folclore da asneira transferiu-se da extrema esquerda para a extrema direita nestes quarenta anos. E, no entanto, ainda aqui há cinco anos, os do Bloco de Esquerda (Catarina Martins) iam recuperar este mesmo disparatado Mário Tomé, numa manobra de lhe conferir estatuto de veneranda figura, branqueando-lhe estes discursos do passado e dando-lhe epítetos bonitos - capitão de Abril, construtor da democracia, combatente pela Paz - num gesto de amnésia que teve tanto de ridículo, quanto de despropositado. Nunca esqueçamos que a grande virtude da Democracia é aceitar todos estes cretinos - e classificá-los pelo que eles são: cretinos.

24 junho 2024

A ESTREIA DA CANTATA «CRISTO NOSSO SENHOR VEIO AO (RIO) JORDÃO» DE JOHANN SEBASTIAN BACH

24 de Junho de 1724. Por ser dia de São João, dá-se a estreia em Leipzig de mais uma das cantatas compostas por Johann Sebastian Bach, Cristo nosso Senhor veio ao Jordão (Christ unser Herr zum Jordan kam - BWV 7). O título e a inspiração da obra remete para um hino que fora originalmente escrito ainda no século XVI pelo reformador Martinho Lutero. Leipzig e a Saxónia eram então, e permaneceriam por mais duzentos anos, o bastião do protestantismo luterano.

«OUSAR LUTAR, OUSAR VENCER» E A LUTA DO MRPP PARA CONTROLAR A FACULDADE DE DIREITO DE LISBOA

24 de Junho de 1974. Uma notícia dava ampla ressonância ao comunicado de um grupo de estudantes que se auto-baptizara «Ousar Lutar, Ousar Vencer» (as ressonâncias maoistas são óbvias) e que entrara em confronto aberto com a «Comissão Pré-Eleitoral» (CPE) da Faculdade de Direito de Lisboa (FDL), estrutura que provisoriamente substituíra a Associação Académica daquela faculdade. O que se deduz do que aparece no comunicado, é que há uma disputa por quem controla a Reunião Geral de Alunos (RGA - uma sigla que então surgia e que viria a ter grande ressonância durante o PREC). Houvera uma RGA dois dias antes, onde vingara a proposta de SUSPENSÃO IMEDIATA DE EXAMES (sic - é assim que aparece redigida, em maiúsculas). Os da «Ousar Lutar, Ousar Vencer», que terão sido os proponentes, explicam no comunicado que «a decisão» é o «passo necessário que permitirá aos estudantes iniciar o duro e urgente trabalho de reestruturação da Faculdade». Sendo «duro e urgente», a verdade é que não aparece uma discrição mais detalhada daquilo em que consistirá o tal «trabalho de reestruturação». Em contrapartida o que aparece é um veemente desmentido que aquela suspensão equivalesse a uma «forma encapuçada de passagens administrativas que ninguém» propusera, conforme afirmariam as «calúnias» dos «actuais membros da CPE». Para aquele dia 24, às 21 horas, estava marcada nova RGA, ou seja, um rematch para se saber quem controlava a FDL - o MRPP da «Ousar Lutar, Ousar Vencer», ou os seus adversários da CPE? Convém acautelar que esta última seria provavelmente controlada pelos comunistas canónicos do PCP. Estava-se em dia de São João Baptista e esta seria um dos baptismos de fogo das lutas académicas sem que fossem alvo da PIDE...

23 junho 2024

UM EXEMPLO DO QUE DEVE SER O VERDADEIRO JORNALISMO

Na campanha eleitoral em curso no Reino Unido, o primeiro-ministro Rishi Sunak foi dizendo que «...não admira que a Grã-Bretanha depois do Brexit ultrapassou a França, o Japão e a Holanda para se tornar no quarto maior exportador do Mundo

Suponho que não será preciso saber inglês - os gráficos da SkyNews são suficientemente claros - para compreender o significado da explicação do jornalista, desmontando o enviesamento da argumentação de Sunak. Confrontando com os números de anos anteriores, a economia britânica já alcançara aquela posição no comércio internacional, tanto antes como depois do Brexit. Uma coisa é certa: é o jornalismo deste cariz que força os protagonistas políticos a acautelarem-se nesta fase em que se diz tudo e se promete tudo. Como alguém comentou comigo: «É para isto que servem os jornalistas». Prefiro os factos, dispenso opiniões. Eu chego às minhas conclusões sem a ajuda desses ditos outros jornalistas (como João Miguel Tavares se atreve a classificá-los).

A ÓPERA INFANTIL DE THERESIENSTADT

A ópera infantil Brundibár foi composta originalmente em 1938 pelo compositor Hans Krása, baseada num libreto de Adolf Hofmeister (os dois autores são judeus checos). E porque Krása fora inicialmente internado no gueto de Theresienstadt (hoje Terezín), a ópera veio a ser representada umas dúzias de vezes naquele gueto durante a Segunda Guerra Mundial. Uma dessas representações aconteceu há precisamente oitenta anos, a 23 de Junho de 1944, quando o gueto foi visitado por uma delegação do Comité Internacional da Cruz Vermelha. A delegação era composta por três elementos, encabeçada pelo suíço Maurice Rossel, acompanhado de dois funcionários dinamarqueses (a Dinamarca estava ocupada pela Alemanha). A visita foi programada para durar todo o dia, mas seguia uma cenografia preparada pelos alemães de antemão, uma verdadeira encenação de aldeia Potenkin, onde se incluía a representação da ópera do vídeo acima. A realidade era outra: o menino com bigode que acima vemos a desempenhar o papel principal - o de Brundibár - chamava-se Hunze Triechlinger e foi um dos 33.000 mortos que viriam a morrer de subnutrição, doença e outras más condições que vigoravam no gueto de Theresienstadt. Outros 88.000 internados - como o compositor Hans Krása - foram deportados para Auschwitz, onde a grande maioria veio a morrer. Dos 140.000 internados que passaram por Theresienstadt durante a guerra, cerca de 23.000 terão sobrevivido. O instante de felicidade aparente do vídeo acima também não deve esquecer o facto de que o relatório de Maurice Rossel nada assinalava de anómalo, era um endosso da narrativa que os alemães das SS haviam preparado. Mais do que o homem, é um dos momentos mais embaraçosos da história da Cruz Vermelha que falhou clamorosamente nos objectivos que se proclama defender. Significativamente o relatório de Maurice Rossel só se tornou público em 1992, 48 anos depois dos factos.
Embora não haja a certeza que o vídeo inicial seja da representação de Brundibár feita para os membros da delegação da Cruz Vermelha de há 80 anos, esta última fotografia foi tirada pelo próprio Maurice Rossel nesse dia 23 de Junho de 1944, fotografia que apensou ao seu relatório.

80º ANIVERSÁRIO DA OPERAÇÃO «BAGRATION»

(Republicação)
23 de Junho de 1944. Início da Operação Bagration. Para os soviéticos, o desencadear da Operação Úrano, em Novembro de 1942, foi mais uma proeza de astúcia do que de força, cercando, para o aniquilar, e apenas devido à dispersão das forças do inimigo, o exército alemão que se obcecara em excesso com a conquista de Stalinegrado. Em Julho de 1943, na Batalha do Kursk (a Operação Cidadela, segundo o nome dado pelos alemães), já as forças presentes dos dois lados se equivaliam, e a vitória soviética resultou da habilidade de, conhecendo-lhe as intenções, dar a iniciativa ao inimigo, desgastando-o na sua ofensiva, para depois o contra-atacar depois disso. Mas nesta Operação Bagration, a coincidir com o início do Verão de 1944 e prometida aos Aliados por Stalin para a fazer coincidir com o desembarque na Normandia, já a superioridade passara inteiramente para o lado soviético. A questão já não se poria em saber qual o desfecho da ofensiva que o Exército Vermelho iria desencadear, a dúvida consistia apenas em saber qual a dimensão da derrota táctica da Wehrmacht. Essa derrota será colossal (como os cenários macroeconómicos de Vítor Gaspar...). Em duas semanas, pouco mais, serão destruídas 25 divisões alemãs, perder-se-ão 400.000 combatentes, haverá uma hecatombe entre os oficiais generais alemães: 9 mortos e 23 prisioneiros (na fotografia abaixo, da capitulação de Vitebsk, os dois generais alemães vencidos do lado direito, são o general Gollwitzer, comandante do 53º Corpo de Exército e o general Hitter, comandante da 206ª Divisão). O avanço soviético cifrou-se em 400 km e alcançou as antigas fronteiras da União Soviética com a Polónia e as repúblicas bálticas, a dinâmica da ofensiva veio a ser mais perturbada pelos problemas da logística de acompanhar um exército fortemente motorizado, do que pela capacidade de resistência das unidades alemãs ainda em condições de combater. No lugar das 25 divisões destruídas restaria o equivalente a 8 enquanto se aguardava a chegada de outras 8 em reforço. Diante delas, o estado-maior alemão enumeraria 126 divisões soviéticas de infantaria e outras 6 de cavalaria, para além de 62 brigadas blindadas. Naquele sector da Frente Leste e em termos de potencial de combate os alemães defrontar-se-ão a partir daí numa desproporção de um para dez! Hitler's Greatest Defeat é um livro já com 30 anos mas que cumpre a sua missão de explicar sucintamente uma tão grande e tão decisiva ofensiva em 170 páginas. Que é muito mais do que se pode dizer de evocações de jornal (em 2019) que mostram que quem as escreveu nem sequer quis perder muito tempo na wikipedia a documentar-se (para dizer mais que trivialidades misturadas com asneiras...).

22 junho 2024

DEPOIS DE TRAZER O AVANÇADO PAVLIDIS, O BENFICA TAMBÉM BEM PODIA TENTAR ASSINAR COM O OWN GOAL POR CINCO TEMPORADAS

Uma das coisas que a comunicação social convencional se demite de fazer é permanecer atenta às múltiplas manifestações de estupidez provocadas pela disseminação da Inteligência Artificial, como é o caso acima do Own Goal, que lidera destacado até agora a classificação dos melhores marcadores do Europeu de futebol. Em contraste, uma outra coisa que, essa, a comunicação social convencional se aplica em fazer, é dedicar um tempo infindo à cobertura de novidades que não interessam a ninguém: anteontem, haviam destacado uma repórter para acompanhar em directo a chegada ao aeroporto de um novo jogador do Benfica, jogador esse que, dois dias antes disso, praticamente ninguém sabia que existia. Nem sei se se chegou a ver o homem, o novo reforço do Benfica... O acompanhamento informativo do tópico futebol é um requinte da estupidez, e pelas causas mais antagónicas possíveis: por negligência ou por dedicação em excesso...

A ALEMANHA CONTRA A ALEMANHA

22 de Junho de 1974. O serão deste Sábado prometia um curioso jogo de futebol na televisão em que, para o campeonato do Mundo então em curso, se enfrentavam as duas selecções alemãs: a selecção anfitriã da Alemanha Ocidental contra a sua vizinha da Alemanha Oriental. Este jogo era o primeiro entre as duas selecções e o facto concitava uma curiosidade suplementar (e, não se sabendo então, seria o único jogo entre as duas selecções). Venceu a Alemanha Oriental por 1-0. Mas seria contudo a Alemanha Ocidental, apesar de derrotada neste jogo, que se viria a sagrar campeã mundial no torneio. Uma nota adicional: nesta época, que se seguiu imediatamente ao 25 de Abril, ainda a designação das Alemanhas aparecia desprovida de qualquer subtil conteúdo ideológico. Havia apenas a geografia: era a Alemanha Ocidental e a Oriental. Só depois é que se procurou trabalhar as designações das Alemanhas, com uma Federal (Ocidental), que até era federal, e a outra Democrática, que, apesar da designação e da militância do lóbi comunista em promovê-la por cá, nunca teve nada de democrático.

21 junho 2024

ENTRA O VERÃO E COMEÇAM AS NOTÍCIAS REAQUECIDAS NO MICRO-ONDAS

Com a entrada do Verão começam a faltar as notícias e os espaços passam a ser preenchidos com a redescoberta do que é evidente, como se de novidade se tratasse, uma espécie de recondicionamento da notícia, reaquecida num micro-ondas da oportunidade. Aqui, e porque o assunto é a evidência de que a CGTP é uma extensão do PCP para a actividade sindical, algo que é óbvio há quase 50 anos, tantos quantos duram os anos da mentira do desmentido (veja-se acima, em Abril de 2022), o aparelho que reaquece o tópico merece ser apresentado numa versão vermelha e de esquerda, popular e proletária. Só que, para que a metáfora fosse completa, a dimensão do micro-ondas devia ser cada vez mais pequena, a cada ano que passa e a pretensa "independência" da CGTP é reaquecida.

MISSISSIPPI EM CHAMAS

(Republicação)
O episódio teve lugar no Sul Profundo (Deep South) dos Estados Unidos durante o Verão de 1964. E as chamas do título são uma referência aos incêndios ateados pelos membros do Ku Klux Klan (acima) nas igrejas das congregações negras onde os activistas dos direitos cívicos haviam realizado previamente sessões incentivando os negros a registarem-se como eleitores. Pelo menos 20 igrejas haviam sido incendiadas quando outro incidente mais grave fez concentrar a atenção dos Estados Unidos em Neshoba, Mississippi.
A 21 de Junho de 1964, a organização que patrocinava aquelas sessões anunciou publicamente o desaparecimento súbito de três dos seus jovens activistas (acima e da esquerda para a direita: Andrew Goodman de 20 anos, James Chaney de 21 e Michael Schwerner, de 24), que haviam saído para inspeccionar os destroços duma das igrejas incendiadas no condado de Neshoba. Sabia-se que a polícia local os havia detido por umas horas mas que acabara por os libertar, tendo-se perdido o seu rasto depois disso.
Noutros tempos, um desaparecimento destes poderia ter sido considerado um incidente menor e passar desapercebido. Mas naquelas circunstâncias, no quadro da luta dos negros pelos Direitos Cívicos (acima Martin Luther King), conjugado com o facto de dois dos desaparecidos serem de origem nova-iorquina, o incidente acabou por vir a receber uma atenção mediática inusitada, a que não faltou a ressonância da clivagem entre o Norte e o Sul que havia provocado a Guerra Civil (1861-1865) precisamente cem anos antes.
Foi a pressão mediática que levou a administração federal a afectar à investigação os meios e a atenção que as autoridades estaduais e locais – do Mississippi e de Neshoba – não pareciam dispostas a dedicar. Durante seis semanas as peripécias da investigação desenvolvida pelo FBI, nomeadamente a descoberta da carcaça ardida do automóvel que transportava os activistas (acima), foram notícia nacional, até à descoberta do paradeiro dos cadáveres, enterrados num açude a uns meros 10 km a Sudoeste da capital do condado
…e depois disso percebeu-se a razão principal para a ineficácia das investigações das autoridades locais: o próprio xerife de Neshoba e o seu adjunto também estavam directamente envolvidos nos acontecimentos que haviam conduzido ao assassinato! Concretamente, o adjunto libertara os activistas conduzindo-os à emboscada onde haviam sido mortos. Politicamente, a causa dos negros ganhara imensos pontos: em 2 de Julho, o Presidente Lyndon Johnson (também ele Sulista, do Texas) assinara a Lei dos Direitos Cívicos.
A outra batalha – a da condenação dos responsáveis pelos assassinatos – não teve um desfecho tão claro. O julgamento de 18 réus arrastou-se até 1967 e os recursos às sentenças até 1970. Quanto à atitude dos principais envolvidos durante as audiências era a insolência da fotografia acima, o adjunto Price ao lado do xerife Rainey mascando tabaco. Detestáveis! A longo prazo a causa racista estava perdida. Em 1988 Hollywood produziu um filme sobre os acontecimentos (abaixo) e eles eram considerados irrecuperavelmente maus

20 junho 2024

«SÓ DE PENSAR EM TI»

20 de Junho de 1934. Esta é a versão original de «The very thought of You», uma canção que veio a ser interpretada por Bing Crosby, Billie Holliday, Doris Day, Nat King Cole, Frank Sinatra, Natalie Cole, Elvis Costello ou Brian Ferry. Contudo, a canção foi originalmente lançada em disco em Inglaterra há 90 anos, interpretada por Al Bowlly (1898-1941), um cidadão do mundo, filho de pai grego e mãe libanesa, nascido em Lourenço Marques (Moçambique), crescido na África do Sul, músico e intérprete de jazz em tournées. Veio a ser uma das vítimas da Blitz em Abril de 1941. Apesar da sua morte prematura, aos 43 anos, Bowlly possui uma imponente discografia, que é completamente desconhecida porque a sua carreira decorreu muito antes da fase de promoção do negócio discográfico.

19 junho 2024

AS PRIORIDADES DA POLÍTICA EXTERNA PORTUGUESA EM 1974 E A ATENÇÃO QUE OS ESTADOS UNIDOS LHES DISPENSAVAM

19 de Junho de 1974. No regresso de um périplo que o presidente norte-americano Richard Nixon dera por países do Médio Oriente, ocorre um encontro nos Açores entre ele e o novo presidente português, António de Spínola. A reunião durou uma hora e a atenção dispensada pelas duas partes ao encontro pode ser constatada pela importância noticiosa que lhe foi conferida dos dois lados do Atlântico (acima e abaixo). A fragilidade da Casa Branca por causa do Caso Watergate costuma ser uma explicação para o desinteresse inicial dos Estados Unidos pelas consequências previsíveis da descolonização, mas essa não parece ser a única explicação: os problemas de Nixon são independentes das decisões editoriais do New York Times, que parecem sintoma de um desconhecimento desinteressado dos problemas de Lisboa. Em contraste, as atenções dispensadas (e as expectativa postas) por Lisboa podem ainda hoje ser recordadas pela reportagem que a RTP realizou sobre a partida de António de Spínola.

18 junho 2024

DIA DO CARNAVAL CONTRA O CAPITAL

(Republicação)
18 de Junho de 1999. Coincidindo com a abertura da 25ª Cimeira do G8, que iria começar nesse dia em Colónia, Alemanha, é convocado um conjunto de manifestações anti-capitalistas e anti-globalização para terem lugar em cerca de trinta cidades do Mundo. O título que foi escolhido para as designar - Dia do Carnaval contra o Capital - ainda hoje resulta mobilizador, embora, como é costume neste género de eventos, a identidade dos organizadores continue a permanecer um pouco difusa, permitindo a especulação quanto às suas intenções, para além da contestação pura e simples a um modelo político, económico, social que há vinte e cinco anos parecia não se deparar com alternativas ideológicas sérias. Quanto às manifestações propriamente ditas, onde a de Londres terá sido uma das maiores, senão mesmo a maior, ela terá juntado cerca de quatro mil pessoas (dados policiais), um número insignificante que terá tentado superar esse handicap com a abordagem carnavalesca dos protestos (fotografia intermédia).
Mas aquilo que terá constituído uma revelação na dita jornada de protesto mundial foi a rapidez como a comunicação social mundial se precipitou para lhe dar atenção a partir do momento em que os protestos se tornaram violentos (fotografia abaixo). Parecia ser isso que se esperava que eles - os manifestantes - fizessem e, a partir do momento em que o fizeram, as manifestações ganharam muito mais cobertura mediática do que a que alcançariam se eles se portassem bem. Estava estabelecido um padrão para o século XXI. Uma manifestação anti-qualquer-coisa garantiria cobertura mediática robusta só se os manifestantes começassem a escaqueirar o que tinham à frente e a confrontar-se com a polícia: foi o que aconteceu dali por seis meses na reunião da OMC de Seattle; foi o que aconteceu na cimeira de Praga do FMI e do BM em 2000; foi o que aconteceu na 27ª Cimeira do G8 de Génova em 2001; é aquilo que tem vindo a acontecer, finalmente, embora num contexto nacional e não mundial, com os protestos dos coletes amarelos em França, que se perpetuam sem que se perceba para quê, a não ser deixar as televisões de notícias entretidas ao fim de semana, quando faltam tópicos de que se fale.
E, no entanto, de quando em vez, percebe-se qual é o verdadeiro poder das manifestações de rua quando elas expressam uma verdadeira opinião popular significativa, como o que aconteceu em Hong Kong em Junho de 2019. Quando cerca de 5% da população vem para a rua manifestar-se contra uma medida legislativa indesejada, não é preciso que os manifestantes partam nada, nem baterem-se contra ninguém, para aparecerem nos telejornais. O acontecimento tem um significado político, não é apenas um espectáculo para passar na televisão, é a sério e os poderes políticos percebem o recado.

17 junho 2024

A PERSEGUIÇÃO A O.J. SIMPSON

(Republicação)
17 de Junho de 1994. Como principal suspeito pelo assassinato da ex-mulher, uma antiga estrela de futebol americano, O.J. Simpson (até aí relativamente desconhecido na Europa), é perseguido pela polícia ao volante do seu jeep pelas auto-estradas de Los Angeles, enquanto os helicópteros das várias estações de TV faziam a cobertura em directo da perseguição. Foram mais de duas horas e quase 100 quilómetros de um nada informativo, mas que, ainda assim, terá alcançado uma audiência de 95 milhões de telespectadores. Satisfeita a curiosidade mórbida do auditório norte-americano, com a rendição do foragido O.J. Simpson (para onde haveria ele de ir, com 95 milhões de compatriotas a segui-lo?...), o episódio só teve ressonância nos Estados Unidos, e a repercussão fora dele foi quase nula. O fim da Guerra Fria determinara que desaparecesse uma preocupação anterior, de décadas, de mostrar uma sintonia de interesses entre americanos e o resto do Mundo por certos temas mediáticos, como seriam os casos de acontecimentos desportivos como os Jogos Olímpicos ou então a chegada do primeiro homem à Lua. Ao contrário do que acontecera com a comoção como fora acompanhado o assassinato de John F. Kennedy, ele havia coisas dos americanos que interessavam apenas aos americanos e não ao resto do Mundo, e o contrário também era verdade. Por exemplo, naquele mesmo dia 17 de Junho de 1994 começava em Chicago o Campeonato Mundial de Futebol (com a presença do próprio Bill Clinton), mas os americanos, nem por curiosidade, atribuíram ao evento uma importância comparável à que haviam dedicado a esta perseguição a Simpson. A maior audiência doméstica que o torneio veio a gerar foram 11 milhões de telespectadores para um jogo entre o Brasil e os Estados Unidos a 4 de Julho (e porque era dia feriado).

16 junho 2024

O ASSASSINATO DO GOVERNADOR-GERAL DA FINLÂNDIA RUSSA

16 de Junho de 1904. Nikolay Bobrikov, que era o governador-geral da Finlândia sob domínio russo é assassinado a tiro em Helsínquia por um finlandês de ascendência nobre e pertencente à minoria sueca chamado Eugen Schauman. Bobrikov ocupava o cargo desde 1898 e era o ápex local de uma política de russificação forçada da Finlândia. E impopularíssimo por causa disso. O assassino disparou três tiros sobre o governador e guardou um último para si próprio. O atirador morreu de imediato. Mas, como estes acontecimentos são repletos de ironias, ao governador, o primeiro tiro roçou-lhe apenas o pescoço, o segundo atingiu-o na colecção de medalhas que se podem apreciar acima e ressaltou e foi apenas a última bala que acabou por o vir a atingir, ainda que indirecta mas gravemente, já que embateu na fivela do cinto e foi esta que lhe perfurou o abdómen. Operado de imediato, Bobrikov não resistiu à cirurgia. Schauman veio a tornar-se um herói nacional, primeiro de uma forma clandestina, depois de forma oficial depois da independência do país em 1918. É importante relembrar estes acontecimentos nesta altura, para se perceber porque é que os finlandeses não gostam dos russos e se apressaram a pedir o ingresso na NATO na sequência da invasão russa da Ucrânia.

UMA VIAGEM AO PASSADO FALANDO SOBRE «A BOLHA» DOS CONSPIRADORES PROFISSIONAIS REVOLUCIONÁRIOS

Muito me surpreenderá se houver um leitor do Herdeiro de Aécio que reconheça a pessoa do retrato acima. A Wikipedia resolve o problema: trata-se de Filippo Buonarroti (1761-1837), que a página respectiva descreve como um «revolucionário e teórico socialista italiano radicado em França». Quanto ao retrato, a Wikipedia não esclarece, mas ele foi pintado por Philippe Auguste Jeanron (1808-1877). A acção predominante de Buonarroti foi, porém, em França, onde ele se tornou conhecido por ser um dos activistas mais radicais no período mais dinâmico da Revolução Francesa (1791-1797), é considerado alguém muito próximo do proto-comunista François Noël Babeuf (1760-1797), que veio a morrer na guilhotina em resultado de uma conspiração - conhecida pela Conspiração dos Iguais - intentada contra o governo do Directório. Apesar de envolvido na conspiração, Buonarroti sobreviveu com uma pena de desterro e é como teórico - mas sempre conspirador - que ele se vem a tornar famoso, quando publica em 1828 o livro acima: Conspiração para Igualdade dita de Babeuf. Repare-se o pormenor que o livro foi editado em Bruxelas, que fazia parte então do Reino dos Países Baixos e onde Buonarroti estava então exilado. A obra foi muito bem acolhida, nomeadamente por teóricos revolucionários de gerações posteriores, os casos mais notáveis de Marx, Engels, Bakunin e Trotsky, todos eles produziram textos com referências elogiosas a Buonarroti. Preso por uma última vez ainda em Paris, em Outubro de 1833, aos 72 anos, Buonarroti vem a falecer cego na mesma cidade em 1837. Com esta história de vida, é considerado o percursor dos conspiradores profissionais que sacrificaram toda a sua vida pela luta por uma causa. Mas, remetido para aquela categoria implacável e talvez simplista de socialista utópico com que estes precursores vieram a ser mimoseados pelos conspiradores profissionais revolucionários do século seguinte, estes últimos esqueceram Buonarroti por completo.
O que é uma excelente deixa para apresentar esta outra fotografia, que foi tirada num dos anos finais do século XX (1997/8?) pelo fotógrafo Eduardo Gageiro. Trata-se de uma fotografia de conjunto dos dirigentes históricos do Partido Comunista Português (PCP). Sentados e da esquerda para a direita: António Dias Lourenço (1915-2010), Álvaro Cunhal (1913-2005), José Vitoriano (1917-2006), Joaquim Gomes (1917-2010) e Octávio Pato (1925-1999). Detrás, de pé e pela mesma ordem: Jaime Serra (1921-2022), Sérgio Vilarigues (1914-2007) e Fernando Blanqui Teixeira (1922-2004). Para os mais rigorosos e mais interessados, o elenco congrega não apenas os quatro membros eleitos para o Secretariado do Comité Central (CC) do PCP em 4 de Maio de 1974 (Cunhal, Gomes, Pato e Vilarigues), como também oito dos dez membros da Comissão Política desse mesmo Comité Central que foram eleitos nessa mesma altura, conforme se pode ler num documento da autoria de um dos presentes, Joaquim Gomes, que foi publicado em 1999 e de onde tomei a liberdade de retirar a lista que se pode apreciar mais abaixo, onde se dá conta de como ficou a composição do CC do PCP logo depois do 25 de Abril. Os nomes dos presentes na foto acima estão sublinhados. E nota-se aplicação e método na enumeração feita por Joaquim Gomes. Cada nome aparece acompanhado da antiguidade como militante, como funcionário do partido (i.e., trabalhando em exclusivo na actividade política clandestina), os anos de prisão, e também a antiguidade do militante como membro do CC. Estranhamente, o que ficou por nomear foi a idade de cada um. Assim, em 1974 aquela vanguarda mais esclarecida dos comunistas portugueses que nos aparece mais acima tinha uma idade média de 56 anos, estivera preso quase 10 anos, era militante há 37 anos, funcionário do PCP há um pouco mais de 29 anos e integrava o CC desde há 24 anos e meio.
Embora seja um pouco forçado este processo de sintetizar todos aqueles números acima evocados num retrato-robot da elite dos militantes comunistas quando da queda do Estado Novo, a verdade é que aqueles dados nos podem dizer muita coisa: todos eles se haviam tornado militantes muito novos, aos 19 anos em média (i.e. 56-37 anos) e tinham-se profissionalizado também muito cedo: cerca dos 27 anos (56-39) haviam-se passado a dedicar exclusivamente ao partido. Uma profissão que comportava muitos riscos: 10 anos de prisão da PIDE em média. Mas, precisamente por causa desses riscos, mas também por se considerarem uma vanguarda de cunho quase sacerdotal, não se pode dizer que eles pudessem compartilhar a vivência do povo que tanto invocavam. Na época ainda não se inventara a expressão «viver numa bolha» mas era precisamente o que acontecia com eles, discípulos longínquos de um Buonarroti, conspiradores profissionais dedicados à causa da revolução. A que surgiu em Abril de 1974, era-lhes favorável, mas ainda não era a revolução deles. E felizmente nunca foi a revolução deles. É precisamente isso e o que aconteceu depois do 25 de Abril no Portugal democrático que eu gostaria de enfatizar e que me levou a escrever este poste, baseando-me na fotografia de 1997/98, que foi tirada quase 25 anos depois do 25 de Abril. A fotografia mostra-nos que esse quarto de século em que Portugal passou a viver em Democracia, mesmo que essa circunstância tivesse feito desaparecer as ameaças que pendiam sobre os membros do CC nos 37 anos precedentes de militância comunista, parece não ter tido qualquer influência profissional na actividade de qualquer um deles veio a exercer. Haviam sido funcionários do partido antes de 1974 e aqui vêmo-los reformados de funcionários do partido. Precisamente, como agora se diz, na mesma «bolha».
Uma última nota para acrescentar esta outra fotografia com os mesmos, que foi provavelmente feita na mesma altura, mas onde a sua ordem é diferente. Octávio Pato mudou-se da extrema direita para a extrema esquerda sentada, desalojando Dias Lourenço que foi para a extrema direita levantada, enquanto Blanqui Teixeira ocupou o lugar sentado que fora o de Octávio Pato. Os outros ocupam os mesmos lugares. Nesta versão da foto, a debilidade física de Octávio Pato é notória e isso torna-se mais evidente pelo olhar que lhe dedica José Vitoriano (ao centro). Apesar de ser o mais novo dos oito, Octávio Pato será o primeiro a falecer, em Fevereiro de 1999.

15 junho 2024

VINTE E TRÊS DIAS

Para os preguiçosos e/ou distraídos assinalo o facto que decorreram 23 dias (mais de três semanas) entre a notícia de cima e a de baixo. Em rigor, o título da notícia original, a de 22 de Maio, deveria ter sido escrito: «António Gandra d'Almeida (há de ser) o novo dire(c)tor executivo do SNS», tal o tempo que demorou a nomeação. 23 dias para concretizar algo que fora ostensivamente anunciado, para mais quando em cima de outros 29 dias que já mediavam entre esse anúncio e o anúncio precedente da demissão do director executivo anterior, dão uma imagem que a celeridade não parece ser atributo dos novos dirigentes do ministério da Saúde, descontando os seus motoristas, que se despistam nas auto-estradas quando chove...

AINDA SOBRE A GENEROSIDADE COMO SE ESTÁ A ATRIBUIR O TÍTULO DE «JORNALISTA» A QUEM DESEMPENHA OUTRAS ACTIVIDADES

O erro continua insistentemente a persistir por aí, para mais avalizado por opinion makers como João Miguel Tavares ou Ricardo Araújo Pereira. O erro consiste em dar a alcunha de jornalistas a quem se notabiliza por - e se limita a - emitir opiniões sobre política. Jornalismo é uma outra coisa: quando vemos acima Bob Woodward e Carl Bernstein a assistir ao discurso de resignação de Richard Nixon, como corolário do Caso Watergate, aquilo que estava a acontecer já ia muito para além do que fora o seu trabalho jornalístico. E é por isso apenas apropriado que eles apareçam naquela foto acima como testemunhas distanciadas do acontecimento. E isso não quer dizer, antes pelo contrário, que não tivessem «vigiado» a acção do presidente. Ora no caso e pelo conceito de jornalismo de João Miguel Tavares, teria sido indispensável que Woodward e Bernstein também tivessem ido à televisão em 8 de Agosto de 1974 para dizer umas coisas, formular palpites, dar opiniões sobre a actualidade política norte-americana. Ora essa é toda uma outra actividade, o comentadorismo profissionalizado, que, só por insistência cega e conveniência de nomenclatura, pessoas como João Miguel Tavares ou Ricardo Araújo Pereira designam também por jornalismo.

Agora o que é desagradável é que, por causa de estarmos a designar duas actividades diferentes, se escrevam disparates como o que aparece assinalado mais acima: como é que João Miguel Tavares quer que comentadores encartados vigiem a acção dos políticos? Em animados bate-bocas televisivos?...

O 70º ANIVERSÁRIO DA FUNDAÇÃO DA UEFA

15 de Junho de 1954. Fundação em Basileia, na Suíça, da União das Associações Europeias de Futebol, que costuma ser designada pelo acrónimo da organização em inglês: UEFA. Actualmente a organização é composta por 55 associações, algumas das quais constituem cedências políticas à geografia, já que não se localizam total ou parcialmente na Europa. É o caso de Chipre, Israel e Cazaquistão pela totalidade e da Rússia e da Turquia parcialmente. Também a classificação como europeus dos três países caucasianos (Arménia, Azerbaijão e Geórgia) é passível de discussão. Outros países, mesmo que indiscutivelmente europeus, estão inscritos com mais de uma associação, caso do Reino Unido com cinco associações (Inglaterra, Escócia, Gales, Irlanda do Norte e Gibraltar) e da Dinamarca com duas (Dinamarca e ilhas Faroé). Outro caso peculiar é o da associação do Kosovo, região que goza de um estatuto político algo indefinido, reconhecido por alguns países, mas não por outros. Futebol, geografia e política constituem uma mistura pouco coerente.

14 junho 2024

O VIZINHO QUE FALA DEMASIADAMENTE ALTO NO CAFÉ...

Que a situação na Saúde se tornou rapidamente um dos calcanhares de Aquiles do novo governo afigura-se patente. Trata-se de uma herança de uma pasta delicada, mas o perfil da nova ministra, mais a sua capacidade inata para despertar a antipatia mediática não os ajuda nada. Considerado isto, o que também não faz qualquer sentido é a CNN ir desencantar o comentador Pedro Tadeu para nos dizer precisamente o mesmo nos ecrãs da televisão (mais alongado: em seis minutos e meio e com a coreografia de alguém parecer interessado no que ele tem para nos dizer). Mas, ainda que mal pergunte: o que é que qualifica precisamente Pedro Tadeu para nos vir falar sobre assuntos da política da Saúde? O que é que ele tem de mais do que aquele nosso vizinho que vai para o café falar demasiadamente alto de tópicos avulsos de política, para que todos o ouçamos? Será a legitimidade de se arranjar alguém para lhe fazer antes as perguntas, para que a ocasião não fique com o mau aspecto dos monólogos no café do vizinho, vizinho esse de que normalmente formamos a impressão de que fala assim só porque é um solitário gabarola e gosta de se ouvir? É que, mesmo sabendo que posso mudar de canal e também vir-me embora do café, só de começar a ouvir qualquer dos dois parece-me um acto impingido com a mesma falta de pertinência. Ou melhor: o desbocado do café dos últimos decénios foi promovido para os ecrãs para encher o tempo dos canais de informação.

O MASSACRE DE KUTA RÉ

14 de Junho de 1904. No decurso de uma das denominadas campanhas de pacificação que, neste caso, as tropas coloniais holandesas estavam a efectuar na ilha de Samatra (actual Indonésia), ocorre o massacre de Kuta Ré, quando um destacamento dessas tropas comandado pelo tenente-coronel van Daalen - 12 oficiais e sargentos holandeses, 200 soldados de origem javanesa e 450 carregadores - atacaram e mataram quase todos os habitantes de uma povoação que procurara resistir à implantação da soberania holandesa. Na acção registaram-se 563 mortos, 2 soldados entre os atacantes, e 313 homens, 189 mulheres e 59 crianças entre os defensores. Terão sobrevivido 51 ou 61 pessoas (apenas mulheres e crianças). Na semana seguinte - a 20 de Junho - noutra operação semelhante de submissão de uma outra povoação foram abatidas mais 432 pessoas e ainda outros quatro dias passados, foram mais 654 mortos. No computo global, a campanha de cinco meses do tenente-coronel van Daalen saldou-se por um registo de 2.902 aldeões abatidos, entre os quais 1.159 mulheres e crianças. Mas o que o episódio de há precisamente 120 anos tem de particular e que o destaca do resto do morticínio, são as fotografias (acima e abaixo) que foram tomadas nesse dia pelo médico militar da coluna, o tenente Neeb. Nessas fotografias, e porque a arte fotográfica ainda estava na infância, podem ver-se as pilhas dos mortos contrastando, na de cima, com os militares vitoriosos do lado esquerdo da foto. A história revisitada dos acontecimentos pretende actualmente - os holandeses costumam ser muito habilidosos em escondê-la e reescrevê-la* - que as fotos chegaram aos Países Baixos onde terão sido objecto de muitas críticas no parlamento. Na realidade, van Daalen acabou sendo nomeado governador da província de Achém de 1905 a 1908 e veio a ser promovido a oficial general, assumindo o comando do exército colonial de 1910 até 1914, quando se reformou e regressou à Europa. Não é a carreira de alguém que foi sancionado pela sua conduta, por muito que tentem dar agora a volta ao texto e, pior, quando dos Países Baixos se põem a tentar dar lições de moral sobre colonialismo a outras potências coloniais como Portugal.
* Exemplos: (1) a história pouco conhecida de Dirk de Geer, o primeiro-ministro dos Países Baixos invadidos pela Alemanha em Maio de 1940, que fugiu e se exilou no Reino Unido, mas que, pela sua germanofilia, acabou por ser demitido, tendo regressado aos Países Baixos ocupados pela Alemanha; (2) as tradicionais simpatias germanófilas dos comandantes militares daquele país, tanto durante a Primeira como nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, o que até levou à substituição forçada deste último, Izaak Reijnders; (3) o curioso facto de que, entre as inúmeras nacionalidades dos pilotos que se engajaram a lutar em aviões da RAF durante a Batalha de Inglaterra, não havia holandeses. Ao contrário de polacos, checos ou belgas, os alemães haviam ocupado o seu país mas os pilotos militares holandeses não manifestavam disposição de combater do outro lado.

A TOMADA DE POSSE DE THABO MBEKI

(Republicação)
14 de Junho de 1999. Com a tomada de posse como presidente de Thabo Mbeki terminava aquilo que se poderia denominar por fase experimental da transição na África do Sul. Aos oitenta anos, Nelson Mandela, que fora o garante dessa transição, afastava-se para dar lugar a uma nova geração - Mbeki era 24 anos mais novo. As duas principais comunidades sul-africanas davam mostram de boa vontade e pareciam procurar acomodar-se uma à outra, mas a falta de à vontade é patente no vídeo acima (por volta do 01:00), quando Mbeki mostra não saber muito bem como se comportar diante da chefe da guarda de honra, que, ainda por cima, depois tem que se fazer discreta e pequenina, para que madame Mbeki também caiba nas fotografias. Mas, embora caricatural, este ainda era o lado benigno do ANC. A degradação estava guardada para daí a dez anos, com a chegada ao poder de Jacob Zuma.

13 junho 2024

POLÍTICO(A)S QUE SÃO OBRIGADOS A PASSAR DESAPERCEBIDO(A)S QUANDO HÁ ELEIÇÕES PORQUE «ENXOTAM» O ELEITORADO...

Durante o mês de Maio passado e até às eleições de dia 9 de Junho, a deputada socialista Ana Catarina Mendes distinguiu-se por ter feito os maiores esforços para passar desapercebida. E estará de parabéns por ter conseguido. Ninguém a foi incomodar, apesar de ela ter sido apresentada como o terceiro nome da lista que o PS apresentou para o parlamento europeu. Que contraste com Marta Temido! Pelos vistos, dará para especular se, lá pelo Largo do Rato, não devem ter considerado que, enquanto a cabeça de lista se esforçava por cativar os eleitores, dois lugares atrás na lista, Ana Catarina Mendes os enxotaria ao estilo Tânger se abrisse a boca... Daí as (presumíveis) instruções para que estivesse quietinha. Mas foi um esforço, já que Ana Catarina Mendes adora dizer coisas manhosas e trauliteiras para aquecer as hostes dos socialistas indefectíveis, numa função de cheerleader do partido! Nem foi preciso esperar muito dias, aqui a temos, três dias depois das eleições e removida a mordaça, a retomar as tradicionais merdas que até já nos habituámos a ouvir dela - (1) (2) (3) (4). Por um lado, é um prémio à mediocridade, mas, por outro e porque já não há pachorra para a aturar, ainda bem que Ana Catarina Mendes foi despejada em Bruxelas. Que vá para lá facturar umas massas pelos seus bons e leais serviços ao QG do Largo do Rato!

FRANÇOISE HARDY E A «ARTE» DE «VENDER VINHO E CARVÃO» UNS AOS OUTROS

Em consequência do anúncio anteontem da morte da cantora francesa Françoise Hardy, e em complemento às notícias necrológicas da comunicação social tradicional, ocorreu ontem uma espécie de epidemia nostálgica nas redes sociais, com imensas publicações a respeito, embora raras se destacassem pela imaginação: o mesmo tema e evocado por todo o lado da mesma forma. O ambiente de concorrência fez-me lembrar esta passagem de O Escudo de Arverne de Astérix. Andamos todos a vender vinho e carvão uns aos outros. É por isso que Goscinny era um génio.

Esclareça-se que também eu, noutro tempo oportuno, aqui evoquei Françoise Hardy e a mais do que previsível canção «Tous les garçons et les filles» por ocasião do 60º aniversário da sua estreia televisiva em 1962. Mas, para contrariar aquelas publicações expectáveis por ocasião agora da sua morte, recorde-se que, com ela e com as pessoas da sua geração, é uma memória de uma certa Europa que desaparece: ela própria já não teria memória disso, mas, quando Françoise Hardy nasceu em Paris, em 17 de Janeiro de 1944, a cidade ainda estava ocupada pelos alemães...

E os russos ainda haviam de chegar a Berlim...

AS ELEIÇÕES EM TRIESTE (MAS SÓ NA ZONA A)

(Republicação)
13 de Junho de 1949. Realizam-se eleições municipais no território livre de Trieste, região encravada entre a Itália e a Jugoslávia, mas na zona que era administrada pelos Aliados (Zona A). Trieste, cuja história do Século XX já aqui foi contada neste blogue. Na notícia do jornal, a vitória dos partidos italianos é apresentada como se eles se tivessem apresentado conjuntamente, o que não é verdade: os 63% que se mencionam resultam da adição da votação da Democracia Cristã (39%), Socialistas (6%), Neo-Fascistas (6%), Republicanos (5%), Liberais (5%), etc. De qualquer maneira, a maioria que exprimira a sua opção por uma futura reunião com a Itália era significativa, ainda que a eleição em si fosse meramente simbólica: a maioria das decisões administrativas pertenciam ao governo militar. Mas para os países ocidentais, a organização de eleições era um imperativo, na esperança que isso forçasse o padrão do comportamento dos ocupantes soviéticos, que nos países do Leste da Europa se actuasse da mesma forma. Mas não: é verdade que havia eleições, mas não livres. Quanto ao caso particular de Trieste, a situação veio a ficar resolvida em 1954 com a anexação da Zona A pela Itália e da Zona B pela Jugoslávia. Actualmente, os territórios que haviam pertencido a esta última Zona estão divididos, por sua vez, entre a Eslovénia e a Croácia.

12 junho 2024

O JURAMENTO DA UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA

«Não acredito, não sou membro, nem sou apoiante de qualquer partido ou organização que acredite, advogue ou promova o derrube do Governo dos Estados Unidos pela força ou por quaisquer métodos inconstitucionais ilegais»

Conforme se podia ler na primeira página do New York Times de 12 de Junho de 1949, a Universidade da Califórnia passaria a partir de então a adoptar um juramento para os 4.000 membros do seu corpo docente e funcionários administrativos. A explicação para aquele gesto também constava do artigo: para fazer face àquilo que o porta-voz da Universidade, assistente do reitor, denominava por «histeria da guerra-fria». Embora o texto do juramento se refira abstractamente a organizações que promovessem e advogassem o derrube das instituições por meios ilegais, e não mencione qualquer organização em particular, o título da notícia é inequívoco em identificar o alvo: os comunistas, filiados ou apenas simpatizantes. Por isso os jornalistas o baptizam naquela altura por juramento anti-vermelho.
Quer a ironia da História que, nestes 75 anos entretanto decorridos, a ocasião em que «o Governo dos Estados Unidos» esteve mais próximo de ser «derrubado pela força ou por quaisquer métodos inconstitucionais ilegais» (a 6 de Janeiro de 2021, fotografia acima), o vermelho empunhado por quem assim agiu nada tinha a ver com os comunistas, antes pelo contrário...

11 junho 2024

SE A REFERÊNCIA FOR ESTES DOIS ABAIXO, ENTÃO SER-SE JORNALISTA É MESMO UMA ACTIVIDADE MUITO «ABERTA»

No programa Isto é gozar com quem trabalha de ontem, Ricardo Araújo Pereira recebeu como convidados Ana Sá Lopes (Público) e Miguel Pinheiro (Observador) que ele apresentou como sendo jornalistas. Eu não acompanho o que se publica e radiodifunde no Observador com a mesma intensidade como sigo o que aparece no Público mas, quanto a Ana Sá Lopes, não tenho memória alguma de ler uma notícia sua nestes últimos anos. O que a vejo fazer é mandar opiniões, sobretudo sobre política nacional. E desconfio que o mesmo acontecerá com Miguel Pinheiro, pelo pouco que o ouço. Deparamo-nos com o mesmo equívoco que há sete semanas levou João Miguel Tavares - que também se deve considerar a si próprio jornalista - a classificar Sebastião Bugalho como colega de profissão. O conceito original de jornalista parece estar ultrapassado. A responsabilidade da produção das notícias parece agora assentar nas agências noticiosas. Toda esta gente acima citada e tantos outros que também se alcunham por jornalistas, aquilo que fazem é darem opiniões. E, por isso mesmo, é sempre complicado questioná-los quanto ao que os qualificará para possuírem o estatuto de serem eles a falar e os outros a ouvir. Quando se lhes faz a pergunta, não gostam. Porque as explicações são tão curtas quanto a definição do que são os profissionais é abrangente. O que desqualifica a profissão e o profissional. Tanto é assim, que aqueles que tiveram outra vida mas que agora também vivem de aparecer a dar opiniões querem continuar a ser conhecidos por aquilo que foram, não por se terem tornado jornalistas na terceira idade; exemplos assim mais conhecidos da televisão, há o do advogado José Miguel Júdice, o major-general Agostinho Costa ou o embaixador Seixas da Costa, que poderiam, por esta liberalidade, ser tratados também por jornalistas, já que eles fazem a mesma coisa que os outros: dão opiniões. Mas desconfio que qualquer deles se sentiria insultado se lhes disséssemos que agora estão a fazer trabalho de jornalistas...

UM «CHEIRINHO» DA VELHA GUERRA FRIA

(Republicação)
11 de Junho de 1999. Nesse dia terminava a Guerra do Kosovo. Com a entrada em vigor do cessar fogo, fora previsto que uma força conjunta de manutenção de paz, composta por unidades militares de países da NATO e também russas, se instalassem na antiga região autónoma jugoslava. Os russos haviam querido um sector independente, mas os Estados Unidos, assim como os restantes países europeus da NATO, haviam rejeitado a ideia, com receio que isso predispusesse os russos a dividirem o Kosovo em duas regiões, uma menor de maioria sérvia a norte e a restante, de maioria albanesa, uma espécie de mini Alemanha Oriental balcânica, que esses bons velhos hábitos nunca saem de moda. Mesmo que não fosse essa a ideia dos russos, a sua posição negocial parecer-lhes-ia demasiado frágil na conjuntura da substituição das forças combatentes (sérvios e albaneses), e os russos decidiram-se a um golpe sujo: pela calada da noite de 11 de Junho, pegaram num destacamento seu estacionado na Bósnia vizinha, e mandaram-no percorrer os 600 km que os separavam da capital do Kosovo para ocuparem o aeroporto local, tudo isso sem passar cartão a ninguém da NATO. Apesar de comandado por um general, o destacamento russo era pequeno: cerca de 200 homens e umas 30 viaturas, sem grande potencial de combate. Mas isso seria irrelevante. Aquela era uma guerra para ser travada à frente das câmaras de televisão (acima). Quando as unidades da NATO encarregues dessa mesma missão chegaram, o aeroporto estava ocupado pelos russos, a CNN também já lá estava, ninguém se dispôs a facilitar a vida aos outros, e começava a crise. Era uma coisa nova, depois de dez anos (1989-1999) em que os russos haviam sido nossos amigos. Recorde-se que a Rússia de então era ainda dirigida por um sujeito pachola, permanentemente embriagado que dava pelo nome de Boris Yeltsin (Vladimir Putin só apareceu um ano depois). Mas a gestão de todo o incidente serviu também para exibir outras fracturas, não só as entre o Ocidente e o Leste, como também as entre a América e a Europa, dentro do Ocidente e da NATO. À atitude mais bélica do comando supremo americano da operação, contrapôs-se uma aproximação bem mais pragmática do comando militar britânico que estava no terreno. Apesar daquilo que parecia estar a acontecer na CNN, os 200 russos estavam isolados e impedidos pela aviação da NATO de serem reforçados e de se reabastecerem sequer. O único perigo da situação era ela detonar acidentalmente. Para a NATO, o tempo encarregar-se-ia de solucionar a questão. Foi o que aconteceu: os russos acabaram por ter que ser abastecidos de água e comida pela logística das unidades da NATO que eles não queriam deixar entrar no aeroporto. O impasse durou duas semanas, a Rússia acabou por salvar a sua face politicamente, e o susto passou.

10 junho 2024

INICIATIVA LIBERAL: ISTO ARRISCA-SE A CORRER MAL

Se estes são os melhores sorrisos que lhes conseguimos arrancar numa noite em que o partido alcançou um excelente resultado eleitoral, então há que encarar o futuro do ambiente interno da Iniciativa Liberal com toda a circunspecção.

HÁ POR AÍ IMENSA GENTE A DAR A SUA OPINIÃO, MAS...

...ainda não dei por ninguém que tivesse comentado o resultado do ADN. Depois de ter recebido 100.000 votos nas eleições legislativas, que foram atribuíveis pela opinião publicada a questões de analfabetismo funcional e que foram mesmo pretexto para manifestações do síndrome de Calimero pelos simpatizantes da AD, o ADN torna a surpreender os comentadores políticos três meses depois ao recolher 54.000 votos, superando mesmo a votação do PAN. Reconheço que as opiniões se podem dividir para o que aconteceu: há quem possa defender que o analfabetismo persiste e que nem todos (cerca de metade) terão aprendido com o engano de há três meses; mas também haverá quem possa defender que este resultado se deva à projecção mediática da cabeça de lista da formação, Joana Amaral Dias, que, como é seu estilo, realizou uma campanha muito incisiva. De qualquer maneira, fica o registo objectivo que, a ter sido esta última a explicação, a incisividade da cabeça de lista teve mais repercussões nos distritos da Guarda e de Bragança, onde a votação do ADN chegou a rondar os 2%.
Também ainda não dei por ninguém que se tivesse referido ao número de votos em branco, tema esse, de resto, normalmente esquecido. Mas vale a referência, já que os 47.000 votos em branco representam um mínimo de sempre em eleições europeias, apenas aproximado com o valor de 49.000, registado em 1994. Estes valores de ontem contrastam significativamente com os registados nas últimas três eleições: 166.000 em 2009, 145.000 em 2014 e 141.000 em 2019. Em qualquer dessas eleições o número de votos em branco foi superior a 4% e foi também superior ao coeficiente de votos que elegeu os últimos eurodeputados para o Parlamento Europeu. Ainda bem que os votos em branco não elegem um não-deputado (ou seja, um lugar vazio), porque se isso acontecesse, teria havido uma cadeira vazia em Bruxelas por conta dos portugueses que foram votar mas não a favor de alguém. A boa notícia de ontem é que o número daqueles que votam por dever cívico mas que acabam por não fazer qualquer escolha se reduziu a ⅓ daquilo que era costume nas eleições europeias, sintoma que as opções disponíveis estão agora mais ao gosto dos portugueses.
Em contrapartida, vale a pena referir por fim aquilo que eu li referido, mas que me parece assentar num equívoco, quiçá por algum entusiasmo engajado excessiva de quem analisa os resultados eleitorais, como parece ser o caso acima de uma expectativa de que o Livre pudesse alcançar quase naturalmente representação no Parlamento Europeu. Era uma questão de mais ou menos pedalada. Mas a verdade é que, quem se tivesse dado à curiosidade de projectar os resultados das eleições legislativas de Março passado numa hipotética distribuição dos 21 lugares de eurodeputado, aperceber-se-ia que tanto o PCP quanto o Livre partiriam em desvantagem. O PCP conseguiu em última instância: o seu eurodeputado foi o penúltimo (20º) a ser eleito. O Livre falhou: teria sido preciso haver 23 eurodeputados...