Existem registos e são-nos familiares os discursos mais eloquentes proferidos pelos líderes das duas potências anglo-saxónicas durante a Segunda Guerra Mundial. O de Churchill é um pouco posterior à sua tomada de posse (4 de Junho de 1940); o de Roosevelt data do dia seguinte ao do ataque a Pearl Harbour (8 de Dezembro de 1941). Como de costume, o seu equivalente soviético, o de Staline, é desconhecido da grande maioria… Foi transmitido pela Rádio Moscovo às 6H30 da manhã de 3 de Julho de 1941, ou seja 11 dias depois do início da Operação Barbarrosa. E a forma como o discurso começou pareceu irreal para os soviéticos habituados àquela voz timbrada de sotaque georgiano:
Camaradas! Cidadãos! Irmãos e irmãs! Combatentes do Exército e da Marinha! Dirijo-me a vós, meus amigos! Durante o período de mais de uma década que o antecedera, Staline afirmara-se como o dirigente exigente da Grande Revolução Proletária e agora parecia que se transformara num patriarca magnânimo de uma grandiosa família… Esta inflexão estava associada a um novo discurso, apelando aos valores do patriotismo russo tradicional. Dai as evocações dos grandes heróis do passado russo: Alexandre Nevsky, Dimitri Donskoi, Kuzma Minin, Dimitri Pojarsky, Alexandre Suvorov ou Mikhail Kutuzov. Terminando evidentemente em Lenin e na sua invencível bandeira.
Mas, mais do que evocações, naquelas circunstâncias Staline tinha que prestar satisfações. Teve que reconhecer as perdas de parcelas do território já então confirmadas: a Lituânia, a Letónia, a Bielorrússia e a Ucrânia ocidentais. Nada que não tivesse já acontecido no passado, com Napoleão e Guilherme II, que acabaram derrotados. Mas, ao afirmar que os alemães haviam já perdido as suas melhores divisões no esforço, Staline estava a confundir desejos com factos. Defendeu a assinatura do Pacto Molotov/Ribbentrop com os invasores: tinham sido os alemães que o haviam proposto; conseguira-se assim uma pausa indispensável para que a União Soviética se preparasse para a inevitável Guerra contra o nazismo. Staline enfatizou a enorme diversidade dos povos da União Soviética – Russos, Ucranianos e Bielorrussos, Lituanos, Letões e Estónios (estes três últimos, cujos países haviam sido ocupados pelos soviéticos em 1940, estavam agora a acolher os alemães como libertadores…), Uzbeques, Tártaros (parte dos quais – os da Crimeia – Staline viria a deportar colectivamente no fim da Guerra por colaboracionismo com o inimigo…), Moldavos, Geórgios, Arménios, Azeris e outros povos livres. E como aquela Guerra seria travada por uma frente unificada de povos que se erguiam pela liberdade, povos que se estavam a defender de uma inevitável escravização à mão dos príncipes e barões alemães.
Depois seguiram-se as instruções, preconizando uma política de terra queimada, como quando contra Napoleão: Nem um vagão, nem uma locomotiva, nem um quilo de trigo, nem um litro de combustível, devem ser abandonados ao inimigo. Nas regiões que já foram ocupadas, devem organizar-se grupos de resistentes para travarem uma guerra de desgaste, fazendo explodir as pontes e as estradas, cortando as ligações telefónicas e telegráficas, incendiando as florestas, os depósitos e os comboios de reabastecimentos. O inimigo deve ser cercado até ao aniquilamento… Embora depois viessem a ser recuperadas pela propaganda e pela iconografia soviética, tais grupos não passavam então de projectos…
O comportamento de Staline durante os dias que imediatamente se seguiram à invasão alemã foi um assunto controverso nos 50 anos que se seguiram. Até à sua morte (1953), tudo se desenrolara de acordo com as suas expectativas e previsões. Depois dela e no seguimento do celebérrimo XX Congresso do PCUS (1956), Staline não só cometera erros enormes como entrara numa enorme depressão. O acesso aos arquivos depois de 1991 mostrou que a Verdade se situava a meio caminho das duas verdades: nada fora previsto mas Staline, longe de qualquer depressão, desdobrara-se num ritmo de trabalho frenético para organizar a reacção: participara em 20 reuniões a 24 de Junho, em 29 a 25 de Junho, em 28 a 26 de Junho...
Notas:
a) O vídeo inicial é o de uma síntese de um discurso de Staline que não é aquele a que aqui faço referência, já esse que esse foi apenas radiodifundido. Contudo, datando ainda de 1941, embora de alguns meses depois, mantém quase a mesma fraseologia que então foi empregue por Staline.
b) As três condecorações correspondem, pela mesma ordem, às Ordens Militares de Alexandre Nevsky, Suvorov e Kutuzov, todas criadas em 1942, no quadro da recuperação dos valores tradicionais russos.
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