20 outubro 2018

«QUE A SUA ALMA DESCANSE EM PAZ» (JÁ QUE O SEU CORPO FOI SERRADO AOS PEDAÇOS...)

Finalmente as autoridades sauditas admitiram o que todos estavam cansados de saber: que os próprios haviam assassinado o antigo assessor governamental, agora jornalista exilado, Jamal Khashoggi. A explicação é ridícula mas, num remate de falta de jeito, perante um audiência já bem pouco tolerante, reconheça-se, a nota do reconhecimento remata com a invocação piedosa para que a alma do defunto descanse em paz (Que a sua alma descanse em paz). É bonita de se ver tal preocupação das autoridades sauditas com a alma já que, por aquilo que se foi sabendo entretanto e em contraste, o corpo terá sido serrado em bocados mais portáteis de transportar para fora do consulado na Turquia, onde o assassinato teve lugar. Mas todo este processo merecer-nos-á algumas reflexões políticas adicionais, que não tenho encontrado exploradas na comunicação social. Não há nada de mais humilhante para um regime do que uma operação de serviços secretos que corre mal. E não importa a natureza desse regime: a grande França, potência nuclear e país de pergaminhos democráticos, passou uma vergonha imensa ao ser apanhada a afundar um barco do Greenpeace na Nova Zelândia em 1985. Nós, por cá também tivemos algo idêntico àquilo que agora aconteceu em Istambul, quando do assassinato de Humberto Delgado em Espanha em 1965. As especulações sonsas e hipócritas então feitas por Salazar à frente das câmaras de televisão («...a nós convinha que falasse, a outros conviria mais o silêncio...») bem podem servir de inspiração agora para aquilo que possamos ouvir dizer ao príncipe herdeiro saudita Mohammad bin Salman. Mas, para que um fiasco seja consagrado, é preciso que um serviço rival exponha a operação. Não aconteceu de forma exuberante no caso de Delgado com os espanhóis, mas os americanos, que tinham (e mantêm) o Greenpeace sob protecção, e os turcos neste último caso, que decorreu, aliás, no seu próprio país, foram prestimosos em alimentar a comunicação social com os detalhes sórdidos das operações. Eloquente quanto ao papel importante da Turquia em todo o incidente, o secretário de Estado norte americano Mike Pompeo deslocou-se primeiro à Arábia Saudita, mas depois também à Turquia, muito embora os holofotes tivessem ficado quase todos em Riade, quando o que é importante é o que os Estados Unidos têm para oferecer à Turquia em troca do seu capital de queixa. Por esta vez, a atitude da administração Trump não se distingue das que a antecederam (talvez com a excepção da de Obama) na indulgência como lida com os sauditas: arrasta os pés no reconhecimento daquilo que é óbvio, embora Donald Trump confira à obtusidade um requinte muito pessoal. Em suma, tudo aponta para que, na grande ordem internacional, o assassinato de Jamal Khashoggi, depois deste apogeu de escândalo, se resuma a um momento embaraçoso de Mohammad bin Salman, como outrora os outros haviam sido para Salazar e François Mitterrand. Ou, para fazer um trocadilho irónico ao jeito daquelas declamações sentidas de Pedro Abrunhosa, que podiam significar tudo e o seu contrário (atente-se à letra): «É preciso ter calma, não dar o corpo pela (i)alma»...

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