A pergunta pode parecer impertinente, com uma sugestão de troça, mas foi precisamente isso que há 96 anos aconteceu com o Presidente de França, Paul Deschanel (1855-1922). Ele havia apanhado um comboio para se deslocar ao Loire durante a noite de 23 para 24 de Maio de 1920, quando terá caído da composição quando ela felizmente se deslocava a pouca velocidade por causa dos trabalhos na via. Foi até um trabalhador encarregado de vigiar a obra a encontrá-lo, de camisa de noite, descalço e com a cara ensanguentada, reclamando ser o presidente da República! Outros tempos, outros costumes, a figura do presidente ainda não era conhecida do grande público (tomara posse há apenas três meses) e o empregado dos caminhos de ferro (cheminot) acompanhou-o desconfiado até à casa do encarregado da passagem de nível mais próxima onde, por volta da meia noite, foi tratado e albergado pela mulher deste. Mas foi só pelas 5 da manhã que o Prefeito da vila mais próxima (Montargis) foi alertado para o incidente. A descoberta do paradeiro do Presidente acabou quase por coincidir com a descoberta do seu desaparecimento quando o comboio chegou ao destino, pelas 7 horas da manhã.
O que acontecera a Paul Deschanel era impossível de abafar e a explicação oficial para descrever o que lhe acontecera também roçava o inverosímil: o Presidente tomara uns comprimidos para dormir que o haviam entontecido e que, quando procurara abrir uma janela para apanhar ar fresco, o haviam feito cair do comboio. Era o melhor que se podia arranjar para preservar a reputação presidencial... mas era claramente insuficiente. Os comboios não costumam ir largando passageiros pelos taludes da forma tão acidental como a da explicação. E o que já era complicado de explicar com um passageiro normal tornava-se mais difícil quando se tratava de um Presidente da República, por muito ensonado que estivesse. Os circuitos formais de formação da opinião pública podiam ser controlados (veja-se, a propósito, o tom positivo, quase casual, dado pelos cabeçalhos do Le Petit Journal do dia seguinte), mas os circuitos informais não: houve cançonetas, anedotas, caricaturas. Sussurravam-se histórias mirabolantes sobre a saúde mental do presidente. Em Setembro de 1920, sete meses depois de tomar posse, Paul Deschanel demitiu-se, pondo termo a uma situação insuportável.
Uma dúzia de anos depois, o escritor belga Georges Simenon incorporou o episódio num dos seus romances policiais protagonizados pelo Comissário Maigret: Le Fou de Bergerac. Naquele que eu considero um dos mais absurdos plot holes da sua obra, Simenon põe o seu Comissário, com uma reputação construída de fleuma e circunspecção, a saltar inexplicavelmente de um comboio atrás de um passageiro sem razão aparente. Até aí ele apenas lhe fizera uma companhia desassossegada num dos beliches da segunda classe...
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