31 outubro 2023

ELABORAÇÕES SOBRE AS CONSEQUÊNCIAS DE NOTICIAR INDISCRIMINADAMENTE SOBRE PEDIDOS DE ENCERRAMENTO

A agência noticiosa Lusa e o jornal Diário de Notícias associam-se para dar destaque ao pedido da Zero (associação ambientalista) para que o aeroporto de Lisboa seja encerrado. Por prejuízos devido ao ruído que têm «custos sociais incomportáveis». Esses custos (num valor estimado - mas não explicado... - pela notícia em 1.300 milhões/ano) «dariam pagar, pelo menos, dois novos aeroportos em local adequado (qual? quais?) com o menor impacto possível sobre a saúde humana».

Pois a mim parece-me perfeitamente proporcional pedir o encerramento da Zero, da Lusa e do Diário de Notícias precisamente pela mesma razão que é acima invocada: o excesso de ruído mediático, consubstanciado nestas notícias totalmente disparatadas e inconsequentes. É moralmente prejudicial lê-las sem ao menos poder perguntar a quem as produz e a quem as publica: e o que é que recomendam que se faça aos milhões de passageiros que utilizam anualmente o aeroporto que querem encerrar?...

Falando a sério, a notícia só tem esta divulgação porque a conclusão é tremenda e o que é repuxado para título é esse tremendismo. Se fosse mais razoável, mais ponderada, mais estruturada, mais explicada, nem a Lusa, nem o Diário de Notícias lhe teriam dado esta difusão.

OS EVADIDOS DE HELICÓPTERO

31 de Outubro de 1973. Três membros destacados do IRA (Exército Republicano Irlandês) - Seamus Twomey, Joe B. O'Hagan e Kevin Mallon - evadiram-se da prisão de Mountjoy em Dublin, na Irlanda. Fizeram-no espectacularmente, embarcando a bordo de um helicóptero Alouette II que fora desviado previamente pelos seus cúmplices e que pousou brevemente no pátio de exercícios da prisão, antes das autoridades prisionais terem reagido. Pela ousadia, a fuga ficou conhecida em todo o mundo e tornou-se um embaraço para o governo irlandês da época e para o primeiro-ministro Liam Cosgrave. A caçada aos fugitivos que se sucedeu não teve resultados suficientemente imediatos para caberem no hiato de tempo que a comunicação social dedicou ao assunto. Contudo, o primeiro foragido, Kevin Mallon, foi recapturado pouco mais de um mês depois, em 8 de Dezembro de 1973, Joe O'Hagan esteve mais de um ano em liberdade, até Janeiro de 1975, e Seamus Twomey só veio a ser recapturado em Dezembro de 1977, para cumprirem o resto das penas (a de Twomey até 1982). Mas, nesse período que se seguiu à evasão, o golpe publicitário/propagandistico já fora pregado e o grupo local Wolfe Tones escreveu uma canção celebrando a fuga intitulada "The Helicopter Song" (abaixo). Apesar das ressonâncias célticas que muito contribuíram para a popularizar (e irritar as autoridades...), aquela sonoridade, a fazer lembrar Robin dos Bosques e os seus alegres companheiros, celebrava outra coisa, porque a verdade é que o terrorismo do IRA em muito pouco se assemelhava ao que ficara escrito sobre o lendário herói medieval inglês.

30 outubro 2023

A APRESENTAÇÃO DO TÃO AGUARDADO «GUIÃO» PARA A REFORMA DO ESTADO

30 de Outubro de 2013. Depois do slogan ter sido continuamente brandido sem nunca ser concretizado, Paulo Portas vê-se compelido pelo próprio Passos Coelho a apresentar um documento que sustente aquilo que se entenderá por reforma do Estado, no formato de um guião de 112 páginas. Houve quem, mais do que o ler ou então tentar ler, e antes de desistir, tivesse montado uma nuvem de palavras com o conteúdo do documento. Ao fim destes dez anos que hoje se completam, a nuvem funciona como uma síntese da mediocridade do conteúdo, um encadeado de truísmos, desprovidos de qualquer séria fundamentação política. E em escassas 112 páginas nunca caberia qualquer indicação, ainda que sucinta, de como implementar o preconizado. No momento em que Paulo Portas precisava de mostrar a sua densidade política, demonstrou que não tinha qualquer densidade ideológica ou qualquer outra, não passava de um tacticista, com uma grande determinação pelo poder - também se poderia dizer um cabrão sem escrúpulos - acompanhada de uma grande habilidade para manipular a comunicação social (de onde viera para a política, aliás). De resto, não havia mais nada, como se acabara de ver quatro meses antes, no episódio da demissão irrevogável. Metaforicamente, tantas, tão unânimes e tão arrasadoras eram as críticas ao conteúdo do guião, que parecia que todos os amigos políticos que forjara ao longo da sua ascensão se haviam concertado no momento para arriar em Paulo Portas, agora que ele estava no chão. Desde então, não houve promoção (como esta abaixo) que conseguisse recuperar a reputação daquele que fora, mais do que líder, antigo proprietário do CDS/PP.

29 outubro 2023

COMO SE INVENTAM ENREDOS NOTICIOSOS INVOCANDO PESSOAS QUE NÃO SE SABE QUEM SÃO

O sequestro dos pais de Luís Díaz é (mais) uma tragédia (entre 21.000), mas a pretensão dos jornalistas que os leitores sabem, de certeza, quem é o filho dos sequestrados também é uma farsa (recordando as centenas de jogadores que já passaram pelo FC Porto).

O DISCURSO DA FUNDAÇÃO DA FALANGE

29 de Outubro de 1933. No Teatro da Comédia, em Madrid (Espanha), José António Primo de Rivera pronuncia o seu discurso da Fundação da Falange Espanhola onde estabelece os fundamentos do que será a ideologia daquele movimento. Pouco mais de três anos passados - 20 de Novembro de 1936 - ele seria fuzilado pelos republicanos e tornar-se-ia no mito da causa nacionalista. Essencialmente, para além de ideólogo, José António Primo de Rivera contribuiu muito pouco para a história de Espanha mas, precisamente por causa disso, tornou-se possível aproveitá-lo e invocá-lo para inúmeras funcionalidades do regime nacionalista que se veio a estabelecer a partir de 1939. José António Primo de Rivera estará para a Espanha franquista como James Dean está para o cinema de Hollywood: alguém que teve uma passagem meteórica pelo estrelato e que podia-ter-sido imensas coisas. E todas essas coisas encadeiam-se sempre e reforçam o discurso de quem o invoca.

28 outubro 2023

POLÍTICOS QUE NÃO GOSTAM DE DAR MÁS NOTÍCIAS

28 de Outubro de 2013. Estava-se no apogeu dos tempos da tróica. Vítor Gaspar abandonara o cargo nas Finanças há apenas quatro meses e agora era a sua sucessora Maria Luís Albuquerque que apresentava o orçamento no parlamento. Luís Montenegro era então o líder da bancada parlamentar do PSD e prestava-se a dar uma entrevista ao Público onde procurava extorquir daquele documento alguns resíduos de boas notícias como a subida do «limite mínimo para cortes nas pensões»... Traduzindo em miúdos: não se dava nada a ninguém, mas Montenegro «ponderava» que não se cortasse tanto a tanta gente... É esta a essência de Luís Montenegro: não gosta de dar más notícias e arranja tudo o que pode para não as dar. Nesse aspecto é inútil trocá-lo por António Costa. Quanto ao peso político que então lhe dariam, o cabeçalho da edição do dia seguinte do mesmo jornal parece-me eloquente:

UMA OUTRA COISA A QUE CHAMAVAM ELEIÇÕES

28 de Outubro de 1973. Tinha lugar em Portugal um evento a que as autoridades davam o nome de eleições. Por desistência da concorrência, apenas a organização governamental - acção nacional popular - se apresentou ao sufrágio e ganhou por unanimidade. Mas o pormenor que aqui se destaca é aquilo que os criativos conseguiam ainda fazer, num mundo que era muito menos globalizado do que é agora: por causa disso, plagiavam à descarada. Como se vê acima, o símbolo que foi usado pela ANP para aquelas eleições era uma cópia muito semelhante daquele que havia sido o da maioria governamental francesa (URP), nas eleições que se haviam realizado naquele país em Março daquele mesmo ano. Mas aí tratara-se de uma eleições a sério, com oposição e tudo, só que a imagem ainda era possível de ser reutilizada por cá.

27 outubro 2023

CRISTIANO RONALDO TORNOU-SE CO-PROPRIETÁRIO DO MICROFONE QUE ATIROU AO LAGO!

É uma demissão daquilo que há de mais nobre na profissão jornalística atreverem-se a dar hoje esta notícia sem recordarem, ao mesmo tempo, aquele inesquecível episódio do microfone do Correio da Manhã, tirado da mão de um jornalista irritantemente insistente e arremessado por Cristiano Ronaldo ao lago, para depois vir a ser de lá resgatado por uma equipa especializada de mergulhadores. Depois de ter sido o responsável por lhe ter conferido a fama - será que está agora num museu? - o famoso microfone enlameado passou hoje a ser também, um pouco, de Cristiano Ronaldo. E isso é imperdoável não noticiar.

ARAME FARPADO NA PRADARIA

27 de Outubro de 1873. O norte americano Joseph Glidden apresenta o seu pedido de patente para uma invenção sua: o arame farpado. Para além das suas funcionalidades óbvias de delimitar terrenos agrícolas de forma económica, que se estenderam depois a muitos outros campos, entre o político e o militar, delimitando fronteiras e frentes de combate, tornou-se um adereço indispensável para muitas histórias que agora se contam sobre o faroeste americano (acima), o conflito entre a pecuária e a sua substituição pela agricultura.

26 outubro 2023

...CENAS DOS PRÓXIMOS CAPÍTULOS

Eu já deixei de ver telenovelas há tanto tempo que já não sei se ainda se mantém a prática de antecipar algumas cenas do capítulo seguinte, para espicaçar a curiosidade do auditório. Noutro contexto, porém, o da batalha nos meios mediáticos de um conflito laboral e político, sei reconhecer as antevisões das «cenas dos próximos capítulos». O conflito laboral e político a que me refiro é o braço-de-ferro entre o governo e os médicos. Que o governo tem estado a perder, no que respeita às urgências, depois da renúncia geral de muitos médicos em cumprirem mais horas extraordinárias do que as exigidas por lei. O bloqueio da classe não é activo, é passivo, e por isso o governo não tem por onde lhes pegar - a não ser por medidas de força que o descredibilizariam aos olhos da opinião publicada e pública. Os responsáveis governamentais bem podem alertar para as consequências, anunciar uma catástrofe para o mês que entra, preparando a opinião pública, mas parece-me óbvio isso não desbloqueará o impasse. Mas notícias como a que se lê acima, parece ser o obrigatório passo seguinte, dando relevo mediático a um selecto conjunto de episódios negativos para a classe médica que ocorrem quotidianamente nos hospitais portugueses. Utilizando a opinião publicada (acima, o Jornal de Notícias, sedeado no Porto, tem sido uma «correia de transmissão» para os propósitos, tanto de Manuel Pizarro, como de Fernando Araújo...), creio poder antecipar que iremos assistir a um bombardeamento de notícias como a supra, ou até casos mais graves, com a intenção de conseguir deflectir as responsabilidades da crise das urgências do governo para os médicos.

Para quem já se tenha esquecido do que é capaz de se alcançar com estes exercícios de formatação da opinião pública, vale a pena recordar o que aconteceu em 2007, na altura contra o ministro da Saúde Correia de Campos e o processo de concentração das maternidades que ele havia patrocinado: noticiava-se o nascimento de crianças em ambulâncias como algo gravíssimo. Num artigo do Diário de Notícias de 2009 há até uma tabela acusatória: havia-se passado de 5 nascimentos em 2004 (antes do ministro) para 12 em 2007! O ministro Correia de Campos demitiu-se em Janeiro de 2008. Para contraste, para demonstrar que tudo aquilo não passou de manipulação mediática, note-se que apenas nestes últimos seis meses de 2023 consigo contar nove nascimentos em ambulâncias sem que do facto tivesse surgido qualquer crise política na Saúde: Maio (Aljustrel e Baião), Junho (Pataias e Valença), Julho (Melgaço e Marinha Grande), Agosto (Barcelos e Lourinhã), Setembro (Loures). Ou melhor, há uma crise política no sector da Saúde, o que é preciso é que se tenha aprendido com os exemplos passados a distinguir o que é informação do que é desinformação.

Adenda

Dois dias depois, um próximo capítulo, é o jornal Público que publica um artigo precisamente sobre o mesmo caso referenciado mais acima, artigo que termina com o parágrafo que inserimos abaixo. Da leitura desse parágrafo ficamos a saber que estes infelizes episódios ocorrem com uma frequência - porque os «números devem, na realidade, ser superiores aos reportados» - ocorrem em Portugal com uma frequência próxima de um caso por dia. Se é assim tão banal, ocorre perguntar porquê o destaque a este caso em específico e, sobretudo, porquê precisamente agora? (quando o conflito entre governo e médicos está ao rubro)

EM CONTRAPARTIDA, SER-SE IMBECIL É UMA COISA QUE INÊS PEDROSA NEM PRECISOU DE TREINAR: NASCEU COM ELA...

Há aspectos da vida que se aprendem por formação profissional, como seja a tolerância dos polícias a apanharem porrada, conforme acima postula Inês Pedrosa, nessa sua tese inesquecível de há cinco anos, mas há outros aspectos da vida que são completamente naturais e espontâneos, como a estupidez da própria autora da tese. Contudo, a haver problema, não é dela, é problema de quem continua a contratá-la para aparecer na televisão. É tão estúpido quanto ela, mas o que é que se há de fazer quando o objectivo parece ser o de ter idiotas em estúdio?... Ou, analisado de outro modo, a Inês Pedrosa talvez lhe paguem para ir dizer semanalmente aleivosias à televisão, os telespectadores é que ainda(?) não estão profissionalizados.

25 outubro 2023

AS DUAS POLÓNIAS ESCONDIDAS POR DEBAIXO DA POLÓNIA (2)

o havia referido no Herdeiro de Aécio (em Outubro de 2008, há quinze anos!) como as influências das antigas fronteiras que haviam dividido a Polónia entre 1815 e 1918 parecia continuar a influenciar o mapa eleitoral do país, mesmo quase um século depois dessas fronteiras terem sido abolidas e de quase toda a população de língua alemã que ali vivia ter sido expulsa. Como se pode observar pelo mapa abaixo, esse mesmo fenómeno mantêm-se, quando se analisam os resultados das eleições que tiveram lugar em meados deste mês.

O JULGAMENTO DE MANUEL PINHO

O julgamento de Manuel Pinho começou há duas semanas e tudo aquilo que lá tem sido revelado até agora está a ser muito interessante. O triste é que, e como de costume, a comunicação social, na sofreguidão de obter declarações (simbolizado, na fotografia acima, no(s) microfone(s) pespegado(s) à frente de Pinho), descura tudo o resto: o rigor (voltando à fotografia acima, Pinho, mais do que um arguido, agora tornou-se num réu) e a análise das revelações que se têm vindo a fazer. Felizmente nem todos são tontos e medíocres. Há quem faça o seu trabalho de análise da informação, o jornal Público, que hoje publica um editorial da autoria de David Pontes que abaixo parcialmente transcrevo:
«
(...) O julgamento do ex-ministro da Economia, Manuel Pinho, (...) é importante que algumas das coisas que temos sabido neste caso, que esperou 12 anos para chegar à barra do tribunal, não passem sem um sublinhado. (...)

Sabemos hoje, por palavras do próprio que era uma prática corrente do Banco Espírito Santo (BES) que os seus quadros superiores recebessem complementos de salários e prémios sem o declarar ao fisco. Uma “imposição”, disse o antigo ministro, que quando foi para o Governo ocultou o seu património numa offshore para fugir ao escrutínio devido a que estão obrigados os governantes com a declaração que têm de entregar ao Tribunal Constitucional.

Note-se que isto não é só que está na acusação, é mesmo o que o próprio já admitiu em tribunal. Como admitiu que enquanto era membro do executivo de José Sócrates recebia mensalmente do segundo maior banco do país 15 mil euros que eram enviados para uma offshore. Manuel Pinho diz que tudo não passa de um ilícito fiscal, que esse dinheiro, ao contrário do que diz a acusação, não era um pagamento de favores ao BES, mas só dinheiro que lhe era devido.

Alguém que tem com o dinheiro e com as exigências de um cargo público este tipo de atitude, terá sido convidado para o lugar de governador do Banco de Portugal por José Sócrates. Alguém que, segundo José Maria Ricciardi, antigo elemento da Comissão Executiva do BES, integrou o Governo por Ricardo Salgado ter “exercido influência” junto de José Sócrates, de quem “era muito íntimo”.

Mas o espanto não deve parar aqui. Graças ao Público e à SIC soube-se que uma das juízas que integram o colectivo deste julgamento foi casada com um alto quadro do BES que terá recebido um milhão através do “saco azul do GES”. Algo que, num primeiro momento, a juíza não terá achado que comprometia a sua idoneidade. É mesmo preciso continuar atento a este julgamento.
»
Eu concordo com David Pontes. Aquilo que se está a saber até agora é um retrato devastador das elites económicas e políticas portuguesas (e as judiciais também não se saem lá muito bem...). Com elites mostrando princípios éticos como estes (e outros...), como é que a ascensão de escroques como José Sócrates poderia ter sido sentida por elas como o aparecimento de um «corpo estranho»?...

(Nota: David Pontes não o especifica, mas quem questiona a questão da imparcialidade da juíza são os advogados de defesa dos réus, o que é no mínimo bizarro, já que, a uma primeira vista, as hipotéticas simpatias da juíza, por esta não considerar nada de comprometedor no comportamento do ex-marido, tenderiam a ser a favor de Manuel Pinho...)

QUANDO UM PARTIDO NO PODER COLAPSA... E A COMUNICAÇÃO SOCIAL SÓ DESCOBRE À ÚLTIMA DA HORA

(Republicação, porque este é um dos casos mais espectaculares de manipulação de sondagens)
25 de Outubro de 1993. Realizam-se eleições gerais no Canadá e os resultados são um daqueles raros episódios em democracias consolidadas, onde o partido que está no poder colapsa fragorosamente. O partido conservador, liderado à época pela primeira-ministra Kim Campbell (a primeira, e até hoje a única, mulher a ocupar aquele cargo no Canadá), passa dos 43% que recebera nas eleições de 1988 para uns míseros 16% dos votos. Mas isso nem é o pior. Por causa do sistema eleitoral canadiano, de tradição britânica, onde cada candidato disputa individualmente a eleição no seu círculo eleitoral, os deputados conservadores passaram de uma maioria de 169 (num parlamento com 295 lugares) para... 2. Remate de humilhação: nem a própria primeira ministra foi reeleita no círculo por onde se apresentara. Foram os liberais, a tradicional formação política que costuma alternar no poder em Ottawa, que assumiram o poder com Jean Chrétien como primeiro-ministro, apoiado numa maioria de 177 lugares. Mas o mais interessante que recordo de todo este episódio é como ele chegou sem se fazer anunciar: se se consultar aquilo que as sondagens anteviam, ainda um mês antes das eleições elas mostravam um equilíbrio entre conservadores (PC) e liberais (Lib). Só com o aproximar da data das eleições é que o panorama se foi progressivamente alterando até aderir aos resultados. Naquele tempo eu concluí que se tratara de uma evolução acentuada e brusca da opinião pública. 30 anos depois, escaldado por inúmeros enganos inaceitáveis e incompreensíveis em sondagens eleitorais, tendo a aceitar melhor a hipótese que houve de facto «uma evolução acentuada e brusca», mas da opinião publicada. Não havendo explicações exógenas anómalas (como foi este caso), as opiniões públicas tendem a mudar de opinião muito mais lentamente do que as sondagens abaixo mostram...

24 outubro 2023

A FOTOGRAFIA DA DECAPITAÇÃO DE UM PRISIONEIRO AUSTRALIANO

Esta fotografia tem precisamente 80 anos. Foi tomada por um soldado japonês, a pedido do oficial executor, em Aitape, que era então uma pequena povoação costeira nas costa norte da Nova Guiné sob controle japonês. Sabe-se que o executor se chamava Yasuno Chikao, mas pouco mais se sabe dele, nem mesmo há certezas sobre o que lhe veio a acontecer posteriormente. Em contrapartida, sabe-se que o executado era o sargento australiano Leonard Siffleet de 27 anos, que fora capturado cerca de duas semanas antes. Participava numa operação clandestina em território inimigo, em que lhe competia verificar e reportar o dispositivo militar que os japoneses haviam instalado naquelas paragens, depois de as haverem conquistado durante o primeiro semestre de 1942. Siffleet nem sequer fora capturado directamente pelos japoneses, mas sim por nativos hostis às suas actividades que o haviam entregue posteriormente, com a sua equipa, aos japoneses. A fotografia só chegou ao conhecimento dos Aliados em Abril de 1944, descoberta na posse de um oficial japonês morto - também é daquelas fotografias que, se encontradas na posse de um inimigo, se ele não estiver morto, passa rapidamente a estar... É uma daquelas fotografias simbólicas da Guerra do Pacífico, demonstrativa de como os códigos de conduta para com os prisioneiros de guerra não se encaixaram de todo entre os dois lados beligerantes. Depois de 1945, estas fotografias tornaram-se incomodativas na sua verdade cruel, pois os japoneses passaram a ser aliados dos americanos e australianos.

23 outubro 2023

OS ATENTADOS DE BEIRUTE

23 de Outubro de 1983. Em Beirute, um ataque quase simultâneo (dois minutos de diferença) efectuado por dois camiões-bomba conduzidos por suicidas, destrói as sedes dos aquartelamentos norte-americano e francês, que para ali haviam sido destacados como forças para a manutenção da paz. As explosões causaram 241 mortos (e 115 feridos) entre os militares dos Estados Unidos, 58 mortos (e 15 feridos) entre os da França, 6 mortos civis libaneses, para além naturalmente dos dois suicidas. Nunca houve qualquer referência a feridos entre a população civil. O acontecimento repercutiu-se automaticamente entre as opiniões públicas dos países visados. A revista Time, para além de noticiar «a carnificina» na edição imediata, numa posterior perguntava ostensivamente na primeira página se as iniciativas musculadas da Administração Reagan «valeriam o preço». A retirada dos americanos (e dos franceses) em Fevereiro de 1984, depois de um intervalo de tempo decente, mostrou qual foi a resposta de Ronald Reagan (e de François Mitterrand).

«WHAT HAPPENED TO JOÃO ALMEIDA?»...

Por ocasião do décimo aniversário de uma das frases mais profundas da política portuguesa no século XXI, é também ocasião propícia para perguntar: o que é que aconteceu entretanto a João Almeida?... Por onde se tem malbaratado tanta intuição política?

22 outubro 2023

TV NOSTALGIA - 91

A ocasião do 40º aniversário da estreia de «O Tal Canal», é bom pretexto para se constatar o que terá sido a evolução do comentadorismo futebolístico em televisão. Em 1983, José Estebes era uma caricatura cómica e Paulo Futre ria-se do comentador rústico e desbocado. Agora é o mesmo Paulo Futre que faz rir, mas o modelo do comentador rústico e desbocado está tão enraizado que o próprio programa já nem tem a pretensão de ser de humor.

A TROCA DE CIDADÃOS NA ÍNDIA PORTUGUESA

(Republicação)
22 de Outubro de 1943. Em Mormugão (Goa), dão-se por concluídos os procedimentos de mais uma permuta de cidadãos de países beligerantes que se encontravam do lado errado quando da eclosão da guerra. Neste caso, a permuta envolvia cidadãos de países aliados que se encontravam em territórios controlados pelo Japão e cidadãos nipónicos que residiam na América do Norte ou do Sul. Cada uma das partes transportava os cidadãos do inimigo num navio até um porto neutral escolhido por ambas, para aí proceder ao transbordo e identificação dos cidadãos entregues e recebidos. No caso da guerra na Ásia, Portugal desempenhava nestas operações um papel incontornável, pois era o único país que permanecera neutral e que dispunha de territórios e portos no Oceano Índico onde se podiam processar tais operações. Para não serem atacados pelos submarinos, os navios que as realizavam estavam enfaticamente identificados como se pode ver pelas fotografias acima. O navio usado pelos Aliados navegava até sob pavilhão sueco, o Gripsholm; o usado pelos japoneses era um antigo navio francês, o Aramis, que haviam rebaptizado de Teia Maru depois de o apresarem em 1942. A viagem deste último, desde a saída de Yokohama em 14 de Setembro até chegar a Mormugão um mês e um dia depois, explicará mais em concreto em que consistiam estas «trocas de cidadãos». Saído com 80 passageiros do Japão, foi embarcar mais 975 a Xangai a 19 de Setembro, 24 a Hong-Kong a 23 de Setembro, foi buscar mais 130 às Filipinas a 26 de Setembro, 27 ao Vietname em 30 de Setembro e ainda 289 a Singapura em 5 de Outubro. Ao chegar a Mormugão, em 15 de Outubro de 1943, o Teia Maru trazia 1.525 passageiros. Havia muitos membros do clero, padres e freiras, também missionários protestantes, também havia executivos de empresas norte-americanas que operavam na Ásia e respectivas famílias. A grande maioria era norte-americana (1.233), mas também havia canadianos (217), alguns britânicos, mas também cidadãos de outros países neutrais (15 chilenos) que haviam preferido abandonar os países que os albergavam. No dia seguinte chegou o Gripsholm, que havia realizado uma viagem semelhante, trazendo a bordo os 1.340 cidadãos japoneses que regressavam também ao seu país. Os dois navios ficaram acostados próximos, como a fotografia acima documenta, mas foi só três dias depois, a 19 de Outubro, após a identificação de todos os passageiros, que o transbordo de pessoas e bagagens teve lugar. Depois de conferido, o Teia Maru largou a 21 de Outubro para Yokohama, via Singapura e Manila, o Gripsholm fê-lo no dia seguinte (há precisamente 80 anos) para Nova Iorque, via Porto Elizabeth (na África do Sul) e Rio de Janeiro. Nesse dia a United Press publicava dois pequenos despachos em que dava conta da satisfação das duas partes pela forma como a operação tinha decorrido. Era um ponto a favor de Portugal.

EXERCÍCIO "BIG LIFT"

22 de Outubro de 1963. Por uma primeira vez, os Estados Unidos transportaram uma divisão completa do seu exército numa enorme ponte aérea sobre o Oceano Atlântico, dos seus aquartelamentos de origem para a Europa. No total tratou-se de 15.358 efectivos pertencentes à 2ª Divisão Blindada, que eram acompanhados de 504 toneladas de material de guerra e que foram transportados em 204 aviões desde oito bases situadas no sul e no sudoeste dos Estados Unidos, tendo como destino bases situadas na França e na Alemanha. Durante o exercício, que durou dois dias e meio, os aviões de transporte foram escoltados por 116 caças tácticos que os acompanharam sobre o Atlântico. Como aviões de transporte foram utilizados tanto Boeings C-135, que realizavam a viagem de 5.600 milhas em 10 horas e meia sem qualquer escala, como Douglas C-124, que eram substancialmente mais lentos, e que precisavam de se reabastecer nas Bermudas e nos Açores. O trajecto destes últimos não aparece no quadro acima, porque o propósito principal do exercício era o de propaganda: exibir a rapidez como o exército norte-americano conseguiria deslocar uma divisão de combate para a Europa no cenário de uma potencial invasão soviética. Após as manobras terrestres de Outono da NATO na Europa, as tropas foram transportadas de volta para os Estados Unidos a partir de 21 de Novembro de 1963.

21 outubro 2023

OS (MEUS) VERDADEIROS CINQUENTA ANOS DE «THE DARK SIDE OF THE MOON»

21 e 28 de Outubro de 1973. É só no Outono de 1973 que se começa a popularizar o álbum «The Dark Side of the Moon» em Portugal. Acima vemo-lo a aparecer pela primeira vez em 2º lugar no Top dos LPs mais vendidos (à esquerda) e, na semana seguinte, é o single «Money» (abaixo) que aparece colocado em 8º lugar. Quem viveu as memórias deve ter o cuidado de as recordar como aconteceram.
E depois há aqueles que pedem as memórias emprestadas a terceiros (como se vê abaixo), celebrando os acontecimentos com meses de antecedência e de discrepância com os factos... É que em Março de 1973, como se escreveu no Expresso há sete meses, (quase) ninguém em Portugal faria a mínima ideia de que o disco fora lançado. Este será então o 12º «facto notável que (provavelmente)» nem o jornalista conhece...

20 outubro 2023

O "MASSACRE" DE SÁBADO À NOITE

Sábado, 20 de Outubro de 1973. Para se cobrir das repercussões daquele que começara por ser o caso do assalto nos edifícios Watergate, o presidente Richard Nixon decidira ser ele a nomear em Maio de 1973 um investigador especial para aquele caso. O investigador chamava-se Archibald Cox e, cinco meses passados, depois da descoberta dos gravadores que gravavam as conversas na Casa Branca, estava a revelar-se demasiado "diligente" para os desejos do presidente Richard Nixon. Há cinquenta anos, com a descrição de se estar em pleno fim de semana e com as atenções mediáticas francamente focadas na Guerra do Yom Kippur, Nixon convocou discretamente o novo (desde também Maio de 1973...) Procurador-geral da sua administração, Elliot Richardson, instruindo-o para que ele demitisse Cox. Richardson não só não o demitiu, como se demitiu ele próprio em protesto. O vice de Richardson, William Ruckelshaus, convocado por sua vez, adoptou precisamente a mesma atitude e demitiu-se. Foi preciso descer mais um nível na hierarquia, com o substituto Robert Bork, para que houvesse alguém disposto a cumprir as directivas do presidente e demitisse Archibald Cox. O investigador fora demitido, mas o processo, que se pretendia discreto, passara a ser tudo menos isso. A imprensa apressou-se a baptizar todo o episódio, numa ironia não desprovida de exagero, de «O Massacre de Sábado à Noite». Para a imprensa americana, o assunto encheu logo as primeiras páginas das edições de Domingo 21. Mas para a imprensa portuguesa, concentrada, como a do resto do Mundo, no conflito israelo-árabe então em curso, a notícia demorou mais tempo a cá chegar (dia 22).
O incidente terá tido um significativo impacto negativo na imagem de Richard Nixon. É difícil aceitar que isso terá acontecido no mesmo país que hoje tem aceitado com uma reacção inexplicavelmente mais moderada tudo aquilo de que tem sido acusado Donald Trump.

«LEVEM O LIVRO, QUE NOS FAZEM UM FAVOR!»

20 de Outubro de 2022. Consolidando a imagem internacional de um Reino Unido completamente desnorteado politicamente, a primeira-ministra Liz Truss apresenta a sua demissão depois de uma passagem meteórica de mês e meio pelo cargo. Uma forma colateral mas, ao mesmo tempo, muito divertida de narrar o fiasco foi aquilo que aconteceu ao seu livro, mais um daqueles livros que se escrevem sobre primeiros-ministros e que só dizem baboseiras elogiosas. Passou de £14,99 a oferecido num ápice! Os outros demoram mais tempo...

19 outubro 2023

QUANDO SE OLHA PARA OS DENTES DE UMA MULA QUE O CIGANO NOS QUER VENDER

19 de Outubro de 2022. Há precisamente um ano, em audição na comissão da Saúde da Assembleia da República, o (então) recém-empossado ministro daquela pasta, Manuel Pizarro, anunciava com destaque que haviam sido abertas 200 vagas para internos de Medicina Geral e Familiar na Região de Lisboa e Vale do Tejo (LVT). A promessa tornava-se tanto mais solene quanto ela foi depois destacada nesse mesmo dia na página oficial do governo! (abaixo) Agora, a pergunta difícil: quais foram os resultados concretos desse concurso tão pomposamente anunciado? Esses resultados apareceram publicados logo dois meses depois, a 15 de Dezembro de 2022. Só que, nesse caso, já deixara de haver a pompa e a página governamental, apenas umas entediantes 45 páginas, que será preciso consultar uma por uma para se verificar qual o resultado da promessa do ministro. Em suma, e para os 15 ACES que compõem a Região LVT, o total de vagas preenchidas foi de 117, o que quer dizer que mais de ⅓ das vagas anunciadas pelo ministro ficou por preencher. Mas isso já não se anunciou, nem com pompa, nem sem ela. Este é apenas o primeiro aniversário de mais uma dessas milhentas aldrabices que Manuel Pizarro anda a impingir. Mas parece ser emblemático da seriedade que podemos esperar dos protagonistas governamentais desta área. Depois do exemplo da dentição da mula do cigano e continuando com metáforas dentais: quando eles dizem uma verdade, cai-lhes um dente!

A ALEMANHA ABANDONA A SOCIEDADE DAS NAÇÕES

19 de Outubro de 1933. Seguindo o exemplo japonês de 27 de Março, também a Alemanha abandona a Sociedade das Nações. Mas, ao contrário da forma crispada como havia sido coberta e noticiada a saída do Japão, há uma diferença substancial para o formato quase cordato como as autoridades alemãs se encarregam de amenizar a sua atitude, atente-se à maneira como a imprensa portuguesa do dia seguinte dava conta do que acontecera: «o discurso de Hitler» tranquilizara «a atmosfera internacional»... Sendo isso uma suposição d«os jornais alemães», é mais do que razoável admitir que há aqui um dedo de Joseph Goebbels.

TORRES COUTO E A COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO AOS FUNDOS PARA A FORMAÇÃO PROFISSIONAL DA UGT

19 de Outubro de 1993. O secretário-geral da UGT, Torres Couto, comparece na Comissão Parlamentar de Inquérito que inquiria sobre o destino que fora aos fundos para formação profissional atribuídos à central sindical UGT. O escândalo rebentara um ano antes (veja-se abaixo a capa de O Independente de Março de 1992, com um dos seus tradicionais trocadilhos) e as denúncias relacionavam-se com as apropriação dos fundos destinados às acções de formação de 1988 e 1989.
Estava-se em pleno cavaquismo, e com o escândalo envolvendo uma central sindical cuja criação fora originalmente apadrinhada pelo centrão (PS e PSD), o resultado era que o ritmo das revelações do que acontecera e a nomeação de quem estivera envolvido era lento, para não dizer mais. O resultado da audiência não foi propriamente esclarecedor. Mas a reputação do secretário-geral da central estava a ser progressivamente arrasada à medida que as revelações se sucediam.
Se o governo do PSD se mostrava incomodado (alguns dos envolvidos eram desse partido, como o tesoureiro, José Veludo*), na direcção da UGT predominavam os socialistas e quase toda essa direcção parecia envolvida no escândalo. O próprio PS, dirigido por António Guterres, preferiu deixá-los discretamente caírem. Daí por um ano Torres Couto demitiu-se do partido, com estrondo mediático e alegando outras razões, mas já então era considerado uma pessoa muito pouco recomendável...

* Veludo foi o único dos arguidos a que o «tribunal considerou atribuível o crime de burla na forma tentada» mas, quando chegou a essa conclusão, em 2007, 14 anos depois da audição parlamentar, estava tudo prescrito...

18 outubro 2023

O «RÉCUS» E O OUTRO CONDECORADO

(Republicação)
Ainda a pretexto do mesmo tema de um outro poste mai'las condecorações com a Ordem da Torre e Espada do Valor, Lealdade e Mérito, vejam-se estas duas fotos da cerimónia ocorrida a 18 de Outubro de 1973, por ocasião da abertura solene do ano lectivo 1973/74 do Colégio Militar, presididas, como então era comum, pelo presidente da República, o almirante Américo Tomás. Por estar de costas, haverá uma certa dificuldade em identificar o distinguido da fotografia da direita, mas o aluno condecorado na fotografia da esquerda reconhece-se de caras: é o José Firmino Vieira de Meireles Corte Real (tratado entre amigos mais familiarmente por Récus), que ali recebe do chefe de Estado a sua Medalha de prata de Aplicação Literária respeitante à sua classificação do 1º ano (com fita vermelha).

A GATA FÉLICETTE, A HEROÍNA DO «PROGRAMA ESPACIAL FRANCÊS»

(Republicação)
18 de Outubro de 1963. Os soviéticos tinham tido os seus cães, nomeadamente a célebre cadela Laika (acima, à esquerda), pioneira e mártir do primeiro voo orbital habitado em Novembro de 1958. Os norte-americanos, por seu lado, preferiam os chimpanzés e o seu pioneiro foi Ham, que acima aparece envergando um capacete da NASA pouco antes do seu voo suborbital em Janeiro de 1961. E completam-se hoje precisamente 60 anos que os franceses, naquela sua conhecida folie des grandeurs (mania das grandezas), resolveram adicionar, para glória do seu programa espacial, mais um bicho, o gato, ou melhor uma gata, à gesta da bicharada pioneira do espaço. Baptizaram-na de Félicette e a biografia que para ela criaram dava-a como uma genuína gata frequentadora dos algerozes parisienses antes de ter sido recolhida, qual trabalhadora do Pigalle apanhada pela ramona... Menos oficial mas ainda mais interessante era a historieta transmitida em surdina, que Félicette viera substituir à última hora Félix, um seu colega que, seleccionado antes dela, dispensara, por assim dizer, a honraria de se tornar gato pioneiro no espaço, evadindo-se para se cafrealizar, misturando-se com a gataria de Hammaguir, a vila argelina onde então se realizavam os ensaios dos foguetes franceses. A verdade é que os fait-divers a respeito da viagem espacial de Félicette pareciam ser mais interessantes do que os hard-data. Sobre estes últimos, o que havia a dizer era que o lançamento se inseria no programa de pesquisas espaciais da França, especificamente pesquisas no campo da biologia espacial. O foguete lançador era designado por Véronique. Como acontecia com os concorrentes soviético e americano, a concepção e design dos foguetes franceses também devera muito aos trabalhos percursores que os técnicos alemães haviam desenvolvido em Peenemünde durante a Segunda Guerra Mundial.
O que o voo em que Félicette participaria pretenderia alcançar era transportá-la até uma altitude de 157 km (na viagem ela estaria sujeita inicialmente a uma pressão de 9,5 G para depois estar cerca de 5 minutos em condições de imponderabilidade), para recuperar depois a cápsula, de preferência com a gata viva. Nesse aspecto, a viagem de Félicette veio a revelar-se um sucesso. Félicette teve a sorte do seu lado; um seu colega que participou num outro voo daí por seis dias não a terá... A importância da gata pode ser avaliada pelo facto de haver duas fotografias acima retratando o mesmo momento, o da colocação da gata na ogiva do foguete (onde a fotografia da esquerda parece ser a encenada). Apesar das aparências e das irrelevâncias promocionais (nunca terá havido nenhum Félix evadido), a realidade é que o programa espacial francês se encontrava quase uma década atrasado em relação ao das duas superpotências. A viagem de Félicette apenas repetia aquilo que norte-americanos e soviéticos já haviam testado na década de 1950. A França ainda teria que esperar mais dois anos até conseguir colocar o seu primeiro satélite em órbita. E, no campo concreto das pesquisas em biologia espacial, a França nunca veio a desenvolver uma capacidade autónoma para colocar um homem em órbita (para além dos dois países que já então a tinham adquirido, tal capacidade só veio a ser adquirida em 2003 pela China). A esta distância percebe-se nitidamente que a viagem de Félicette não passava do que hoje designaríamos por um golpe publicitário para maior glória de França!

INDICADORES ESTATÍSTICOS DE CRESCIMENTO ECONÓMICO

18 de Outubro de 1963. Há sessenta anos, a utilização do Produto Nacional Bruto como expressão da importância económica de um país era um conceito relativamente recente. Começara cerca de 20 anos antes nos Estados Unidos, durante a Segunda Guerra Mundial, mas utilizado internamente pela própria Administração para avaliação das consequências do esforço de guerra na economia americana. Depois do fim da guerra, esse género de indicadores económicos haviam também sido adoptados pelos países europeus e a sua compreensão e conhecimento haviam-se difundido a ponto de, em 1963, poderem ser publicados na página especializada de um jornal diário. O quadro que se abaixo de destaca evidencia o crescimento económico anual da América do Norte e da Europa Ocidental durante a década de 1950.

17 outubro 2023

O EMBARGO DO PETRÓLEO ÁRABE

17 de Outubro de 1973. Reunidos no Koweit, os representantes dos países árabes produtores de petróleo anunciam um aumento de 17% do preço do produto sem quaisquer negociações prévias com as grandes petrolíferas. Mais do que isso, anunciaram a realização de uma nova reunião em que discutiriam o emprego dos fornecimentos do produto como arma negocial no quadro da guerra do Yom Kippur então em curso. Este é o exemplo típico da notícia cujas consequências não são completamente digeridas no momento da sua publicação. A primeira página do Diário de Lisboa do dia dedica apenas um espaço no seu canto inferior direito às conclusões da reunião (esquerda). Mas a edição do dia seguinte voltava ao tema, sobretudo interrogando-se quanto às suas repercussões para todos os países ocidentais: Estados Unidos, Grã-Bretanha e também Portugal.
A verdade é que o desenvolvimento técnico dos automóveis pouco apostara até aí na redução dos consumos de combustível, considerado um recurso abundante e relativamente pouco dispendioso. Pode-se apreciar nesta segunda fotografia, o impacto que as medidas de racionamento podiam vir a ter num proprietário de um banal VW Carocha familiar: os 10 galões autorizados por cliente (cerca de 38 litros) que se lê no cartaz, dar-lhe-iam para andar um pouco mais de 400 km. Todas essas motorizações sedentas de combustível foram rapidamente ultrapassadas por outras bem mais parcimoniosas.

16 outubro 2023

MANEIRAS PECULIARES COMO SE DÁ UMA NOTÍCIA

Quando este caso surgiu, em finais de Abril de 2014, João Alberto Correia, que era à época o director-geral da direcção-geral de Infraestruturas e Equipamentos (DGIE), um organismo pertencente ao Ministério da Administração Interna, foi detido por suspeitas de corrupção. E, como se lê na notícia mais abaixo, Miguel Macedo, o ministro da pasta, saiu em defesa da instituição: o seu prestígio não estava em causa. Não estaria, mas dois meses e meio depois, em Julho de 2014 e aproveitando quiçá a folga das atenções do Verão, a direcção foi extinta e o seu pessoal disperso... Para quem se mostre desconfiado quanto às intenções do ministro, acrescente-se que a história não acabou aqui porque, soube-se bastante mais tarde, a rede de corrupção envolveria conexões maçónicas e dali por quatro meses, em Novembro de 2014, o próprio ministro, que também teria os seus telhados de vidro, via-se atascado num outro escândalo paralelo, o dos vistos gold, e por isso forçado a pedir a demissão. Em comunicado de 16 de Novembro de 2014,  o PSD elogiou a dignidade de Miguel Macedo, recusando a comparação com outros ministros. Mas em termos de notoriedade mediática, nunca mais o caso se conseguiu separar do ministro da tutela de então: Miguel Macedo. Concordo o quão pode ser injusto, mas é mesmo assim: recorde-se o caso mais recente de contornos semelhantes, que envolve uma outra direcção-geral, agora do ministério da Defesa, caso esse que não se despega do titular da pasta na época dos acontecimentos: João Gomes Cravinho. Em contraste, Miguel Macedo já se conseguiu despegar do seu caso: lê-se a notícia da condenação - ao fim de nove anos e meio! - do director-geral e em lado nenhum se lê o nome do ministro a quem pertenceu a responsabilidade política de tudo aquilo que hoje foi dado como provado em tribunal. Condenem os escroques mas, ao mesmo tempo, chamem incompetentes aos incompetentes.

O DESDOBRAMENTO DA CARREIRA

Numa daquelas notícias bem dispostas que nos chegam de todos os lados do mundo, ficamos a saber que, no Japão, a companhia aérea JAL teve que proceder cautelosamente ao desdobramento de um voo doméstico de onde constava na lista de passageiros uma ampla selecção de lutadores de sumô, que, como a imagem acima documenta, são aquele género de passageiros que tendem a preencher de uma maneira exuberante, com os seus 120 kg de peso (em média), o espaço de qualquer aeronave - repare-se como, na foto acima e para contraste, as bagageiras do tecto até parecem estar vazias... Os 27 lutadores que colectivamente conseguiam desequilibrar as previsões para a lotação de um Boeing 737, foram transportados num avião especialmente alocado para o efeito, aquilo que em Portugal sempre se designou nos transportes rodoviários por desdobramento da carreira (abaixo), algo que era praticado quando havia passageiros em excesso. Aqui, talvez não houvesse passageiros em excesso, talvez acontecesse é que alguns passageiros fossem excessivos... De acordo com os jornais locais, os atletas foram participar num torneio que se disputou em Amami Oshima, uma das ilhas do Sul do Japão e regressaram do mesmo modo, num avião só para eles.

A DETENÇÃO DE AUGUSTO PINOCHET. SERÁ QUE OS DITADORES PODEM SER JULGADOS?

(Republicação)
16 de Outubro de 1998. Augusto Pinochet é detido em Londres às ordens de um tribunal britânico, respondendo às solicitações de extradição oriundas de um tribunal espanhol. O general chileno e antigo presidente da Junta Militar que governara o país de 1973 a 1990, então com quase 83 anos (mas que apenas abandonara o comando das Forças Armadas chilenas há uma meia dúzia de meses), deslocara-se ao Reino Unido para tratamento médico a uma hérnia e encontrava-se até internado quando a ordem de detenção fora executada. Entre os especialistas legais das diplomacias chilena e britânica que haviam analisado a deslocação, ninguém se apercebera das potencialidades acrescidas da integração europeia da década de 1990. Contudo, essas potencialidades haviam feito ruminar uma ideia num juiz espanhol sedento de publicidade (Baltazar Garzón) que, querendo indiciar Augusto Pinochet pela execução de cidadãos espanhóis durante a ditadura, se aproveitou da sua presença num país da União Europeia para lhes solicitar a sua extradição. As acusações tinham ressonância: genocídio, terrorismo, tortura, desaparecimento de pessoas.
Mais do que as manifestações pró e contra a detenção que as televisões se apressaram a transmitir, a iniciativa foi um descomunal embaraço para as diplomacias envolvidas e para todo um protocolo de comportamento adoptado por elas. Um protocolo onde se subentende que um país anfitrião não inferniza a vida de antigos ditadores quando eles abandonam o poder e se exilam - afinal, o próprio Chile fizera isso mesmo quando acolhera Erich Honecker, o antigo ditador comunista da República Democrática Alemã, após a reunificação alemã. Neste caso dos britânicos e de Pinochet, acrescia o facto de os primeiros lhe deverem favores concedidos em tempos de necessidade, pelo apoio dado pelo Chile ao Reino Unido quando da Guerra das Malvinas (1982). Ao pedido de extradição e ao estupor que se seguiu (mas estas coisas não era só para fazer aos nazis?), seguiu-se uma complexa batalha legal onde era inequívoca para que lado pendia a posição do governo britânico (apesar de ser trabalhista). Em termos mediáticos e como se pode observar pelas fotos, a canónica de Pinochet, de óculos escuros e braços cruzados desafiantes, em 1973, foi substituída pelas de um velhinho amparado que mal se conseguia mexer.
Do outro lado, furos jornalísticos oportunamente surgidos faziam saber que o general que tanto se empenhara pela salvação da sua pátria, afinal detinha milhões em contas no estrangeiro. Em termos judiciais, os que interessam, o governo britânico recusou-se terminantemente a extraditar Augusto Pinochet para Espanha, alegando razões de saúde. Mas a situação gerada pelo pedido espanhol, considerando a gravidade das acusações que sobre si pendiam, era, só por si, um impasse: o antigo ditador esteve em prisão domiciliar mais de um ano (503 dias), até que alguém se lembrou do expediente de o levar a uma junta médica britânica que o declarou irremediavelmente senil e incapaz de ser submetido a julgamento. Os britânicos aproveitaram a oportunidade para o extraditar... mas para o Chile. Mas, nem mesmo no Chile natal, Pinochet se livrou da perseguição jurídica pelos seus actos no poder. A iniciativa de Gárzon desencadeara uma moda, mas a facção dos que o defendiam era aí também mais substancial. Quando morreu, em Dezembro de 2006 (ou seja, mais de oito anos depois desta notícia de há vinte e cinco anos), ainda Pinochet estava a contas com a justiça... que, tirando-lhe uma parte do dinheiro que acumulara, nunca lhe conseguiu pôr a mão em cima.