(Republicação)
Ao contrário do Quanza de que se falou noutro lado deste blogue, o Serpa Pinto já era um navio veterano quando passou a navegar com bandeira portuguesa. Construído em 1915, originalmente para um armador britânico, a Primeira Guerra Mundial fizera com que ele fosse requisitado pela Royal Navy durante o conflito; depois fora devolvido ao proprietário que o explorara até o revender em 1935, por causa da crise mundial, a um armador jugoslavo. Em 1940, reagindo à escassez de transporte marítimo desencadeada pela eclosão da Segunda Guerra Mundial, o navio que se chamara até então Ebro e Princesa Olga acabou sendo comprado por uma companhia portuguesa, a Companhia Colonial de Navegação (CCN) - não a confundir com a sua grande rival, a Companhia Nacional de Navegação (CNN), que era a proprietária do Quanza. O navio deslocava 8.267 toneladas, tinha 142,5 metros de comprimento e 17 de largura máxima, e podia atingir uma velocidade máxima de 15,5 nós. À sua chegada a Portugal, além do novo nome e da aposição da pintura de guerra, que tornava o navio e a sua nacionalidade identificáveis a grande distância (veja-se a fotografia acima), o navio sofreu algumas transformações em termos de alojamento: passou a ter capacidade para transportar 329 passageiros nas três classes tradicionais, para além do acrescento de uma classe suplementar nas cobertas para 375 passageiros adicionais.
Sendo duas das três únicas companhias que podiam fornecer serviços de transporte marítimo regular sob uma bandeira neutral durante a Segunda Guerra Mundial (a terceira companhia era espanhola), a concorrência entre Colonial (CCN) e Nacional (CNN) tornou-se acesa porque o mercado era muito lucrativo apesar da guerra. Na Linha da América (do Norte) o Serpa Pinto podia ser considerado a resposta da CCN à CNN e a navios como o Quanza. Daí aquela adição de 375 passageiros para a classe popular, viajando nas cobertas, a fazer recordar as cenas do filme O Imigrante de Charlie Chaplin. Em Maio de 1944, quando do anúncio acima da próxima partida dia 15 do Serpa Pinto para o porto de Filadélfia, o passageiro-tipo já não era o mesmo passageiro de ascendência judaica e das mais variadas proveniências, abastado mas indocumentado, que protagonizara a saga do Quanza no Verão de 1940. Continuava a predominar o cosmopolitismo - no Serpa Pinto chegou-se a registar a presença simultânea de passageiros de 42 nacionalidades diferentes! - e a ascendência judaica mas a selecção fazia-se agora pelo engenho e perseverança de quem conseguira fugira às malhas que cercavam o continente europeu, quase totalmente ocupado pela Alemanha. Mas aquilo que aconteceu ao Serpa Pinto em 26 de Maio de 1944, durante a viagem acima anunciada, demonstrava que a travessia do Atlântico nem sempre era isenta de vicissitudes.
Sala de Jantar e Bar da 1ª Classe
O Serpa Pinto saíra de Lisboa a 15 de Maio com 385 passageiros. Próximo da meia noite de 26 de Maio, quando se encontrava a cerca de 600 milhas a Leste das Bermudas foi interceptado por um submarino alemão, o U-541. Após o exame da documentação do navio, o imediato do Serpa Pinto, que a apresentara, foi feito refém a bordo do submarino, enquanto o comandante deste informava o capitão Américo dos Santos da sua intenção de torpedear o navio português. Era-lhe dada ordem de abandonar o navio com passageiros e tripulação no prazo de vinte minutos. Felizmente o mar estava calmo, e a operação de transferência das mais de 500 pessoas do navio para as baleeiras processaram-se sem incidentes graves, mas foi nessa fase que se registaram as três vítimas mortais do incidente: o médico de bordo, que acabou (paradoxalmente) por falecer vítima de crise cardíaca; um membro da tripulação, um cozinheiro português, que se terá atirado (ou caído) ao mar para nunca mais ser visto; e um passageiro, uma criança polaca de alguns meses de idade que desapareceu da vigilância dos pais nas circunstâncias confusas do embarque nocturno.
O navio foi abandonado à deriva, sem ninguém, durante horas, enquanto tripulação e passageiros aguardavam expectantes que fosse torpedeado de um momento para o outro. Próximo da alvorada, o comandante do Serpa Pinto, Américo dos Santos, foi levado a bordo do U-541 onde o respectivo comandante, o Capitão-Tenente Kurt Petersen (abaixo), o informou que aguardava instruções de Paris (cidade onde estava localizado o QG da arma de submarinos da Kriegsmarine) a confirmar a autorização para o torpedeamento. Petersen deveria estar compenetrado e ansioso: afinal seria o seu primeiro afundamento, e logo de um paquete de 8.000 toneladas! Mas a resposta que acabou por chegar às oito da manhã era afinal negativa. Por muito que isso enriquecesse o palmarés de Petersen, algum Almirante mais avisado terá temido que o afundamento de um navio daquelas dimensões de um país neutral, naquelas circunstâncias, arriscar-se-ia a ser excessivamente contraproducente para o valor militar da presa. Recorde-se que, desconhecido dos intervenientes, o desembarque da Normandia teria lugar dali por dias, a 6 de Junho de 1944. Sem ressentimentos, procedeu-se ao reembarque dos passageiros e tripulantes e o Serpa Pinto lá prosseguiu a viagem até Filadélfia, sem mais incidentes.
O Serpa Pinto continuou ao serviço nas rotas da América da CCN até 1954. Kurt Petersen conseguiu finalmente afundar o seu navio em 3 de Setembro de 1944 ao largo do Canadá: o cargueiro britânico Livingstone, de 2.000 toneladas. Morreu em 2010 com a provecta idade de 93 anos. E não me surpreenderia nada que Petersen tenha morrido convicto que os passageiros e tripulantes do Serpa Pinto e os portugueses em geral lhe deviam agradecer a magnanimidade de que deu provas. É aquele muro de incompreensão basal que nos separará dele, de pessoas como Wolfgang Schäuble e de uma apreciável percentagem de alemães...
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