26 agosto 2014

O DOUTORAMENTO DO CAUDILHO

Salamanca, 8 de Maio de 1954. Haviam-se passado precisamente nove anos após o fim da Segunda Guerra Mundial na Europa, mas o que se celebrava na famosa Universidade local (a mais antiga da Europa) era o seu 700º centenário, oportunidade para a cerimónia da atribuição do grau de doutor honoris causa ao generalíssimo Francisco Franco (1892-1975). Há muito que o reitor da universidade deixara de ser um Miguel de Unamuno (1864-1936), cuja conduta levara a que fosse expulso do cargo em 1936. Dezoito anos depois o reitor chamava-se Antonio Tovar (1911-1985), viria a ser um filólogo de mérito, mas cujo êxito da carreira inicial se deveria muito mais à militância na Falange e à protecção de Serrano Súñer, o cunhadíssimo (1901-2003), do que aos predicados académicos. Para a ocasião, o caudilho de Espanha, que nunca pretendera passar por intelectual, e a quem se conhecia até alguns comentários de desdém pela actividade, mostrava estar nitidamente fora da sua zona de conforto. O discurso de aceitação que proferiu (acima), após as quase obrigatórias expressões de modéstia preliminares, foi de uma auto-congratulação deslocada, com referência àqueles de nós que fazem a História, comparando a sua obra aos caudilhos reais que no Século XIII, já na fase de merecido descanso após a conclusão vitoriosa da Reconquista, lançaram as fundações sobre as quais a gloriosa Universidade de Salamanca viria a ser erigida. Foi uma cerimónia tensa, descreveu-a quem a ela assistiu: a certa altura, um dos professores catedráticos presentes tentou tirar a sua bolsa de tabaco do bolso e viu o seu gesto ser escrutinado por um punhado de membros da equipa de segurança do chefe de Estado espanhol subitamente reunidos à sua volta. Franco permaneceu rígido durante toda a cerimónia, mal abriu a boca durante o banquete que se lhe seguiu, e este terminou com o homenageado que a ele presidira a levantar-se bruscamente sem quaisquer palavras finais. Fora um frete para ele… e fora outro frete para a docência da Universidade. Porém, a história deste frete recíproco não se terá perdido na memória colectiva da instituição e não terminou ali assim. Em 2008, 54 anos passados, a Universidade rejeitou a concessão do título académico a Francisco Franco. Como alguém disse na altura e a propósito: não para reescrever a história, que essa foi a que foi, mas para reescrever a dignidade da Universidade.

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