05 dezembro 2022

UMA SESSÃO PARLAMENTAR NA ASSEMBLEIA NACIONAL

(Republicação de Agosto de 2016) Assembleia Nacional, Lisboa, 5 de Dezembro de 1972. A sessão desse dia foi animada por um discurso do deputado Manuel José Homem de Mello (na fotografia da esquerda) visando indirectamente o deputado João Pedro Miller Guerra (à direita), elemento constituinte daquela que era conhecida informalmente por ala liberal. Sem nunca nomear os visados, o orador criticava os autores de certas odes à liberalização política, panaceia universal susceptível de sarar os males de que padecemos. A opinião de quem discursava divergia: crises sempre as houvera em Portugal, para as vencer o que sempre fora preciso fora força de ânimo e união. Ora na situação actual o país não só não estava preparado como viria a sofrer os mais graves reveses se, nesta fase crucial, enveredasse por experiências políticas portadoras do germe da desagregação e instabilidade. E prosseguia o deputado Homem de Mello, à época também director do vespertino A Capital: A democracia não se decreta, merece-se. Nem se impõe, conquista-se. Merece-se através do civismo das populações, da preparação consciente das elites, da unânime aceitação das regras do jogo político. Mas o mais interessante e significativo do discurso do deputado Homem de Melo não foi propriamente o detalhe das palavras do orador, foi o facto de elas terem servido de estopim para três interrupções do seu colega Miller Guerra, cujos diálogos com Homem de Mello, muito vivos e significativos pelas opções filosóficas e ideológicas subjacentes, a seguir se transcrevem:

Miller Guerra: - V.Exª. referiu-se àqueles que laboram num grave erro ao pretenderem a liberalização. Não é verdade?
Homem de Mello: - Eu não disse exactamente isso.
Miller Guerra: - Nesse caso, peço desculpa.
Homem de Mello: - Eu disse exactamente que temos, nestes últimos dias, voltado a ler e ouvir certas «odes» à liberalização política, panaceia universal susceptível de sarar os males de que padecemos e que laboram em grave erro quantos assim pensam.
Miller Guerra: - Muito obrigado. É exactamente a mesma coisa que apontei tendo a mais a referência às odes.
(Risos)
Homem de Mello: - Mas as «odes» por vezes são importantes.
Miller Guerra: - Não contesto. É uma opinião que respeito e a de muita gente, também respeitável. Mas protesto, permita-me a expressão, contra o que V.Exª. disse ao afirmar que o país não está preparado.
Há 50 anos que oiço dizer que o país não está preparado. Admiro-me imenso que 50 anos de pedagogia política constante não nos tenha preparado.
Pergunto a V.Exª. por que se espera para fazer essa preparação? Ou melhor, para preparar o país, visto que ele não está preparado nem parece por este caminho que chegue a estar.
Homem de Mello: - Sr. deputado Miller Guerra, pois eu admiro-me também com V.Exª. por o país não estar preparado, mas o problema consiste em se saber se está ou não preparado. E eu respondo que não está.
Miller Guerra: - Eu, sob pena de insistir num ponto já muito batido, repito: o país não está preparado porque não o prepararam. É o país que é incapaz de se preparar ou são os pedagogos que são incapazes de o ensinar?
Homem de Mello: - Eu limito-me a frisar que V.Exª. acaba de concordar que o país não está preparado.
Henrique Tenreiro: - V.Exª. que é pedagogo podia ensinar-nos alguma coisa...
(Risos)
Miller Guerra: - Tem razão o sr. almirante Henrique Tenreiro. Sou pedagogo por profissão mas não sou pedagogo político. Se fosse pedagogo político há muitos anos que o país estava preparado para a liberalização. Tínhamos hoje, em vez da situação presente, uma democracia.
Homem de Mello: - Sr. deputado Miller Guerra, mas não há pedagogia com efeito retroactivo?
(Risos)
Miller Guerra: - Não insisto. Perece que já está bem claro o meu pensamento e o de V.Exª.
Cunha Araújo: - 50 anos são muito na vida de V. Exª., mas não são nada na vida de uma nação.
Homem de Mello: - Dizia eu que a democracia...
Mais adiante o deputado Homem de Mello falou da defesa do interesse comum para fundamentar os seus pontos de vista. E novamente Miller Guerra:
Miller Guerra: - V. Exª. dá-me licença?
Homem de Mello: - Com certeza.
Miller Guerra: - É justamente a bem do interesse comum que eu desejo a liberalização.
Homem de Mello: - É justamente a bem do interesse comum que entendo que devemos aguardar por uma maior liberalização.
Vozes: - Muito bem!
O orador prosseguiu, empregando na sua argumentação a expressão “sacrificar o acessório”.
E por uma terceira vez:
Miller Guerra: - V.Exª. dá-me licença mais uma vez? Prometo que seja a última, pelo menos por hoje.
Homem de Mello: - Faça favor.
Miller Guerra: - Diz V.Exª. que é sacrificar o acessório. Eu acho que a liberdade é essencial e não acessória.
Homem de Mello: - Eu acho que o que é essencial é o interesse colectivo, muito mais importante do que a liberdade.
Vozes: - Muito bem!
Miller Guerra: - Isso é vago.
Homem de Mello: - É tão vago como a liberdade.
Miller Guerra: - Está enganado.
Homem de Mello: - Não estou, não.
Miller Guerra: - Depende de quem define a liberdade.
(Baseado na transcrição dos trabalhos parlamentares que foi publicada na edição do dia seguinte do Diário de Lisboa).
Menos de ano e meio depois dava-se o 25 de Abril de 1974. A sessão da Assembleia desse dia foi muito curta, teve apenas quinze minutos... Mas muito antes disso, uns escassos dois meses após a troca destas palavras, em Fevereiro de 1973, Miller Guerra renunciaria ao seu cargo de deputado. Terá sido uma cena interessantíssima, mas dessa pouco se soube, porque quase nada pôde ser publicado. Mas o percurso político que os dois antigos deputados vieram depois a ter sob o novo regime democrático pouco reflectiu as posições filosóficas sobre a liberdade que haviam sido adoptadas por cada um deles durante o interessantíssimo debate acima transcrito. Posições amadurecidas, qualquer deles era um homem feito, Miller Guerra tinha 60 anos, Homem de Mello 42.

João Pedro Miller Guerra (1912-1993) veio a ser deputado à Assembleia Constituinte (1975-76), tendo sido eleito pelas listas do Partido Socialista. O seu melhor momento nessa câmara terá sido a ocasião em que pretendeu ler o mesmo discurso de renúncia que pronunciara na Assembleia Nacional, e que ele considerava mais actual que nunca, porque as condicionantes à liberdade, outrora representadas pela Acção Nacional Popular (ANP), eram então protagonizadas pelo lado oposto do espectro político, por aqueles que se inspiravam na doutrina do Partido Comunista Português (PCP), estava-se em pleno PREC. Mordendo o isco, e numa situação repleta de ironia, Octávio Pato calçou os sapatos que outrora haviam pertencido a Henrique Tenreiro na contestação a Miller Guerra. Depois disso, a caminho dos 65 anos, Miller Guerra desapareceu discretamente da ribalta política.

Manuel José Homem de Mello (1930-2019) teve que fazer o seu caminho das pedras. Como deputado em exercício a 25 de Abril de 1974 teve os seus direito políticos cassados por alguns anos. Voltou à superfície depois disso, em meados da década de 80 e curiosamente sob a égide desse mesmo Partido Socialista que acolhera Miller Guerra. Mas, mais do que o Partido, Homem de Mello tornou-se conhecido por gravitar à volta de Mário Soares. Tornou-se um autor prolífero. Não consta é que continuasse a considerar que o interesse colectivo fosse mais importante do que a liberdade...

É uma falsa questão apontar a pessoas como Homem de Mello o facto de eles terem mudado de opinião. Aí, é pacífico constatar que todos mudamos de opinião, que só os tolos é que não mudam de opinião. Mas a verdadeira questão é outra: é o quando, as circunstâncias e as motivações que levam as pessoas em geral e essas em particular a mudar de opinião, que nestes casos oportunistas nunca parece resultar de um profundo e genuíno trabalho de reflexão interior... Ou na definição imorredoura do meu pai, destinada a qualificar este género de pessoas interesseiras (que importa não deixar esquecer como o foram): eles foram da outra, são desta e hão de ser da próxima...

Aditamento ao poste original: Manuel Homem de Mello morreu em Junho de 2019, aos 88 anos. Como é infelizmente costume, a nota biográfica que acompanha a notícia é uma eulogia que passa ao lado do percurso político de quem passou de um firme opositor à concessão das Liberdades políticas (como acima se percebe) para seu acérrimo defensor, adaptando-se ao regime em vigor. A hipocrisia das notas necrológicas é um daqueles costumes lusos que são, para mim, verdadeiramente vergonhosos. Neste caso, há que deixar expresso que um oportunista foi um oportunista, e se quem faleceu não teve qualquer embaraço em sê-lo em vida, não nos devíamos nós embaraçar, nem mesmo no momento da sua morte, a ponto de se fingir adoçar aquilo que ele foi... 

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