Mesmo tendo-se iniciado por um processo impecavelmente democrático, a História posterior do Zimbabwe independente sob o poder político da ZANU e de Robert Mugabe mostrou como parece ser impossível manter-se o estatuto económico privilegiado de uma minoria branca sem a protecção do poder político: de um máximo de 275.000 nas décadas de 1960 e 70, a minoria de zimbabweanos de ascendência europeia reduziu-se actualmente a umas 30.000 pessoas. São números semelhantes, senão mesmo inferiores, às dos moçambicanos e angolanos da mesma ascendência, apesar dos processos de independência destes últimos países terem sido muito mais atribulados, tendo provocando inclusive um êxodo brusco de muitas centenas de milhares de pessoas (abaixo). Durante anos, esses que vieram quiseram acreditar na ficção que só o fizeram por causa do fracasso na forma como decorrera a descolonização portuguesa. Mas manda a honestidade intelectual reconhecer, consideradas as analogias entre o exemplo posterior do Zimbabwe com o de Angola e Moçambique, o quanto essa crença estava errada. As circunstâncias e o ritmo poderiam ter sido diferentes mas o desfecho final não. (A fotografia inicial foi tirada no Zimbabwe em 2000, 20 anos depois da independência)
31 março 2014
«IN THE CAGE»
Correndo o risco de ser desmentido pelo futuro, num fracasso (como profeta) esplendoroso, à Marcelo Rebelo de Sousa (felizmente mais discreto), apesar dos contínuos tratamentos de imagem, o governo parece estar a exalar dele uma antecipação de próximo colapso por astenia (com a consequente implosão), uma daquelas especificidades da história da vida política portuguesa (um governo que não é derrubado, colapsa sozinho), fenómeno frequentíssimo durante o período da monarquia constitucional e ainda recorrente na história portuguesa recente (Balsemão 1982, Guterres 2001). A banda sonora é In the Cage dos Genesis (1974) que me apareceu a tocar dentro da cabeça desde que me levantei.
30 março 2014
AS PRIMEIRAS E ÚLTIMAS ELEIÇÕES LIVRES DO ZIMBABWE
Costuma dizer-se e escrever-se que Portugal foi a última potência europeia a abandonar as suas colónias em África. Não é verdade, nem factual, nem formalmente. Foi só em Junho de 1977, por exemplo, que a França concedeu a independência a Djibuti, 19 meses depois da de Angola e, por quatro meses, entre Dezembro de 1979 e Abril de 1980, a Rodésia voltou a ser uma colónia britânica, para reganhar uma nova independência sob um governo de maioria negra. De acordo com os Acordos de Lancaster House, durante esses quatro meses a Rodésia voltou a ser uma colónia britânica com o Reino Unido a responsabilizar-se pela administração do processo de transição do país que viria a ser conhecido por Zimbabwe.
Um dos elementos basilares dessa transição era a organização das eleições de onde sairia a nova assembleia legislativa do país. Como o futuro executivo precisaria de uma maioria nessa câmara de 100 deputados, os resultados e a transparência dos mesmos seriam cruciais para o sucesso do processo de transição. Um dos resultados das negociações em Lancaster House fora que a minoria branca, que detivera o poder até então, havia conseguido cativar para si 20 lugares numa sobrerrepresentação do seu peso demográfico (equivalente a 6 a 7%). Estes 20 lugares eram círculos uninominais seguindo a tradição eleitoral britânica. Os outros 80 lugares seriam ocupados pelos eleitores da maioria negra.
Considerada a celeridade imposta ao processo, esses outros 80 deputados seriam eleitos proporcionalmente em sistema de listas apresentadas a oito círculos eleitorais correspondentes à divisão administrativa do país (um processo muito semelhante ao empregue em Portugal). O problema que incomodava a administração colonial britânica dirigida por Lord Soames era, não apenas o acantonamento e controle dos guerrilheiros da ZANU e da ZAPU que haviam até aí lutado contra o governo (acima), mas uma forma desburocratizada de assegurar a justiça eleitoral, em que todos votavam, mas que o faziam apenas uma vez. E foi assim que apareceu a tinta indelével a marcar os eleitores que já haviam votado¹!
Num último vestígio nostálgico do Império, a administração de Lord Soames recorreu à mobilização de 570 polícias britânicos que, com os seus reconhecíveis uniformes tradicionais (abaixo), acompanharam as eleições durante os três últimos dias de Fevereiro de 1980 em que elas tiveram lugar. Entre o eleitorado branco, as eleições não tiveram história: só 6 dos seus 20 lugares foram disputados, e mesmo assim, todos os 20 foram ganhos pela Frente Rodesiana que apoiara o governo anterior. Como é óbvio, a verdadeira disputa travava-se pelos 80 deputados e pelos votos dos 2,7 milhões de eleitores da maioria negra. E aí havia três grandes partidos que as ambicionavam vencer: a ZANU, a ZAPU e a UANC.
A ZANU (União Nacional Africana do Zimbabwe) e a ZAPU (UniãoPopular Africana do Zimbabwe) eram as duas organizações que haviam combatido militarmente o governo da minoria branca. Estavam separadas pela etnia predominante nas suas bases (shona vs. ndebele), pelos apoios materiais e ideológicos externos que recebiam (chinês vs. soviético), pelos países de onde as suas guerrilhas operavam (Moçambique vs. Zâmbia) e, claro, pela personalidade dos seus dirigentes (abaixo: Robert Mugabe vs. Joshua Nkomo). Contudo, ambas capitalizavam o prestígio de terem sido organizações combatentes. Depois, havia a organização moderada, a UANC (Congresso Nacional Africano Unido).
A UANC, dirigida pelo bispo (metodista) Abel Muzorewa, que sempre se opusera à luta armada assim como nunca aceitara um regime de supremacia branca, via-se agora acarinhada com meios inauditos de propaganda eleitoral financiados por ela, incluindo mesmo uma frota de helicópteros. A esperança era fazer com que a UANC conseguisse alcançar um mínimo de 30 lugares que, adicionados aos 20 da minoria branca, formassem uma maioria parlamentar e um governo moderado para o futuro Zimbabwe independente. Os rodesianos (e os sul-africanos) acreditavam que isso seria possível mas estavam redondamente enganados. No encerramento do escrutínio, a UANC elegera só 3 deputados, menos do que os helicópteros da frota…
A ZANU de Mugabe, com 63% dos votos e 57 lugares, obtivera sozinha a maioria absoluta no parlamento. A ZAPU de Nkomo ficara-se pelos 24% e pelos 20 deputados. Os 3 deputados da UANC correspondiam a 8% dos votos. Foi a primeira vez que em África um partido marxista-leninista chegara ao poder pela via eleitoral, em eleições livres monitoradas e avalizadas pelo Reino Unido. Nas eleições seguintes disputadas em 1985 já havia os 80 círculos uninominais e os candidatos governamentais foram reeleitos com mais de 90% dos votos. Já se realizaram meia dúzia de eleições depois disso, mas 34 anos depois (virtudes científicas do marxismo-leninismo), Robert Mugabe e a ZANU ainda continuam a ocupar o poder no Zimbabwe…
¹ Um método hoje recorrentemente empregue em todas as eleições mundo fora onde possa haver dificuldades com a existência de documentos de identificação.
VIDA DE CÃO
Ainda há pouco, dirigia-me para o carro estacionado, quando me deparo com uma senhora passeando dois cães, estranhamente aparcada do (meu) lado do condutor. Um compasso de espera, para que a senhora se apercebesse que me estava a bloquear, enquanto eu espreitava a ver se algum dos bichos não estaria a regar sanitariamente pneu e jante, até a senhora se aperceber da minha presença e eu aperceber-me que a obra era outra, pela posição inconfundível de um dos bichos. Aflitivos pedidos de desculpa até terminar a arqueação e a senhora civicamente se dobrar para apanhar apressada e stressadamente o produto daquela nossa espera. O cão impávido e indiferente ao incómodo que causara, qual nababo indiano. O outro cão implacavelmente solidário, qual sindicalista da CGTP. A língua portuguesa possui a expressão vida de cão mas a modernidade tê-la-á transformado numa felicidade quando comparada com a vida de dono de cão.
29 março 2014
BELEZAS DE CINEMA
Willy Rizzo (1928-2013) foi um fotógrafo demasiado consagrado para que duvidemos das suas capacidades em conseguir captar apropriadamente a beleza destas duas vedetas do cinema europeu clássico dos anos 60, a francesa Anouk Aimée (à esq., 1932-) ou a italiana Monica Vitti (dir.,1931-). Se aquilo que vemos não confere com a imagem que formámos das actrizes, há que apreciar a questão por um outro prisma, o da mestria dos realizadores que as transformaram nas beldades da tela que nos ficaram na memória, em filmes como Um Homem e uma Mulher de Claude Lelouch (1937-)...
...ou O Eclipse de Michellangelo Antonioni (1912-2007).
28 março 2014
PARECENÇAS E ANALOGIAS
As actrizes Frances de la Tour (esq.) e Allyce Beasley (dir.) são aquilo que se considera pessoas parecidíssimas, daquelas parecenças que creio nem ser preciso explicar. Na realidade, não há qualquer relação entre elas, a primeira é britânica e a segunda norte-americana, há dez anos a separá-las e elas nunca contracenaram sequer. Mas a semelhança fisionómica é evidente.
A alusão ao exemplo do Kosovo quando das referências ao recente caso da Crimeia assemelhar-se-á à foto acima: tratara-se inicialmente de uma promoção norte-americana a uma secessão apesar da oposição russa, trata-se agora de uma promoção russa a uma secessão apesar da oposição norte-americana. As semelhanças quedam-se por aqui, mas são consistentes. Os Estados Unidos é que se deram por surpreendidos ao constatarem que não possuíam o monopólio do poder de redesenhar fronteiras internacionais ao arrepio de opiniões terceiras. Leio por aqui pela internet quem queira contestar a habilidade russa da desculpabilização do episódio da secessão da Crimeia invocando o Kosovo, desmentindo semelhanças, empolando pormenores que os diferenciam. Ora isto das analogias é instintivo e será como as parecenças ou mesmo como o daltonismo: é congénito. Nasce com as pessoas: ou se vêem ou não adianta de nada explicar.
É que para a discussão sobre a fotografia inicial não tem qualquer relevância argumentar que Frances de la Tour tem dois filhos enquanto Allyce Beasley tem só um.
Etiquetas:
Estratégia,
Opiniões,
Televisão
OS «MERCADOS» ESTÃO A REAGIR MUITO BEM MAS O GOVERNO DEVE ESTAR COM DIFICULDADES EM EXPLICAR-NOS AO QUE É QUE ELES ESTÃO A REAGIR
Manda a evidência constatar que o comportamento das yields dos títulos da dívida portuguesa têm registado um abaixamento significativo no último mês, como se observa no mapa acima (exemplo para o prazo a dez anos), estando prestes a franquear a fronteira dos quatro pontos percentuais. São excelentes notícias. O que não se compreende é porque o governo não esteja a fazer uso delas. A explicação mais simples é que se poderá tratar de inépcia: quem está encarregue da propaganda governamental tem os factos (a diminuição das yields) mas no governo ninguém lhes forneceu uma história de algo positivo que o governo tenha feito ultimamente para a justificar. A segunda explicação possível, é que o governo se tenha disposto finalmente a abandonar a Doutrina Moedas: postulado económico que assumia a ilusão que os agentes financeiros internacionais iriam tomar boa nota que era o PSD e não o outro a governar Portugal e que isso iria afectar positivamente as suas reacções à nossa capacidade creditícia. Afinal não afecta nada e, ao fim de três anos, lá se terão decidido (possivelmente) a aceitar que não adianta nada contar essa patranha aos portugueses. A terceira explicação admissível (e muito mais preocupante...) é que, ao contrário do que nos querem fazer crer quando se procura abafar o debate entre portugueses para que os mercados lá fora não saibam, desta vez seja lá fora nos mercados que já se saiba aquilo que ainda não pode ser comunicado aos portugueses. Isso que os mercados já saberão só nos irá ser contado depois das eleições...
27 março 2014
PORTUGAL: DA INICIATIVA DA ÉTICA ATÉ À «ÉTICA» DA INICIATIVA
Não consegui identificar a obra de Júlio Dinis em que se trava um instrutivo diálogo entre um jovem ilustrado pelos estudos e um retrógrado camponês em que o primeiro desafia o segundo a explicar-lhe o que é o vento, ao que este candidamente responde que era como se fosse um sopro. Foi pretexto para que o camponês recebesse uma explicação consolidada pelos últimos conhecimentos de meteorologia (era a diferença de pressões que provocava a circulação atmosférica), explicação da qual suspeita-se que o destinatário não deverá ter tirado grande proveito. Mas claro, aquele era o Portugal atrasado, rural e interior do Século XIX que Júlio Dinis tanto gostava de descrever nas suas obras. Entretanto passou-se quase século e meio desde a publicação das obras daquele escritor tão prematuramente desaparecido.
Apesar da universalização do ensino de então para cá, percebe-se que o senhor da fotografia acima não terá tido uma conversa prévia com qualquer jovem ilustrado que lhe explicasse que as ondas, como o vento, são energia que se propaga e não água que se desloca, o que esvazia de sentido este gesto de as tentar engarrafar para as vender. Mas no Portugal dinâmico, comercial e litoral do Século XXI, mais do que o rigor científico, parece que o que importa mesmo é mostrar iniciativa e, nesse sentido, a ignorância do senhor acima está adequada aos tempos de uma forma que a do camponês de Júlio Dinis não estava. Não é este Portugal dirigido por um primeiro-ministro consultor de uma empresa que se propunha ministrar cursos de formação a centenas de empregados de aeródromos onde não aterravam aviões?
A PROPÓSITO DO SORTEIO DOS AUDIS RELEMBRE-SE QUE O CONCURSO AINDA NÃO COMEÇOU MAS CARLOS ZORRINHO JÁ FOI (AUSTERAMENTE) CONTEMPLADO
…ou como se ironiza no blogue Imprensa Falsa: se fosse para ganhar um Audi, os portugueses tinham-se tornado todos políticos, uma actividade que fornece não só o Audi, mas também o motorista.
26 março 2014
ANATOMIA DE OUTRO INSTANTE
Todos os portugueses com mais de cinquenta anos teriam uma certa obrigação de saber o que se passou com a tentativa de golpe de estado que teve lugar em Espanha em 23 de Fevereiro de 1981. Na altura foi cabeçalho de todos os jornais e motivo para interromper as emissões regulares da rádio e da televisão. Ainda haverá muitos milhares que se lembrarão do episódio, incluindo os pormenores da rocambolesca erupção dos guardas do tenente-coronel António Tejero Molina pelo congresso de deputados em plena sessão, a imagem mais simbólica do golpe (acima), embora seja de esperar que a maioria já não tenha hoje nem ideia sobre o assunto. Contudo, uma das excepções a essa maioria silenciosa terá de ser o professor Marcelo, tanto mais que o episódio e os seus detalhes foram até objecto de um refrescamento há três anos quando foi editado um discutido livro sobre o assunto intitulado Anatomia de um Instante – e é sabido como o professor lê (e recomenda...) dúzias de livros por semana.
Quando no Domingo passado, no seu habitual programa daTVI, o professor Marcelo se referiu ao episódio da invasão do congresso de deputados na evocação que fazia ao recém-falecido Adolfo Suárez, esquecendo-se do nome do general que confrontou os guardas (Gutiérrez Mellado, ministro da Defesa) ou de nomear Santiago Carrillo como outra pessoa presente que não obedeceu às ordens dos insurrectos para se baixarem, mostrou a vários milhares de pessoas na sua audiência quanto há assuntos cuja profundidade ele domina ainda menos do que os próprios. O que não o impede de os abordar com aquela desfaçatez de vendedor de mezinhas de feira. Está de parabéns a redacção da TVI, por ter deixado a nota correctiva no auricular de Judite Sousa; não está de parabéns esta última, que já tem os mais de cinquenta anos que acarretariam uma certa obrigação – também profissional – de saber alguns detalhes do que se passou durante o golpe que ficou a ser conhecido por 23F.
Etiquetas:
Espanha,
Incompetência,
Livros,
Televisão
NÃO HÁ QUEM SEGURE A BONEMINE!
É uma pena não se dever ser mais específico sobre a história aqui simbolicamente retratada mas garanto-vos que ela é tão divertida quanto as imagens sugerem.
25 março 2014
«O MEDO PELAS CIDADES»
Ainda a propósito do cabeçalho obscenamente exagerado do jornal Libération a que aqui ontem me referi, deixem-me usar este par de fotografias encadeadas para mostrar uma cidade onde deveria haver medo, mas onde ele não se nota. Está-se em Berlim em 1936, o cinema tem em cartaz a comédia A Familia Schimek, protagonizado pelo actor austríaco Hans Moser, filme estreado em finais de Dezembro de 1935. O autor das fotografias chama-se Roman Vishniac, era russo e judeu. A casualidade dos transeuntes (os carrinhos de bebé) e da paisagem urbana (a carroça com as barricas) não seria perturbada não fosse aquela pequena bandeira dependurada do estabelecimento comercial que aparece do lado esquerdo. Sem o desenho familiar da cruz gamada da bandeira nem valeria a pena referir que Adolf Hitler e os nazis haviam alcançado o poder na Alemanha havia três anos. Verdadeiramente preocupante seria o facto de, três anos passados sobre a sua subida ao poder, aquele comerciante ainda sentir necessidade de afirmar assim tão ostensivamente as suas simpatias políticas. Estas viagens ao passado sempre nos servem para moderar os exageros do presente.
Etiquetas:
Alemanha,
Filmes,
Fotografia,
Inanidades,
Outros Tempos
A CHUVA QUE NÃO MOLHA MALTA
Malta é um dos nossos parceiros da União Europeia. Imaginem que a Madeira se tinha tornado independente e com ela teremos uma boa base retocável para descrever Malta. Transferindo-a das franjas do Atlântico para o centro do Mediterrâneo (acima), reduzindo-a nas dimensões (abaixo – a ilha da Madeira tem 740 km², o conjunto das ilhas de Malta 316 km²) e alterando-lhe a morfologia: a Madeira é de formação vulcânica, Malta, com os seus terrenos calcários, de formação sedimentar. Porém Malta, com mais de 400.000 habitantes, tem uma população que é cerca de 50% superior à da Madeira, uma das maiores densidades populacionais da Europa. Climas semelhantes, o turismo é uma actividade fundamental para a economia de ambas. Mas, para terminar, complementarmente a esta comparação e tendo em conta o que são tradicionalmente as prestações desportivas da selecção maltesa de futebol, imagine-se a tragédia futebolística que não seria a independência da Madeira: é que não afectaria apenas a selecção portuguesa lesada com o desaparecimento do seu mago Cristiano Ronaldo; afectaria também o rendimento deste último se acompanhado pelos dez coxos que lhe caberia como companheiros de selecção.
Mas embora situados ambos na zona de fronteira entre Europa e África, e reconhecendo-se pertencentes à primeira, a história dos dois arquipélagos ilhas é totalmente distinta, a começar logo pelo povoamento, pré-histórico no caso de Malta, iniciado apenas a partir do Século XV no caso madeirense. A Madeira foi sempre portuguesa enquanto Malta, mesmo contando apenas a sua história depois do Século XV, foi aragonesa, depois passou a ser administrada pela Ordem dos Hospitalários (1530), de seguida francesa (1798), depois britânica (1800), até se tornar independente em 1964. Apesar de Malta, por causa da sua localização geográfica, se ter preocupado em adoptar uma política de neutralidade durante o período da Guerra-Fria, quando esta acabou procedeu a uma inflexão, fazendo o seu pedido de admissão à União Europeia (1990). A admissão veio a ter lugar em 2004 e em 2008 integrou-se na zona Euro. Malta está localizada na periferia da União, não tem nesta aliados poderosos, não foi um país importante no xadrez do processo de alargamento que teve lugar a partir de 1989 mas, por outro lado, pela sua pequena dimensão, também nunca foi um país propenso a despertar antipatias.
Há cerca de um ano, no seguimento da crise financeira de Chipre, surgiram rumores que algo de muito semelhante ao que se estava a passar com a banca cipriota poderia vir a acontecer com Malta – rumores que foram rapidamente desmentidos. Não impediu que alguns meses depois as agências de notação tivessem discretamente revisto em baixa a classificação atribuída àquele país. É que sempre se pode explicar o quanto se considera que a banca maltesa (ao contrário da cipriota, da irlandesa, da islandesa, etc.) está sólida mas os factos mostram, até aos leigos, que existe um potencial problema congénito: os balanços agregados dos bancos malteses representam cerca de 800% do PIB da Malta. Assim, a solução adoptada tem sido passar mediaticamente desapercebido, o que em linguagem coloquial costumamos designar por passar entre os pingos da chuva. Malta tem a (falta de) dimensão para conseguir isso, assim como – reconheça-se – Alberto João Jardim também o está a conseguir fazer na Madeira. Depois do conceito económico do too big to fail (demasiado grande para falir), descobre-se o conceito oposto do too small to bother (demasiado pequeno para incomodar). Azar o de Portugal, ser um país de dimensão intermédia…
24 março 2014
MAIS DO QUE UMA CONTRADIÇÃO, UMA VERGONHA
A vergonha, que me desculpem os que aqui chegaram atraídos pela capa do jornal para se indignarem pelos motivos errados, é a própria capa do Libération e não o resultado das eleições municipais francesas de ontem. Se feita livremente – e não há razão para pensar que assim não tenha sido – os resultados da votação expressam apenas a vontade popular dos franceses, por muito que ela nos desagrade. Houve (e ainda há) outros projectos igualmente não democráticos e totalitários como os da Frente Nacional (que afinal obteve apenas 7% dos votos) que suscitaram muito menos indignações: precisamente numa primeira volta destas mesmas eleições municipais, mas em 1977, a lista encabeçada pelo comunista Henri Fizbin surgia no primeiro lugar em Paris com 32% dos votos. Perdeu a segunda volta para Jacques Chirac, mas os comunistas alcançaram nessas eleições as presidências em 72 das 221 cidade francesas (⅓) com mais de 30.000 habitantes – sem que se espalhasse o medo pelas cidades como agora se pode ler no cabeçalho do Libération... Pelos vistos, na interpretação esquerda chic, quanto o povo votava em massa em partidos totalitários não democráticos da sua área não havia problema; agora que o faz nos da direita amedronta-se a si mesmo. Tenham paciência!: quem se quiser indignar com populismos tem que se indignar com todas as suas manifestações e quem se dispuser a acatar a expressão da vontade popular tem que a acatar apesar dela não agradar.
Etiquetas:
Dialéctica,
França,
Informação,
Outros Tempos
«DUTCH» SCHULTZ
O gangster nova-iorquino Dutch Schultz chamava-se na realidade Arthur Flegenheimer e era de ascendência alemã (não holandesa como a alcunha sugere) e religião judaica, embora tenha morrido católico romano. Com ele, a engenhosidade de o apanhar por fraude fiscal, como aconteceu na (demasiado) propagandeada história do que o FBI fez com Al Capone, não funcionou: Schultz contratou o reputado advogado James M. Noonan, que fora um antigo promotor estadual em Albany, a capital do estado de Nova Iorque (abaixo, ao lado do seu cliente),…
…que o conseguiu fazer ser julgado à fraude fiscal numa remotíssima terreola (Malone) do estado, onde foi absolvido (fotografia inicial) a 2 de Agosto de 1935, quatro dias antes de completar 34 anos. Mas vivia-se depressa naqueles tempos e naqueles meios. Passados dois meses e meio, a carreira de Dutch Schultz era encerrada de outra forma num restaurante de Nova Jérsia. Oficialmente foram rivais e ninguém teve pena. Eram tempos difíceis, hoje esquecidos, esses onde, na falha da formal, existia uma certa tolerância por certas formas heterodoxas de justiça.
23 março 2014
CUBITUS E A HISTÓRIA UNIVERSAL
Apesar de já a conhecer há mais de 40 anos, sempre apreciei muito este quadro da História Universal imaginado por Dupa, o criador de Cubitus, o cão branco redondo peludo que aparece nele reencarnado em dezenas de personalidades, algumas reais outras inventadas, encaminhando-se na direcção do observador, dispostas numa cronologia de cima para baixo embora não muito rigorosa. No canto superior direito, por exemplo, Obélix não está muito distante do infante D. Henrique. Ao centro Napoleão precede Luís XIV e parece perseguir Guilherme II. O local mais destacado do conjunto está ocupado pelos irmãos Marx. O pioneiro da aviação está completamente fora da cronologia, que termina com um hippie e um cosmonauta. Parece haver algo de despreocupadamente casual na escolha das figuras da galeria, assim como eu procuro que sejam os temas dos postes que vou publicando neste blogue.
SOBRE A INCONTINÊNCIA URINÁRIA E A AUTORIDADE POLÍTICA
Esta foi, para mim, uma estreia. Não tenho conhecimento de outro episódio em que a incontinência urinária se houvesse tornado num tópico principal de uma disputa eleitoral. O episódio conta-se sucintamente: durante um comício em Barranquilla na Colômbia, o presidente e candidato à reeleição Juan Manuel Santos foi filmado discursando enquanto as suas calças iam adquirindo progressivamente uma tonalidade inequívoca na zona púbica. Por mim, o mais incomodativo naquele vídeo é mesmo o primarismo dos lugares-comuns que o visado profere na ocasião. Mas o vídeo foi depois colocado na internet, ridicularizando-o. Como se tem de fazer nestas ocasiões, o presidente reagiu vitimizando-se, tentando despertar a empatia do eleitorado, explicando que se tratara das sequelas de uma operação à próstata a que ele se submetera há ano e meio. Entretanto, num outro continente – quiçá num outro planeta – Silva, um homólogo do presidente Santos, fazia um apelo para que se evitassem querelas artificiais e controvérsias estéreis numa próxima campanha eleitoral, esquecendo-se de ter presente que as regras do marquês de Queensberry só vingaram porque o júri se reserva para si a capacidade de desqualificar quem não as cumprir.
A SUPERFICIALIDADE DE UM«A BALANÇA»
Ainda a propósito da crise da Crimeia e do elogio aqui deixado a Pedro Mexia por se mostrar disposto a ler substanciadamente sobre os antecedentes do assunto, ainda que em inglês, registe-se o contraste com Vasco Pulido Valente, que reputadamente já leu sempre tudo o que há para ler sobre qualquer assunto, especialmente em inglês, o que não o impede de escrever catedraticamente uma data de disparates, infelizmente em português, para aplauso de uma classe muito específica de admiradores seus que se mostra de uma ignorância muito intelectualizada.
Na sua crónica de ontem do Público, intitulada A Balança, Vasco Pulido Valente produziu uma análise histórico-estratégico-oracular sobre a importância da Crimeia para a Rússia, a começar pelo seu porto principal, o de Sebastopol no mar Negro, o «porto de águas quentes», «aberto o ano inteiro», «a via principal da influência russa no Ocidente. Militar e comercialmente, era insubstituível.» A crónica conclui-se com a analogia, previsível em Vasco Pulido Valente, com os eventos do Século XIX. É a opinião do cronista. Em contraste, há a realidade.
Sebastopol sempre foi sobretudo uma base naval. Foi essa a razão que levou a aliança anglo-francesa a escolhê-la como objectivo durante a Guerra da Crimeia (1853-56), como se explica de resto em páginas de Crimea de Orlando Figes que Vasco Pulido Valente deve ter saltado (p. 194 e ss.). A verdade é que o «grande porto de águas quentes» no mar Negro, tanto para o império russo como depois para o soviético nos Séculos XIX e XX foi o de Odessa. Como referi recentemente, no primeiro censo russo (1897), Odessa já era a quarta maior cidade do Império¹.
Significativamente quanto à importância dos dois portos, quando se deu a conhecida revolta no couraçado Potemkin em 1905, apesar do navio estar baseado em Sebastopol foi para Odessa que ele se dirigiu para fomentar a revolução. Ao longo do Século XX, excepto nos anos da guerra² (1941-45) e mesmo depois da queda da URSS, Odessa sempre permaneceu o maior porto do mar Negro embora não «um emblema do nacionalismo russo e da sua “porta aberta” para a Europa e para o Atlântico» – atributos poéticos atribuídos a Sebastopol pelo Vasco.
Actualmente, Odessa tem cerca de um milhão de habitantes e o seu porto movimenta mais de 30 milhões de toneladas de carga por ano (sensivelmente o dobro do de Leixões). Sabendo que Odessa é o maior porto ucraniano, lamento não ter conseguido encontrar dados para o movimento do porto de Sebastopol, embora considere significativo que a cidade tenha apenas ⅓ da população de Odessa. Mas deve ser aquilo tudo espectacularmente russo do modo que o Vasco Pulido Valente descreveu e como os seus indefectíveis admiradores gostam.
Como é que as suas conclusões podem ser sempre tão elogiadas de tão acertadas, se as premissas são falsas?
Como é que as suas conclusões podem ser sempre tão elogiadas de tão acertadas, se as premissas são falsas?
¹ Depois de São Petersburgo, Moscovo e Varsóvia.
² Ao contrário do que Vasco Pulido Valente sugere, e como já aqui expliquei neste blogue, a neutralidade turca e as regras da Convenção de Montreux de 1936 impediam que a União Soviética pudesse ser abastecida de material militar pelo mar Negro.
Etiquetas:
Crimeia,
Incompetência,
Sociedade
22 março 2014
CRIMEA, de ORLANDO FIGES
Ontem, apreciei o efeito produzido pelo gesto de Pedro Mexia quando, em pleno Governo Sombra na TVI24, exibiu o livro acima: Crimea, de Orlando Figes. Houve uma reacção de aprovação admiradora entre colegas de programa a que me associo: é sempre bom constatar que há comentadores que procuram robustecer os seus conhecimentos sobre temas necessariamente complexos para os quais estão a ser convidados a pronunciarem-se. Há que enaltecer os que o fazem e há que encorajar os que modestamente os admiram. O tema do livro é, evidentemente, a Guerra da Crimeia (1853-56). Comprei-o há quase três anos, em Agosto de 2011 na FNAC. É um livro com muita informação colateral curiosa, como costuma acontecer normalmente com as obras de Orlando Figes. Foi pretexto, por exemplo, para eu ter publicado aqui no Herdeiro de Aécio um poste sobre alguém importante cuja importância desconhecia completamente: o médico russo/ucraniano Nikolai Pirogov, a quem se pode atribuir a paternidade da triagem médica. Creio que o livro não chegou a ser traduzido, nem aqui nem no Brasil. O exemplar exibido por Pedro Mexia assim como o meu, que aqui exibo em frente e verso como ilustração, são a versão em inglês.
20 março 2014
EUROPA A VÁRIOS TONS DE CABELO
Além de uma cada vez mais assumida Europa a duas velocidades quanto a questões de prosperidade económica, o nosso continente é também um local de encontro de três tipos de cor de cabelo. Os mapas do poste assinalam as distribuições das duas minorias, a dos louros (acima) e a dos ruivos (abaixo), embora esta última seja muito inferior: nos locais onde estão assinaladas as suas maiores concentrações a sua percentagem em relação à população total é ainda minoritária, apenas ultrapassa os 10%. Como se vê, a maior concentração dos louros (acima dos 80%) localiza-se na Escandinávia (Finlândia, Suécia e Noruega) enquanto a maior concentração de ruivos acontece nas orlas célticas das Ilhas Britânicas (Irlanda, Escócia, Gales), mas também, complementarmente, no outro extremo da Europa, na Udmúrtia, que é uma das 21 (agora 22) Repúblicas da Rússia, aquelas repúblicas que só damos por elas quando elas dão sinal de si…
«WARNING»
Seja o canal em que a virem, não tentem copiá-la nem argumentar como ela que esta senhora é profissional.
2ª Feira, 10 de Março, RTP 1
Se há cenas que passam com uma argolinha vermelha no canto superior direito do ecrã porque contêm imagens que podem ferir a susceptibilidade dos espectadores, Raquel Varela parece despertar a necessidade cívica de um outro sinalzinho (também vermelho, mas no canto superior esquerdo), por conterem opiniões que podem agoniar a inteligência dos espectadores.
3ª Feira, 18 de Março, SIC Notícias
Há que reconhecer que a elevada frequência dos convites não pode ser responsabilidade da própria convidada, é de quem a lá leva: as duas anfitriãs não se conseguirão aperceber que, independentemente da ideologia, as opiniões da convidada são um disparate?... E o salutar equilíbrio de opiniões originais não agradeceria convites simétricos a pessoas oriundas do outro extremo do espectro, das áreas próximas do PNR, como o seu cabeça de lista às próximas eleições europeias, Humberto Nuno de Oliveira, que tem um currículo académico equivalente ao de Raquel Varela? Porque é que são só pessoas de opiniões exóticas do género Raquel Varela (quando não Tino de Rãs...), que estão sempre a receber estes wild-cards para comparecerem em programas de televisão?
Etiquetas:
Inanidades,
Incompetência,
Televisão
19 março 2014
BERLIM DE ANTES E DEPOIS DA GUERRA
Duas fotografias dos arredores de Berlim apartadas por uns 20 a 25 anos, o mesmo tema (crianças brincando), feitas em locais sensivelmente semelhantes (notem-se as ruas empedradas), mas observa-se uma outra prosperidade na mais recente, colorida, evidente não apenas pelos brinquedos das crianças como sobretudo pelo parque automóvel dos pais. De permeio (atente-se na fotografia mais antiga a umas pequenas bandeiras dependuradas ostentando a cruz gamada), uma derrota numa Guerra Mundial que terá levado os soldados soviéticos (e depois aliados) a calcorrear com as suas botas de vencedores aquelas mesmas ruas. Nada que o tempo não tenha sarado. A fotografia de cima, da década de 1930, é de Roman Vishniac, a de baixo, da década de 1950, de Josef Darchinger.
Etiquetas:
Alemanha,
Fotografia,
História
«DESSENSCHEISSEM-SE¹»
As reacções posteriores – ou melhor, a ausência delas – nos canais pró-governamentais do costume consolidam a impressão que a visita de Pedro Passos Coelho a Berlim terá ficado muito aquém do que dela se esperava. É verdade que a fórmula encontrada pelos alemães, apoiando a decisão dos portugueses seja ela qual for, não é obviamente hostil, mas dificilmente poderemos encontrar nela o conforto que teria justificado a publicidade prévia e o destaque que se montou à volta desta viagem. Ou será que eu estou a ser precipitado, e tudo isto não passou da primeira de uma ronda do primeiro-ministro pelas principais capitais europeias?...
18 março 2014
O ESPIRRO PARA DENTRO DO TROMBONE
Ouvi-o originalmente a Nuno Markl na Rádio Comercial, já tem mais de um milhão de visualizações no You Tube, mas não resisti em transpor o episódio para aqui porque ele já me levou às lágrimas (de tanto rir) várias vezes: o concerto decorre placidamente na igreja quando um dos músicos terá tido um daqueles espirros incontroláveis que acerta em cheio na boca de um metal… o efeito sonoro é inesquecível.
PÊDRÔ MÔTÂ SÔÂRES
Não sei se já se deram conta da veemência constante como o ministro da Solidariedade e Segurança Social arqueia as sobrancelhas enquanto fala, quais assentos circunflexos perpetuamente suspensos por cima dos olhos.
A ÚLTIMA «MARSELHESA»
França, 20 de Agosto de 1944. Dois meses e meio depois do desembarque dos Aliados, os seus exércitos já não conseguem ser contidos pelos alemães e as colunas blindadas anglo-americanas irromperam por toda o hexágono. Às 07H00, em Vichy no Hotel do Parque, um soldado com uma barra de ferro arromba a porta do quarto do Marechal Philippe Pétain, ainda considerado o chefe de um Estado Francês que estava então em vias de se desmoronar. No vestíbulo, os homens da sua guarda estavam armados mas haviam sido proibidos pelo próprio de resistirem naquela eventualidade: uma resistência que apenas teria carácter simbólico. Tão simbólico quanto o protesto entregue ao núncio papal e ao ministro da Suíça, convocados por Philippe Pétain àquela hora matinal para testemunharem o rapto a que estava a ser sujeito. Sai, de bengala e chapéu, muito digno nos seus 88 anos, em direcção a uma das viaturas alemãs da coluna militar que o levará para Leste, para a Alemanha, quando de entre o pequeno grupo de fiéis que acompanha a cena irrompe uma última, quase desafiadora mas inconsequente, Marselhesa.
Além de ter hoje partido para Berlim, Pedro Passos Coelho é conhecido por ter boa voz. Nem de propósito, Pétain deixou então uma mensagem aos franceses¹ que Pedro Passos Coelho poderá, com as evidentes adaptações de circunstância, recalibrar futuramente, justificando-nos a sua conduta nestes últimos anos.
Etiquetas:
Europa,
França,
Política,
Segunda Guerra Mundial
17 março 2014
O «CASTING» DO CORNO
Englobado nessa inesquecível obra da Banda do Casaco que são as Coisas do Arco da Velha (1976), esta faixa, baptizada por Romance de Branca-Flôr é recorrentemente mencionada por ter servido de inspiração para o nome artístico depois adoptado pela intérprete principal, a já falecida Cândida Branca-Flôr. Mas creio que a melhor interpretação da música é a de outro intérprete¹, aquele que intervém no final da canção a fazer a parte do corno do romance. A sua voz é tão convencida de bem colocada que consegue fazer-nos retirar um prazer empático da traição. Por associação de ideias, e porque temos um líder de governo e outro da oposição que também falam sempre com as vozes bem colocadas, apetece-me perguntar, nesta história do espectáculo dos convites, quem vai pôr os cornos a quem?
Adenda: Foi o Tozé que pôs os cornos ao Pedro: Seguro estraga foto de Passos com "divergência insanável"
A MEMÓRIA E A COERÊNCIA
Ontem, para além do exaustivamente coberto referendo na Crimeia, tiveram lugar eleições legislativas na Sérvia. As notícias, discretas, dão conta de uma eleição sem história (o PSD local, intitulado SNS obteve uma expressiva maioria de votos e uma maioria absoluta de lugares no parlamento) e sem controvérsias, como se espera que aconteça nos países genuinamente democráticos. Porém, as eleições não tiveram lugar no Kosovo. Em 1999 os Estados Unidos intervieram ali invocando motivos humanitários, arrastando atrás de si a NATO e, aproveitando-se do facto da grande...
...maioria da população kosovar ser albanesa, geriram o processo de secessão do Kosovo da Sérvia até à sua declaração de independência em 2008. Hoje o Kosovo é reconhecido por 108 dos 193 membros da ONU. Ao longo de toda a década em que decorreu o processo, os russos sempre foram transparentes na ameaça de como invocariam aquele caso como precedente para os casos em que isso lhe viesse a ser conveniente. Foi o que aconteceu ontem na Crimeia. O que fica das reacções indignadas que se ouvem é jornalismo ridículo mesclado de ignorância e facciosismo.
Etiquetas:
Crimeia,
Estratégia,
Informação,
Kosovo,
Rússia,
Sérvia
16 março 2014
EXPRESSÕES OUVIDAS ESTE FIM DE SEMANA QUE MERECEM SER PRESERVADAS PARA OUTROS FINS DE SEMANA
A propósito do engajamento e veemência das reacções assumidas ao longo da semana que findou pelos jornais económicos contra o manifesto pela restruturação da dívida: …vale a pena perguntarmo-nos se estamos perante jornalismo ou não. É a mesma coisa que o jornal d'O Benfica ser tomado por um órgão de comunicação social, ou o Povo Livre ou o Avante!…
Pedro Adão e Silva, Bloco Central (aos 37:30)
De facto, é especialmente nestas ocasiões que vale a pena preservar aquela distância decorosa que vai de A Bola, que todos sabem ser o jornal do Benfica, ao jornal d’O Benfica, que todos sabem ser o jornal do Benfica...
O MOTIM DO 5º DE INFANTARIA LIGEIRA
Quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial, o 5º Regimento de Infantaria Ligeira (Indiana) era uma das unidades mais antigas do Exército da Índia Britânica. Mais do que centenário (fora formado originalmente em 1803, ainda no tempo em que a administração britânica da Índia pertencia à famosa Companhia majestática), o regimento estava nessa época aquartelado em Nowgong, no centro da Índia que hoje pertence ao Estado de Madhya Pradesh. Porque a região onde estava estacionado era predominantemente hindu (92%), o 5º de Infantaria Ligeira era formado predominantemente por muçulmanos. E, quando o Reino Unido veio recolher de todo o Império os recursos que pudesse para o conflito que começara, esticando o seu dispositivo militar na Ásia, o regimento foi transferido em substituição de unidades europeias entretanto mobilizadas para a Europa. Em Outubro de 1915, o 5º de Infantaria Ligeira partiu para Madrasta para depois seguir por mar para guarnecer Singapura. As reconstituições históricas de um e outro lado (o britânico e o nacionalista indiano e paquistanês) combinaram-se posteriormente para dar uma consistência ideológica à insurreição que veio a ter lugar apenas quatro meses depois da chegada do regimento àquela cidade, que já contava com 384.000 habitantes, e que se situa na encruzilhada de quase todas as rotas comerciais que ligam os Oceanos Índico e Pacífico. Winston Churchill, que gostava das grandes expressões, veio a baptizar Singapura na Guerra Mundial seguinte de Gibraltar do Oriente.
Mas, regressando à guerra anterior, as explicações oficiais para a eclosão do motim estariam associadas a uma relutância dos cipaios - fomentada por líderes islâmicos, de acordo com os britânicos - em envolverem-se num conflito em que poderiam vir a defrontar os seus correligionários muçulmanos do Exército Otomano. A explicação será, se vagamente verdadeira, também no mínimo rebuscada. Associações nacionalistas indianas radicais da época a quem se pretendeu depois atribuir responsabilidades pela insurreição, como o partido Ghadar (ghadar significa revolta), não passavam de organizações de alguns intelectuais da diáspora indiana, a que normalmente faltava entrosamento com as etnias indianas que tradicionalmente abraçavam a carreira militar. Explicações mais simples e mais prosaicas para o motim, que os britânicos remeteram discretamente para os últimos parágrafos dos relatórios que se redigiram depois, apontavam para a baixa categoria geral dos oficiais britânicos que haviam permanecido com a unidade depois dos recrutamentos de 1914 e que, por isso, não se aperceberam daquilo que se aprontava. Quando o motim se desencadeou, o 5º de Infantaria Ligeira havia sido seleccionado para se mudar (de novo…) para Hong-Kong, mas corriam rumores – como costumam correr sempre nestas circunstâncias – que o regimento iria ser transferido para uma frente de combate – no Médio Oriente ou mesmo na Europa. A cerimónia de despedida já tivera lugar, o Comandante-Chefe até presidira a ela, fizera mesmo uma alocução aos homens cumprimentando-os pelo seu desempenho nos últimos quatro meses mas, obtusidade do comando ao ambiente que fermentava entre as fileiras, esqueceu-se de mencionar qual seria o destino da unidade, para erradicar os equívocos.
Quando as primeiras viaturas se apresentaram no aquartelamento para embarcar os primeiros cipaios no navio que os transportaria para Hong-Kong, 4 das 8 companhias que compunham o regimento (composto no total por cerca de 900 homens) amotinaram-se, apossando-se das armas. Estava-se a 15 de Fevereiro de 1915, o que coincidia com o Ano Novo chinês, por isso feriado para a maioria da população de Singapura¹. Significativamente, metade das companhias, as que eram compostas maioritariamente por etnias que hoje seriam classificadas de paquistanesas, não se juntaram aos insurrectos. Estes, para continuar a adoptar essa classificação convencional, seriam predominantemente muçulmanos de origem indiana mas onde se podiam encontrar também alguns siques. Não se sublevando, os paquistaneses também não se opuseram ao motim, não se podendo contar com eles para o reprimir. Curiosamente, também a esmagadora maioria dos 300 alemães que estavam aprisionados em Singapura e que os amotinados se haviam apressado a libertar para os auxiliar na insurreição, adoptaram a mesma atitude neutral, demonstrando que preconceitos raciais se sobrepunham às alianças circunstanciais de guerra. Apesar do número de insurrectos nunca dever ter ultrapassado os 500, a verdade é que os britânicos tiveram que passar pela humilhação de ter de apelar aos seus aliados para disporem de um contingente de homens armados adequado para os combater. Nos dias que imediatamente se seguiram, o auxílio de marinheiros armados de navios de guerra da França, Rússia e Japão que estavam próximos foi imprescindível para a contenção do motim antes que unidades militares britânicas (compostas por soldados europeus...) expedidas urgentemente da Birmânia tomassem o assunto em mão e o encerrassem em cerca de uma semana.
No final, cerca de 60 insurrectos haviam morrido e do lado das forças da ordem e dos civis a contagem era de 43 mortos e 19 feridos. Seguiram-se os julgamentos, onde mais de 200 amotinados foram levados a tribunal marcial. Houve 47 execuções, 64 penas de prisão perpétua para além de 73 outras penas de prisão, cujas mais ligeiras atingiam os 7 anos. Sinal de outros tempos noticiosos, uma notícia a dar conta do motim em Singapura era publicado no New York Times de 2 de Maio de 1915, dois meses e meio depois dos acontecimentos terem tido lugar. Os cerca de 600 homens que restavam do 5º de Infantaria Ligeira foram mobilizados em Julho desse mesmo ano para participar na invasão dos Camarões, então colónia alemã na África Ocidental. Em 1916 foram transferidos para Tanganica, que era outra colónia alemã mas na África Oriental. Em 1917 foram novamente transferidos, agora para guarnecer Adem, no Iémen, que, como Singapura, era outro porto estratégico do Império Britânico na encruzilhada entre o Oceano Índico e o Mar Vermelho com o Canal do Suez. Apesar desta honradíssima folha de serviços, a má reputação da unidade acabou por a condenar à extinção na reorganização do Exército da Índia Britânica que veio a ter lugar em 1922. O motim de há 99 anos pode ser ainda hoje discretamente evocado através de dois memoriais expostos à entrada do Victoria Memorial Hall.
¹ Uma franca maioria da população de Singapura tinha ascendência chinesa. Actualmente, ela cifra-se em cerda de ¾ de toda a população.
Etiquetas:
Índia,
Paquistão,
Primeira Guerra Mundial,
Reino Unido,
Singapura
Subscrever:
Mensagens (Atom)