10 março 2014

UMA ESQUERDA DESCOMPLEXADA, INFELIZMENTE ESQUECIDA

Ernest Bevin (1881-1951) merecer-me-á um destaque mais elaborado do que aquele a que procedi abaixo a propósito dos restantes Big Five do Partido Trabalhista britânico do pós-guerra. Porque Bevin terá sido um dos expoentes de uma certa esquerda que, como ele, era de impecáveis origens proletárias (a mãe era viúva, perdeu-a aos 8 anos, deixou de estudar com 11) e assente numa irrepreensível actividade sindical em prol dos direitos dos trabalhadores (foi dirigente do sindicato nacional dos camionistas durante 23 anos) mas que, ao mesmo tempo no seu pragmatismo, aprendeu com a experiência a não confundir o que era a verdadeira Democracia e quais os custos em a preservar, com aquela costumeira retórica que as ideologias totalitárias costumam produzir a esse respeito. É assim que o podemos citar, numa espécie de contrição, a dizer aos Comuns em Julho de 1941 que: Se alguém me perguntar quem foi o responsável pela política que nos conduziu à Guerra, eu deveria, como trabalhista que sou, confessar assumindo: «Fomos todos nós». Recusámo-nos absolutamente a encarar os factos como eles se apresentavam. Quando se colocou a questão de armar ou rearmar milhões de pessoas deste país (…) recusámo-nos a encarar o que estava realmente em causa num momento crucial. Mas de que serve culpar alguém? Não podemos tornar as nossas acções retroactivas. Há que recomeçar a partir de agora e fazer o melhor que se pode. E adiantava em Março de 1942: Enquanto eu dispuser de algum poder opor-me-ei a que se venha a tratar o Exército como ele foi tratado no passado. Durante o período de paz, desfizeram-se as próprias fundações da estrutura do Exército e esperou-se que elas se reconstruissem em período de guerra, quando o inimigo nos assediava. Ernest Bevin tornou-se o ministro dos Negócios Estrangeiros quando os trabalhistas chegaram ao poder no Verão de 1945.
Quando se esperaria uma maior benignidade do novo governo britânico em relação aos soviéticos, consideradas as pretensas afinidades ideológicas, Bevin deixou o assunto claro, como o fez nos Comuns em Junho de 1946: E se eu tenho mais uma vez de referir a conceitos políticos diferentes, há aqueles que aparecem infelizmente em todos os escritos e discursos dos nossos amigos soviéticos, a teoria de que só eles representam os trabalhadores – que só eles são democratas. Ao contrário de outras, a relação desta esquerda trabalhista britânica era completamente descomplexada em relação à pretensa pátria do socialismo e mesmo frontalmente hostil para ela. Em Agosto de 1945 George Orwell, outro seu representante (embora de uma postura mais intelectual), publicara A Quinta dos Animais, uma crítica devastadora à forma como os dirigentes soviéticos haviam conduzido a revolução, e ficou nos anais da história não publicável o episódio de 1946 em que Ernest Bevin – que era fisicamente avantajado, um verdadeiro filho da classe operáriaperdeu a cabeça numa conferência e saltou do seu lugar disposto a arriar em Vyacheslav Molotov, o seu homólogo soviético – nove anos mais novo mas fisicamente mais acanhado, um intelectual oriundo de uma família de comerciantes judeus russos – até ser segurado pelos presentes. Contudo, isso não impedia que o Reino Unido sob os trabalhistas procurasse simultaneamente a sua autonomia estratégica do seu outro grande aliado, consubstanciada nomeadamente no desenvolvimento da sua própria arma nuclear, objectivo que causou repetidos choques entre Bevin e os seus consecutivos homólogos norte-americanos, James Byrnes, George Marshall e Dean Acheson. Ou seja, não se perdia de vista aquilo que Bevin sempre dissera ser fundamental: a capacidade de defesa do Reino Unido. O exemplo de Ernest Bevin, um anticomunista de intocáveis pergaminhos de esquerda, é excelente para lavar as cabeças de muitos complexados que por aí andam, que, à esquerda e (também) à direita, não sabem hierarquizar a importância dos princípios políticos e, assim, das alianças.

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