27 abril 2010

24 e 26 de ABRIL

Por estes dias são muitos os postes evocativos do 25 de Abril aqui pela blogosfera. Não quero deixar de me associar à efeméride mas faço-o de uma maneira imaginativa que disfarce o atraso evidente. Por isso baptizei este poste de 24 e 26 de Abril. Poderá parecer um pouco cínico mas pretendo mostrar através de duas edições de um típico jornal de província daquela época, no caso a Gazeta das Caldas (da Rainha), como é que é da natureza humana que nestas ocasiões o povo todo acaba por estar com o MFA, mesmo aquele que não estava…
O exemplar acima data de 20 de Março de 1974, quatro dias depois da intentona fracassada que precedeu o 25 de Abril e que teve origem no Regimento de Infantaria 5, que estava sedeado precisamente nas Caldas da Rainha. O Director da Gazeta local entendeu apropriado escrever o seguinte editorial:

1. A insurreição de opereta, que partiu do aquartelamento local e inverteu ao chegar a Lisboa teve aqui a sua origem a poderia ter tido noutra qualquer instalação militar do País. Ou então os «estrategas» da inversão preferiram a cidade por estar mais próxima da capital.
2. Preocupam os caldenses o presente e o futuro do concelho ante o renome com que ficou, após a difusão do acontecimento e a infeliz escolha da urbe para ponto de partida da rebelião-farsa.
3. As autoridades civis e as forças da Ordem cumpriram mui prontamente o dever de a contrariar e a isso não ficará alheio o Governo, por certo, ao avaliar do fácil coarctar das veleidades. Os caldenses devem, pois, ficar tranquilos.
4. Nem receiem perda de prestígio da unidade militar aqui fixada, nem temam haja sido maculado o honroso passado do Regimento de Infantaria 5.
5. As Caldas e o seu regimento mantêm-se firmes. Nada buliu a honra e dignidade: nem desta “pequena pátria”, de todos nós, nem da ilustríssima unidade militar.
6. As considerações que precedem não têm, basilarmente, conteúdo político. Situam-se no campo do regionalismo, bem caldense.
7. Politicamente importa afirmar aos que, no ultramar e no estrangeiro, lerem estas linhas, sendo portugueses, que nada, absolutamente nada, aconteceu. Nas Caldas e seu termo, como pelo território do continente português, todos estamos em segurança, não há alterações da ordem pública.
8. Não suponham os nossos filhos e irmãos, que asseguram a perenidade de Portugal, que afirmam a presença lusíada além-mar e que sustentam os combates de supressão do terrorismo, haver algo mudado na retaguarda. Esta é uma rocha em que podem sentir firme apoio.
Percebe-se logo que esta Gazeta já é de depois do 25 de Abril (4 de Maio). Quase tudo o que ela contém desmente o que fora escrito na edição de cima, a começar pelo notícia principal, onde se fala da homenagem popular aos militares da arrancada de Março, a iniciativa que fora então classificada como uma rebelião-farsa. Mas o Director dispôs-se a justificar-se noutro editorial:

1. O Povo e as Forças Armadas restituíram o País à normalidade das instituições políticas. Puseram termo a um regime de excepção que usava da autoridade para restringir as liberdades naturais em vez de as garantir e tornar efectivas.
2. Tudo aconteceu por tal forma, clara, entusiástica e unânime, que é evidente ter recebido Portugal o que há muito esperava com a maior das ansiedades.
3. Aceitar e bendizer, de braços abertos, o Movimento Militar e a sua lídima representante – que é a Junta de Salvação Nacional – é um imperativo nacional em que nos integramos com fé nos destinos democráticos da Pátria e animados do propósito sincero de cooperar na redenção da comunidade lusa ao calor das liberdades cívicas.
4. Só espíritos fechados às realidades não viam que excepção não podia eternizar-se como regra e que esta – o auto-governo dum povo – é a que se encontra na normalidade de instituições erigidas por si mesmas – não impostas. Para mais foi patente a do governo deposto para resolver os grandes problemas nacionais.
5. Avulta que a Nação se mostra – e desde há anos – provida de educação cívica e dotada de capacidade para gerir os seus próprios destinos. Uma vez mais está provando isso.
6. Este é o nosso acto de fé. Ao praticá-lo lembramos as circunstâncias de pressão em que anteriormente se vivia e à qual não podíamos furtar-nos. Ao afirmar a nossa completa adesão à Proclamação da data histórica que foi a do 25 de Abril de 1974 e aos princípios aí enunciados pela Junta de Salvação Pública da presidência do General Spínola, estamos animados do ideal de introduzir no periódico caldense a estrutura adequado a torná-lo num arauto do Povo.
7. Pretendemos que Gazeta das Caldas – nascida democraticamente em 1 de Outubro de 1925 – fique aberta a todos, a dentro duma imprensa livre, sem peias de censura ou exame prévio. Pomos como penhor e aval da genuinidade do nosso querer, a boa-fé, o desinteresse e a honestidade com que sempre procedemos. Servimos sem nos servirmos.

Muito menos palavrosa que o editorial, uma pequena (mas não discreta) nota no canto superior direito da primeira página será mais explícita sobre aquilo que estava a suceder.

Através de telefonema, que teve lugar na manhã de Segunda-Feira, dia 29, o director deste jornal deu a um representante das forças democráticas caldenses garantias de integração imediata de Gazeta das Caldas no espírito e na acção da Junta de Salvação Nacional. Estão a ser cumpridos os compromissos espontaneamente assumidos.

No mesmo dia 4 de Maio de 1974, o semanário Sempre Fixe publicava um cartoon de João Abel Manta que enchia a sua primeira página.
- Não me chateie! Já disse que só lhe posso virar a casaca lá para Setembro.

4 comentários:

  1. As vítimas de hoje são os carrascos que não conseguiram lugar a tempo. Vide Saramago na redacção do DN em 75/76...

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  2. Artur, este é um poste objectivo e simples, mas com um potencial tremendo para um daqueles teus argumentos imaginativos. Por exemplo, deixa-me induzir-te a especular sobre quem seriam as “forças democráticas caldenses” a que o “nosso” director foi ao “beija-mão”? É que naqueles tempos de grande ignorância, ingenuidade e confusão semântica todos eram democratas; até o Saramago era democrata…

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  3. Pi-Erre, por acaso nem lhe ocorreu que, se o jornal tivesse mudado de director, desapareceria a razão do poste?...

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