14 outubro 2015

CONFORME A DISPOSIÇÃO DA OPINIÃO PÚBLICA

Serão raras as ocasiões em que se consegue encontrar uma demonstração tão pura de que o acolhimento ao que é publicado depende da disposição do momento de quem lê. Recuemos oito meses e meio até aos finais de Janeiro deste ano, quando o INE publicou estatísticas sobre a pobreza com dados até 2013. O Governo, a Lusa e, por arrastamento, o Expresso, fizeram eco do que fora preparado pelo primeiro para desvalorizar os dados (acima). A técnica era pôr o primeiro-ministro sobranceiro a afirmar (com que provas não se sabe nem ninguém perguntou, de resto...) que os dados do INE não reflect(iam) a situação actual. Alguns dias depois, um aplicado jornalista do mesmo Expresso, João Silvestre, dava à estampa o resultado do seu trabalho de análise dos dados, chamando a atenção para que as regras tira(va)m 640 mil das estatísticas de pobreza em Portugal. O artigo menciona vários indicadores, distinguindo-os e explicando-os, dos quais dois importa reter:
a) 47,8% é a taxa de risco de pobreza antes de qualquer transferência social (pensões incluídas). Consideradas estas, a taxa de pobreza reduz-se para 26,7% e ainda mais, para 19,5%, quando consideradas as outras prestações sociais. b) O rendimento anual de € 4.937 é considerado o valor limiar da pobreza. De tão explicado, o artigo é capaz de se ter tornado enfadonho e esquecido, porque, oito meses depois, a sua colega Christiana Martins daquele mesmo jornal escreve um outro artigo sobre esse mesmo tópico das estatísticas da pobreza de 2013, no qual recupera apenas o par de dados que cima destaquei (47,8% e €4.937), e à boleia de um discurso de um académico do ISEG, arranca o portentoso título Metade do país em risco de pobreza - metade são os 47,8% arredondados... Terá sido a mudança de estilo? Terá sido o timing e/ou a predisposição pós-eleitoral? A verdade é que o acolhimento desta última prosa, ultra simplificada, teve o condão de despertar uma atenção e uma indignação entre os leitores que só se torna simétrica com a explicação original de Pedro Passos Coelho.

1 comentário:

  1. Conforme a disposição da opinião pública, os critérios editoriais (cuja variação não depende apenas daquela mas do momento político e interesses próprios a defender), a simplificação ou agregação a que se sujeitam os dados. Como é costume dizer, os números e as estatísticas servem para tudo, formatam-se conforme a conclusão que se pretenda extrair. A simples menção de "em risco de", a meu ver, já é suficiente para justificar o "portentoso título". Contudo, a serem considerados os vários tipos de apoios sociais (rendas condicionadas, tarifas especiais de água, luz, transportes, assistência médica e hospitalar, isenções de propinas, cantinas, etc., admito que seja possível retirar os tais 600 mil da classificação estatística de pobres (que não propriamente dessa condição). E a explicação para a abismal diferença (47.8% vs 19,5%) poderá, afinal, residir na simples expressão "em risco de". É que, de facto, metade da população vive efectivamente na fronteira da pobreza, pelo que basta um café a mais ou a menos para fazê-los passar de um lado para o outro daquela fronteira.
    Há dias, a propósito de um outro assunto muito mediatizado e martelado - os lesados do BES -, e após uma breve consulta a dados disponibilizados no PORDATA, fiz este comentário também ultra simplificado: Os portugueses sempre tiveram um carinho especial pela D. Branca, que se tem vindo a constatar ininterruptamente ao longo dos anos. O que eu não compreendo nem é isso - cada um acredita naquilo que quer -, é a importância e tempo de antena que se dá a esses "lesados" quando se sabe que, em números redondos e ANUALIZADOS, mais de 80% da população vive com esta realidade: RSI 1300€, pensão de sobrevivência 2200€, pensão mínima 3700€, pensão média 4500€, salário mínimo (líq.) 6300€, salário médio (líq.) 11.000€. Com números destes, quantas vidas necessitariam de viver mais de 5 milhões de agregados familiares para conseguirem poupar os tais 100K mínimos???

    Nota: a noção de agregado familiar é a adoptada em rendimentos das famílias portuguesas no Pordata.

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