06 janeiro 2015

«DOIS, TRÊS, MUITOS AFEGANISTÕES»

Ao contrário do outro, este apelo é apócrifo e paródico e nem sequer há românticos para ainda o levar a sério. Mas não deixa de ser historicamente tão verdadeiro quanto o de Che Guevara a respeito dos Vietnames que havia que multiplicar. A diferença é que os Afeganistões foram, de princípio, implementado por cínicos, que adoptaram uma resposta idêntica no formato, mas politicamente simétrica, às subversões armadas apoiadas pelos países do Segundo Mundo. A ideia de criar guerrilhas em países considerados pertencentes à órbita soviética nem partiu originalmente dos Estados Unidos. Muito pelo contrário: quando, durante a Guerra do Vietname, os falcões do Sul tentaram criar uma guerrilha no Norte que fosse simétrica à que o Vietcong desenvolvia no Sul, o projecto não recebeu o apoio norte-americano e fracassou. Por aqueles anos, até 1975, os Estados Unidos não se concebiam a patrocinar tal tipo de conflitos, como se uma superpotência não prestasse a desempenhar um papel de underdog. Foram os dois regimes de minoria branca do Sul de África (África do Sul e Rodésia) que terão mostrado aos norte-americanos como as subversões armadas podiam ser eficientes, quando, a partir da segunda metade da década de 1970, as promoveram nas duas antigas colónias portuguesas de Angola e Moçambique. Num punhado de anos, ressuscitando a UNITA e criando de raiz a RENAMO, com os limitados meios à sua disposição, apareceram uns exércitos guerrilheiros de um punhado de milhares de homens que se mostraram capazes de desestabilizar qualquer dos dois países, a ponto de neutralizar preemptivamente as suas iniciativas. A partir da década de 1980, com a chegada ao poder da administração republicana de Ronald Reagan, os Estados Unidos, tendo perdido a Nicarágua em 1979 para a guerrilha sandinista, e estando em vias de perder El Salvador de uma forma rigorosamente idêntica, adoptaram um processo similar no primeiro daqueles países, criando os Contras, guerrilheiros apostados em derrubar o regime entretanto instaurado pelos sandinistas. É que, como se vê na metade esquerda da fotografia inicial, aos fervores revolucionários em derrubar os regimes opressivos, seguem-se sempre tempos - à direita - de uma muito menos empenhada defesa da nova ordem revolucionária...

Mas, para a História e a dinâmica da Guerra-Fria, foi no Afeganistão que os Estados Unidos descobriram quanto a eficiência do apoio à subversão podia ser remuneradora. Em primeiro lugar porque naquele caso os Estados Unidos defrontavam directamente, ainda que de forma dissimulada, a sua grande rival estratégica, a União Soviética, num cenário que era uma simetria perfeita do que muitos consideravam haver acontecido no Vietname. E em segundo lugar porque naquele caso e ao contrário dos outros, havia uma verdadeira clivagem ideológica entre os antagonistas. Só muitos anos depois dos acontecimentos é que a opinião publicada dos Estados Unidos terá percebido que os norte-vietnamitas eram sobretudo nacionalistas antes de serem comunistas ou que as diferenças entre Violeta Chamorro e Daniel Ortega não seriam tão vincadas assim. O auxílio aos mujahidins do Afeganistão porém, demonstrando o efeito multiplicador do auxílio logístico a combatentes ideologicamente empenhados, abriu uma Caixa de Pandora cujas consequências ainda hoje (quando poucos se lembrarão do que foi a UNITA ou a RENAMO) se podem constatar nas primeiras páginas dos jornais nas notícias das acções do denominado Estado Islâmico na Síria e no Iraque ou do denominado Boko Haram no Norte da Nigéria. Esse é capaz de ser mais um motivo pelo qual todas as organizações de guerrilha que ao longo daqueles anos foram apoiadas pelos Estados Unidos e/ou por organizações da direita conservadora (não me lembro de excepções), tiveram e mantêm uma má imprensa. E, claro, deste lado, não existem ícones como Che Guevara. Acima pode ver-se o vídeo do trailer de Jogos de Poder (2007 - Charlie Wilson’s War, no original), a história contada de maneira burlesca de um dos congressistas norte-americanos que mais se empenhou em financiar o armamento destinado aos rebeldes afegãos. Charlie Wilson aparece como um verdadeiro anti-herói, ao contrário da forma como Che Guevara é retratado no filme biográfico de 2008 do trailer abaixo. A ironia da comparação dos dois vídeos é que, méritos artísticos à parte e para choque dos sentimentais soixante-huitards, o impacto histórico e estratégico da intervenção dos dois, visto com distanciamento, pode não ter sido assim tão diferente...

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