03 outubro 2021

O RECANTO DOS FANTASMAS NESTE PAÍS DAS MARAVILHAS

No princípio deste ano procedeu-se a mais um dos censos regulares (um por década) da população portuguesa. Mesmo que a atenção social estivesse concentrada na pandemia o Instituto Nacional de Estatística já publicou os primeiros resultados - e os mais significativos - respondendo às perguntas quantos somos ( 10.347.892), onde estamos e de que forma nos distribuímos (idade, sexo, etc.). O que estes resultados oficiais têm de particularmente interessantes é que eles são recentíssimos e por isso podem servir para validar outras informações oficiais. Como será o caso das informações respeitantes a actos eleitorais, como aquele que acabou de ter lugar a 26 de Setembro passado. Agradeço imenso a quem fez esse trabalho por mim, comparando a população residente e a população adulta (+18 anos) apurada nos censos 2021 em cada um dos 308 concelhos do país, com o número de eleitores constantes dos cadernos eleitorais. As conclusões são estarrecedoras. Mas, como as pessoas se habituaram a gostar mais de pequenas histórias do que a chegar rapidamente às grandes conclusões, contemo-la então, essa pequena história que se passa no Norte do país, mais precisamente nos três concelhos do Norte do distrito de Vila Real assinalados no mapa abaixo: Boticas, Montalegre e Ribeira de Pena.
Num mapa em que se ponha por ordem a maior discrepância entre a população adulta residente contada há seis meses e o número de eleitores que poderiam votar nestas eleições, aqueles três concelhos de Vila Real aparecem nos três primeiros lugares. Com discrepâncias que se tornam cómicas. Assim, e para não aborrecer com muitos números, esclareça-se que naqueles três concelhos vivem 20.000 pessoas, das quais 17.000 são adultos e onde estão registados 30.000 eleitores. E, na semana passada, votaram ali quase 17.000 eleitores. Eu bem sei que aquela é uma zona esquisita, propensa a fenómenos esotéricos: é o caso do congresso de medicina popular de Vilar de Perdizes; ou então o caso do cartório notarial que, só ele, é que consegue registar uns terrenos no Porto em nome da Selminho de Rui Moreira. Mas, mesmo toda essa tolerância para com o sobrenatural, não nos pode fazer descartar as preocupações com o paradeiro dos fantasmas de uns 13.000 eleitores. É muito fantasma, demasiada gente a esquecer-se de actualizar a sua morada para efeitos eleitorais tanto mais quanto os portais oficiais são enfáticos quanto à segurança dos automatismos como os registos se processam. Uma última sugestão para dinamizar o turismo rural local será a de criar uma caça ao eleitor fantasma inspirada no jogo do pokémon... Assim como os pokémons, os turistas podiam passear-se - imaginemos! - pelos campos de gadgets na mão, encontrando os espíritos da eleitora Ti'Alice, cujo registo a dá como nascida em 1894, ou então o do eleitor Bernardo da burra, que todos na terra sabem que está para a Suíça há uns bons 35 anos...
Falando agora mais a sério e com mais gravidade. Feitas as mesmas contas para o conjunto do país, as disparidades são menos ridículas mas, o número de eleitores registados é superior ao da população adulta em 283 dos 308 concelhos do país (e até mesmo da população residente em 80 deles!). Em números globais arredondados, contam-se 9.320.000 eleitores constantes dos cadernos eleitorais no país, e o censos 2021 contou 8.680.000 adultos, dos quais 185.000 são estrangeiros (alguns destes últimos podem votar nas autárquicas, outros não). Assim, nesta estimativa de que me socorri - e que mais uma vez agradeço ao autor - o número de fantasmas nos cadernos eleitorais situar-se-á entre os 640.000 e os 825.000. Este é o meu número, mas há outros. Em 2009 no Diário de Notícias eram 930.000; em 2011 para o Correio da Manhã eram 1.250.000; em 2013 no Jornal de Notícias escrevia-se 1.000.000 (número redondinho!); em 2019, a TSF calculou 796.000; na semana passada, na SIC Notícias regressou-se ao milhão redondo da praxe. Como se vê, não se pode dizer que neste caso a comunicação social não tenha chamado repetidamente a atenção para o problema. Têm sido os sucessivos poderes políticos que não têm querido mexer no assunto. Mal. Em assuntos eleitorais a imagem de rigor é imperativa, porque todos sabem que por um voto se ganha e por um voto se pode perder uma eleição. São situações como esta que, cumulativamente, arrasam a reputação de seriedade do Estado. Nos princípios de 1975, ia Portugal mergulhar no PREC, Nicolau Breyner protagonizava um programa de TV que se intitulava Nicolau no País das Maravilhas. O PREC pôs fim ao programa mas o mesmo PREC terminou ainda antes do fim daquele ano. Nicolau Breyner também já nos deixou. Mas esta sensação de, em certas circunstâncias e por negligência dos actores políticos, vivermos num país das maravilhas, perdura para além de tudo.

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