28 março 2015

SIR RICHARD TURNBULL E A SUA EXPERIÊNCIA IEMENITA

Sir Richard Gordon Turnbull (1909-1998) era uma das últimas mãos experientes que saberia segurar com dignidade as rédeas de um império em decomposição. Estivera durante a década de 1950 no Quénia como Secretário-Chefe (o segundo posto da hierarquia administrativa colonial a seguir ao de Governador), precisamente durante a insurreição dos Mau-Mau, fora promovido em 1958 a Governador da vizinha Tanganica com a missão de preparar a sua independência, que veio a acontecer em Dezembro de 1961. Assumira o cargo de Governador-Geral do novo país, em representação da soberana Isabel II, até ele se ter transformado numa república em Dezembro de 1962. Quando, em Dezembro de 1964, o governo trabalhista britânico o escolheu para ser o Alto-Comissário em Áden, na complexa colónia britânica que viria a constituir primeiro o Iémen do Sul (1967), mais tarde fundida no Iémen (1990), fazia-se uma opção por alguém com experiência na região (Turnbull falava suaíli, o que não sendo o árabe local, é a língua franca da costa oriental de África, incluindo Omã) e na missão (o Reino Unido havia decidido conceder a independência à colónia com condições e um calendário a negociar com as elites locais). Em Maio de 1967, um Sir Richard abandonava o cargo depois de dois anos e meio de frustrantes negociações com as inúmeras partes envolvidas, de onde o problema menor seriam os interesses da antiga potência colonizadora. Em 1975, o mesmo Sir Richard Turnbull compilou numa extensa carta (que se transcreve condensada abaixo) as suas reflexões sobre os problemas insuperáveis com que se deparou. Têm a oportunidade de demonstrar quanta é a dificuldade de querer sintetizar sem simplificar um conflito iemenita típico.
O enquadramento constitucional dos Protectorados da Arábia do Sul era complicado para lá de qualquer explicação razoável: compreendia a Federação de estados do que havia sido o Protectorado de Áden Ocidental (assinalado no mapa acima a verde escuro), a própria cidade de Áden (que, pertencendo à Federação era uma Colónia da Coroa – assinalada a vermelho) e ainda os três estados pertencentes ao Protectorado de Áden Oriental (que não faziam parte da Federação e que não estavam federados uns com os outros – assinalado a verde claro). Os britânicos não administravam os estados e nunca o tinha feito; protegiam-nos, financiavam-nos, orientavam a sua política externa e, através de um sistema de conselheiros, tentava-se inculcar algumas noções de probidade e senso comum entre eles. Os estados da Federação quase não tinham receitas; não havia indústrias e muito pouca agricultura; nem os habitantes tinham muito para oferecer em termos de capacidades, a não ser a dos homens para o combate. Os estados estavam divididos por rivalidades e querelas de todo o género e cada um deles mostrava uma inveja rancorosa pelos seus vizinhos. Quase todos os homens andavam armados; não havia uma grande lealdade para com o estado de origem e não havia qualquer concepção dela para com a Federação.
Entre os Conservadores à direita, aduladores dos árabes no estilo clássico (
Lawrence &al.) concebia-se os governantes dos estados como árabes tradicionais «sans peur et sans rapproche» (sic), em quem se podia confiar para manter um escudo de protecção à Base (a base aérea estratégica da RAF de Khormaksar, uma espécie de Lajes britânica nas Arábias)contra o nacionalismo árabe e as incursões vindas do Iémen. Pelo seu lado, os Trabalhistas no Governo estavam firmemente convencidos que todos eles não passavam de um punhado de canalhas que estariam a dificultar a marcha da Arábia do Sul na direcção do sufrágio universal e do sindicalismo para todos. Os que estavam no terreno sabiam que, com algumas excepções, o conjunto era um bando de egoístas inúteis que se haviam alcandorado a posições que não tinham sequer competência para ocupar.
Quanto à Federação (da Arábia do Sul), era uma criação política que nascera desengonçada, afectada por dissensões internas e que não gerava confiança em nenhum dos agentes envolvidos. Os próprios federalistas haviam acabado por tomar consciência que, por terem aderido ao projecto britânico, se haviam tornado nuns desprezados no mundo árabe. Haviam por isso decidido agarrar-se às vantagens que haviam obtido da relação com a potência colonial, ou seja, o dinheiro britânico e a sua protecção pelo maior espaço de tempo que lhes fosse possível. O que causava mais admiração nos federalistas é que, apesar da precaridade da sua posição, politicamente, socialmente e constitucionalmente, não só não se dispunham a fazer fosse o que fosse para melhorar a sua situação política, como também não toleravam que alguém de fora o fizesse por eles. Estavam divididos por querelas e disputas e por intermináveis rivalidades pessoais; foi por esse motivo que teve que se estabelecer que a presidência do Conselho Supremo Federal fosse rotativa mensalmente.
Em contraste, os adenitas mostravam-se orgulhosos das suas origens e ciosos das suas instituições democráticas, que se mostravam verdadeiramente muito mais evoluídas que em qualquer dos outros países do Médio Oriente. Concebiam-se como verdadeiramente civilizados (que o eram) e não se mostravam nada dispostos a partilhar a sua riqueza com os atrasados, conflituosos e arrogantes tribais que compunham o resto da Federação. De algum modo, o governo conservador britânico havia-os arrebanhado em 1963 para se juntarem a ela. Nunca perdoarão os britânicos por isso.
É necessário salientar que embora os adenitas fossem, admita-se, merecedores de simpatia e apoio e os federalistas mais apropriados à condenação como baronetes medievais perversos, na realidade foram os últimos a adquirir as maiores simpatias em vez dos primeiros. É que os federalistas, apesar de todos os seus defeitos, eram a bravura, a simpatia e o charme enquanto os adenitas podiam ser reduzidos nesse contexto a um grupo de merceeiros. Era uma reedição da história do nobre de província versus o negociante citadino.
Finalmente, os estados do Protectorado de Áden Oriental não tinham muito interesse para a composição do conjunto; há uma aura tão romântica a rodear o
Wadi Hadhramaut (...) os estados haviam-se desenvolvido adoptando linhas toleravelmente pacíficas; os jovens abraçavam uma carreira mercantil em vez das pilhagens e das contra-pilhagens (...) os velhos eram simpáticos, elegantes e cultos mas cultivando também uma indiferença e um derrotismo tais que não se dispunham a fazer nada por si próprios nem a aceitar que qualquer auxílio lhes fosse prestado. Uma unidade comandada e financiada pelos britânicos, a Legião Beduína Hadhrami, ajudava a assegurar a paz entre as várias facções rivais. Como resultado parcial do seu isolamento, as instituições locais, tanto quanto o carácter das gentes desagregava-se (...) a única atitude positiva que eles manifestavam eram manterem-se afastados dos problemas do mundo árabe e procurar ter o menor contacto possível com a Federação (...) apesar de tudo o que possa ter sido dito a respeito da qualidade quase ideal do Protectorado de Áden Oriental, nos meados da década de sessenta a estrutura social já começara a colapsar; em 1966, a Legião, que fora considerada até aí uma “força politicamente não comprometia”, assassinou o seu comandante (britânico) e, à medida que o tempo dos britânicos chegava ao fim, as cidades do Wadi Hadhramaut viram-se ameaçadas por grupos terroristas rivais...
A FLOSY (
Frente de Libertação do Iémen do Sul Ocupado) era essencialmente uma organização urbana e não tinha muita influência fora de Áden; mostrava o requinte de associar os seus atentados bombistas e assassinatos a referências ao sindicalismo e à democracia... A FLN (Frente de Libertação Nacional) era muito diferente (...) era gente rural transplantada para a cidade (...) a sua arma secreta é que aquilo que faziam lhes surgia naturalmente (...) tinham estado a combater a autoridade e entre si desde os tempos que precediam a islamização; à bruta, acabaram por dominar os maiores sindicatos (...) Do lado britânico, tão habituados se estava aos permanentes conflitos internos entre árabes, que se demorou tempo demasiado a perceber que havia possibilidade dos diferentes grupos estaduais dentro do FLN pudessem cooperar entre si; por essa altura já os efectivos do exército e da guarda da Federação estavam completamente infiltrados.
Nos princípios de 1965 havia-se montado um palco para a realização de uma grande conferência da Arábia do Sul, reformando a constituição federal, entregando-se a soberania britânica em Áden para que a cidade se pudesse juntar ao resto da Federação, e concedendo-se a independência ao conjunto, como um estado unificado numa relação privilegiada com a metrópole britânica, a ter lugar por volta de 1968 (...) os adenitas não gostaram da ideia; o que desejavam era a independência total e juntar-se a uma Federação reformada na altura e condições por si escolhidas; os federalistas também não gostaram da ideia; não gostavam de enfrentar o mundo moderno; queriam continuar a viver o seu tradicional modo de vida feudal à conta dos contribuintes britânicos. Os federalistas sabotaram a conferência e ela teve que ser abandonada.
Entretanto, uma comissão de constitucionalistas estudavam as possibilidades para Áden e a Federação (...) o próprio governo de Áden interveio no processo considerando dois dos membros da comissão como imigrantes ilegais (...) meses mais tarde, lá se conseguiu organizar uma espécie de conferência, mas a acrimónia entre Áden e a Federação era tal que houve que a encerrar (...) o Governo de Sua Majestade viu-se compelido a suspender a constituição; o Alto-Comissário (
o próprio Sir Richard Turnbull), desgraçado, tornou-se o governo de Áden (...) manifestações, greves e outras manifestações de desobediência tornaram-se comuns: Áden passou a boicotar o parlamento federal e os seus ex-ministros passaram a liderar uma campanha contra a comissão constitucional; eles não aceitariam menos do que a destruição do sistema tribal e a demissão dos dirigentes tribais.
A preocupação principal dos britânicos era, mais do que os dirigentes, a segurança colectiva da região. O exército e a guarda federais, apesar da infiltração da FLN, estavam dependentes das lealdades tribais nas suas internas e a desintegração de uma estrutura como o governo federal deixaria aquela máquina militar completamente por conta própria.
Em Fevereiro de 1966, o Governo de Sua Majestade anunciou a sua intenção de abandonar a Base e a Arábia do Sul. O governo federal reagiu mal (...) os dirigentes dos estados recordaram os britânicos que a sua anuência aos seus planos os haviam tornado alvos no mundo árabe; que depois de lhes ter retirado qualquer possibilidade de encontrar outros pólos de amizade e apoio (...) agora se propunham abandoná-los. Mantinham, com uns laivos de verdade, que na conferência que tivera lugar em Julho de 1964 o Reino Unido havia dado promessas concretas que um Acordo de Defesa para o período pós-independência seria negociado, acordo esse sob o qual se comprometera a manter a Base em Áden «para defesa da Federação e cumprimento das suas responsabilidades à escala mundial». A contra-argumentação era inútil, mesmo contraproducente; os federalistas insistiam que a Federação fora uma criação britânica e que também deviam ser eles a cuidar dela (...) em conversas privadas, adenitas responsáveis confessavam que assim como a Federação necessitava da Base para os defender, também Áden precisava da Base como salvaguarda pelas temidas depredações dos governantes federalistas. Consequentemente, o firme anúncio da intenção britânica fez com que a situação político-militar se agravasse ainda mais. Já não havia quaisquer vantagens em apoiar as iniciativas dos britânicos (...) a única certeza era que o futuro governo já não seria britânico; portanto toda a gente – militares, polícias, funcionários e políticos locais teriam que se bandear para outras paragens. Os de Londres estavam convencidos que bastaria a ameaça de tornar Áden independente que isso permitiria às autoridades coloniais chegar a acordo com as partes e sanar as divergências (...) mas não podiam estar mais enganados.
A única potência que se poderia conceber a apoiar a Federação seria a Arábia Saudita; o rei Faiçal recusou-se a agir a não ser que a Federação e os estados do Protectorado do Iémen Oriental se concertassem numa frente comum. Estes últimos, sem uma garantia prévia de uma aproximação entre a Federação e Áden não contemplariam sequer a hipótese de uma aliança, quanto mais a ideia de aderirem à Federação; e Áden preferiria tornar-se numa espécie de estado vassalo do Egipto a reassumir a posição na Federação que em 1963 fora obrigada pelos britânicos a assumir. Quanto à Federação propriamente dita, não se mostrava disposta a fazer fosse o que fosse para se mostrar mais aceitável aos olhos do mundo árabe; nem se disporia a qualquer tentativa para conciliar as aspirações adenitas.
Na procura de uma constituição que se mostrasse apropriada às circunstâncias, examinaram-se quase todas as constituições dos países Árabes, num exercício inútil considerando que as pretensas «democracias» árabes não passavam, todas e na prática, de ditaduras militares. Os britânicos tentaram até aliciar a ONU e acordaram em aceitar uma missão encarregada de recomendar medidas práticas conducentes à criação de um governo de gestão para tomar conta dos problemas até se elaborar e adoptar uma constituição. Todavia, por essa altura, os adenitas haviam inflectido tanto na adopção das directivas egípcias, tão condicionados estavam pela intimidação dos terroristas que lhes era impossível cooperar com os britânicos; mostravam uma desconfiança patológica dos federalistas. Estes, por sua vez, entretinham-se com a realização de uma série de conferências fúteis distribuídas por locais climatologicamente mais amenos do Médio Oriente. Whitehall (
i.e., o Governo em Londres) andava por essa mesma época obcecado com doutrina ideológica a respeito da importância das eleições, que eles imaginavam que se poderiam realizar em Áden como em qualquer outro círculo eleitoral britânico, Putney ou Hampstead. Na Federação, todos os homens andavam armados e os conflitos tribais eram endémicos. Em Áden, até a oposição não conseguia chegar a acordo quanto aos critérios para se ser eleitor; aliás, a própria menção do assunto era passível de desncadear um conjunto de distúrbios urbanos. Como magistrados e jurados eram abertamente sujeitos a intimidação, tornava-se necessário manter os terroristas capturados em detenção porque não podiam ser julgados. Era uma situação muito difícil que só expôs os britânicos ao opróbrio.
Em Março de 1967 (
numa manobra evidente para despachar o assunto, tornando-o menos penoso) Whitehall avançou com a ideia de antecipar a independência em dois ou três meses, chamando os nacionalistas adenitas para um território neutral onde se poderia encontrar um «modus vivendi», com protecção britânica para os meses que se seguissem. George Thompson (ministro do governo londrino) esmerou-se com os seus melhores dotes persuasivos para convencer a Federação, mas eles declinaram e rechaçaram a ideia.
Quando a missão da ONU chegou a Áden, ela era composta pelos elementos mais raivosamente anti-britânicos da ONU e via-se que só tinham vindo à Arábia do Sul para arranjar sarilhos. Mostraram-se conflituosos, nada cooperantes e antipáticos. Recusaram reconhecer ao governo da Federação qualquer estatuto; recusaram-se a reunir-se com os seus ministros. Os adenitas por sua vez também se recusaram a encontrar-se com a missão ou a apresentar-lhes sequer qualquer documentação solicitada. A FLN convocou uma greve e o governo da Federação recusou-se a conceder-lhes tempo de antena radiofónico. No dia seguinte foram-se embora, irritadíssimos.
Embora tenha vindo a criticar muito severamente os Árabes, não creio que se possa negar que as maiores responsabilidades pela «débacle» da Arábia do Sul são do governo britânico. Criou-se uma Federação composta por estados paupérrimos (não há petróleo na Arábia do Sul) que eram governados por verdadeiros irresponsáveis; por os ter feito aderir a uma solução vinda do exterior, denegrimo-los aos olhos dos outros países árabes. O interesse dos britânicos era aproveitar as suas qualidades guerreiras como barreira protectora da Base. Quanto a Áden, tratava-se afinal de uma colónia britânica e os adenitas eram súbditos britânicos para quem se tinha muito mais responsabilidades do que se teria para com os outros membros da Federação. Forçou-se Áden a pertencer à Federação numa parte por causa da Base, noutra parte para se poder utilizar a riqueza que o seu porto gerava na manutenção de um governo federal de estados que nunca tiveram outras fontes de financiamento que não tivessem sido os contribuintes britânicos.
Tudo isso piorou com a explosão do nacionalismo árabe na década de 1960 e pela determinação de Nasser (
presidente egípcio) em vingar-se do que acontecera no Suez. A ironia é que, no final, foi a FLN e não os homens de Nasser que venceram.
Um último comentário. Mesmo sem o nacionalismo árabe e sem Nasser, não acredito que se pudesse ter construído uma parceria natural e proveitosa entre os adenitas e os federalistas; e sem essa parceria os três estados do Protectorado Oriental ter-se-iam mantido distanciados de qualquer solução política que os quisesse incluir.

Com toda a frustração que as suas últimas palavras acima fazem sentir, Sir Richard Turnbull deixou o cargo de Alto-Comissário em 22 de Maio de 1967. Sucedeu-lhe Sir Humphrey Trevelyan (1905-1985) que esteve por lá seis meses na missão ingrata de apagar a luz e fechar a porta sem se saber muito bem nem quando o irá fazer nem a quem se vai deixar a chave. A data escolhida acabou por ser 29 de Novembro de 1967 e o curto vídeo acima, apesar da magnificência da locução, mostra – para quem o consiga descodificar – a vergonha embaraçada de toda a cerimónia. Ninguém queria morrer por uma causa inexistente. Vê-se as últimas malas dos soldados expedicionários a serem transportadas de helicóptero para os navios sem se explicar que os britânicos já não controlavam as próprias instalações portuárias em Áden e tinham receio de as carregar para bordo da forma tradicional; também por incapacidade em assegurar um perímetro seguro em terra a última guarda de honra ao Alto-Comissário com o simbólico arriar da bandeira teve lugar ao largo, a bordo de um navio, o HMS Intrepid. Uma verdade inconveniente que os 25 navios deslocados para o resgate e a parada de aviões não consegue escamotear. Os britânicos saíram do Iémen do Sul com o rabo entre as pernas. Os sauditas já por lá andavam, embora do outro lado da fronteira, no outro Iémen. Vamos a ver o que lhes acontece desta vez..

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