21 novembro 2013

EM JEITO DE BERNARDO GUI

Não há felicidade maior do que saber que Deus, o Deus supremo, sublime, transcendente, que fez o céu e a terra, se entregou à morte para me salvar. A mim pessoalmente.

É com estas palavras piedosas e agradecidas que João César das Neves inicia a sua crónica desta semana no Diário de Notícias. Mas os temas elegidos pelo brilhante economista nem sempre são do outro Mundo. Na sua crónica do princípio deste mês, ele desencadeou uma valente polémica ao questionar a representatividade de muitos que protestam em nome dos pobres. De uma posição que considero defensável (já se imaginou Louçã, de nariz decerto franzido, a conviver com os protagonistas da verdadeira pobreza?...), ele ter-se-á entusiasmado, qual pregador laico, e numa entrevista posterior ao mesmo jornal onde escreve, elaborou sobre a sua ideia, acrescentando: A maior parte dos pensionistas não são pobres e estão a fingir que são pobres. E dos verdadeiros pobres ninguém fala Os textos e as declarações de João César Neves provocaram uma reacção generalizada, talvez excessiva, de desagrado e indignação. De mim menos, muito embora me intrigue, num texto que, para mais, foi buscar referências ao prémio Nobel George Stigler (1911-1991)¹, uma certa falta de consistência científica. Por exemplo: a) Qual a definição objectiva do que seja um pobre²? b) Pode deduzir-se do texto que é a prática da caridade cristã que desperta a empatia necessária para tornar quem a pratique porta-voz qualificado dos pobres a quem ela se destina?

A justificar o clamor que acompanhou o texto e as declarações de João César das Neves, creio que parece existir o mito que espera de pessoas que expõem assim publicamente a sua fé que tenham um comportamento mais cordato e benigno do que é costume, como se esse comportamento fosse algo implícito às manifestações de religiosidade. Ora as declarações pouco conciliadoras de João César das Neves enquadrar-se-ão numa milenar escola de pensadores cristãos que extrai dos ensinamentos dos Evangelhos apenas alguns aspectos mais específicos da doutrina. O exemplo de um membro de tal escola que me lembrei de aqui evocar, para quem ainda se lembrar do livro e/ou do filme O Nome da Rosa, é a personagem de Bernard de Gui (protagonizada no filme por F. Murray Abraham), o inquisidor e inimigo do protagonista, William de Barkerville (Sean Connery). Na verdade, Bernard de Gui (1261/2-1331) foi uma personagem histórica, provavelmente muito menos antipático do que o da ficção mas que teve mesmo a função de inquisidor como Umberto Eco o tornou conhecido. Era alguém que era intelectualmente brilhante além de escritor prolixo, como João César das Neves, mas não propriamente piedoso. E, à falta de imagem original, reconheça-se que João César das Neves tem um aspecto mais simpático que F. Murray Abraham…
¹ Stigler é simultaneamente tão brilhante quanto mostra que não tem os parafusos todos bem apertados: a solução óptima do problema da Dieta de Stigler consiste, por exemplo, num menu idealmente económico e nutritivo, mas que as pessoas repetiriam 365 dias por ano, quais animais de criação.
² Há uma escola de pensamento económico que concebe um pobre como uma fracção de um rico: vários pobres, quando se quotizam, equivalem a um rico.

1 comentário:

  1. De tudo o que foi dito e escrito sobre o João César das Neves, a crónica de Pedro Tadeu "César das Neves não pode ficar calado", no DN, de 2013/11/19 é definitiva e diz o que devia ser dito.
    E mais não digo.

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