14 outubro 2014

AS CARTAS DE «LISELOTTE», A PRINCESSA PALATINA

Isabel Carlota da Baviera (1652-1722), princesa palatina por nascimento, duquesa de Orleães pelo casamento, um daqueles casos raros em que a pessoa ficou conhecida para a História pela sua alcunha familiar de Liselotte (a contracção em alemão dos seus dois nomes próprios), foi alguém que se destacou da mediania dos cortesãos que compunham a corte de Luís XIV (1638-1715). E tornou-se conhecida pela sua produção epistolar, não apenas pela quantidade (perdeu-se a conta ao número de cartas que terá escrito ao longo da vida) mas sobretudo pela qualidade - e não me estou a referir à beleza literária do conteúdo, estou a referir-me a conteúdo propriamente dito. Sobre ele há duas escolas de historiadores, a alemã e a francesa, que divergem no que há a destacar de mais importante nas cartas de Liselotte. Para os seus compatriotas, Liselotte evidencia nas suas cartas uma densidade intelectual que é muito superior ao meio envolvente, um dos seus correspondentes era Leibnitz, que ela conhecera quando da sua estadia na corte de sua tia Sofia em Hanover. Ao longo dos 50 anos que viveu em França, Liselotte nunca deixou de cultivar um certo distanciamento de observadora em relação a tudo aquilo que a rodeava, independência essa que a fazia recorrer ao seu alemão nativo quando qualificava a rainha (e cunhada), Maria Teresa de Habsburgo, de bluteinfältig (que, numa tradução com alguma liberdade do arcaísmo, equivalerá a simplória, labrega). Que não a impedia de adormecer a meio de uma missa – era Luís XIV em pessoa que a acordava com uma ou duas cotoveladas valentes, como ela se lamenta numa das suas cartas. E, num ambiente onde se cultivava a aparência acima de tudo, Liselotte descrevia-se a si própria com uma crueza (...as minhas ancas têm o volume de um tonel (...) sou quadrada como um dado. Tenho o rosto avermelhado, manchas amarelas, começo a ficar grisalha (...) A minha testa está toda enrugada (...) rugas à volta dos olhos (...) faces estão flácidas, os meus dentes estragam-seeis o meu belo retrato) que ultrapassava o efeito fino da ironia para um sarcasmo que roçava mesmo a grosseria.
E é precisamente isso que a escola dos historiadores seus anfitriões gosta de realçar. Há uma famosa carta datada de 9 de Outubro de 1694, que foi escrita em Fontainebleau e endereçada à sua tia Sofia, em que a princesa palatina discorre longamente sobre os problemas da cagação na corte do Rei-Sol. Nela Liselotte lamenta-se que, pelas regras protocolares da etiqueta na corte, não só não pode cagar quando tem vontade, como nem pode cagar a recato como ela gostaria, há que fazê-lo nas florestas que rodeiam o castelo, onde há sempre gente que passa. Não fora esse convívio na defecação e a História Universal desconheceria – mais uma vez através das inconfidências epistolares de Liselotte – que Luís XIV padeceu a certa altura de uma fístula anal que o incomodava sobremaneira e o tornava irrascível, algo de muito perigoso num regime em que o Estado era ele – com a fístula e tudo. Mas, no meio da sua predilecção pelo tema dos dejectos (e que a levava a alcunhar, por exemplo e noutra carta, um filho do rei - o conde de Toulouse - de caganita de rato), Liselotte não deixava de ser uma optimista pois remata a famosa carta com o desejo de que a obrigatoriedade de cagar deixasse de ser necessária. Há uma certa ironia no desejo pois, não sendo tão espirituosos quanto ela, entre os cortesãos também se notara o gosto de Liselotte pela boa mesa e a quem por isso tinham dado a alcunha de o ventre da Europa - e tudo o que entra tem de sair. Para conclusão, Liselotte foi uma princesa que tentou tirar o melhor proveito possível de uma existência fadada para a infelicidade. O marido que lhe escolheram, Filipe, duque de Orleães (1640-1701) e irmão de Luís XIV (a quem já aqui me referira), era uma pessoa desinteressante, além de homossexual. Herdou duas enteadas do marido que enviuvara (descreveu certa vez uma delas como assemelhando-se a um cu tal qual duas gotas de água), teve ainda mais três filhos, um dos quais ela viu tornar-se Regente de França entre a morte de Luís XIV e a maioridade de Luís XV (1715-1723). Luís XIV apreciava a cunhada e, mau grado tudo o que possa ter deixado escrito, Liselotte gostava de ter um lugar proeminente naquela que era então a corte mais importante da Europa.

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