24 janeiro 2013

A ERUDIÇÃO DE ANTIGAMENTE

Há uma corrente de opinião activa que nos costuma alertar para os cuidados que há a ter com a informação que se recolhe da internet, sendo a Wikipedia, a enciclopédia on-line de maior sucesso, o expoente das suspeitas. A argumentação é sólida e as intenções devem ser boas: de acesso livre, todos, mas literalmente todos, lá podem escrever aquilo que lhes passe pela cabeça a respeito de qualquer assunto e a segurança assenta apenas na boa vontade (e na celeridade…) de outros frequentadores mais asisados para que as asneiras lá inseridas sejam rapidamente corrigidas e/ou eliminadas. É uma preocupação que faz todo o sentido. A consulta de fontes provenientes da internet nestes dias que correm devia ser acompanhada de um daqueles slogans de campanha de prevenção rodoviária contra o consumo de álcool: consuma com responsabilidade e moderação
Contudo, o que nos alertas acima não fica dito, mas acaba por ficar implicitamente assumido, é que com a internet se perdeu a segurança das obras clássicas de referência, dicionários e enciclopédias que tiraram as dúvidas de gerações a fio sem sombra de vacilação, por muito hermético ou erudito que fosse o tema. Mas também nunca vira essa assunção testada até ter lido uma incursão de Norman Davies num livro seu, Vanished Kingdoms (abaixo - suponho ainda não saiu tradução portuguesa). O tema de base é apropriadamente erudito: o número de estados que, ao longo da história foram designados por Borgonha. Houve um erudito de Oxford do Século XIX, James Bryce (1838-1922), que enumerou dez (p. 91)! Norman Davies foi mais longe e, neste seu livro, identificou quinze (p. 143)! O mais interessante porém é a pesquisa que ele faz a partir daí…
Quantas Borgonhas aparecem referidas nas respectivas entradas nas tais obras clássicas que, sendo revistas por especialistas, não se prestam à falibilidade da Wikipedia? Começando por esta última, a entrada sobre a História da Borgonha (em inglês, o mais desenvolvido) está acessível através do hipertexto e, provavelmente por ser a mais flexivelmente actualizada, já menciona a própria lista de Norman Davies (§ 3). A consulta que este fez aos grandes dicionários revelou-se uma enorme decepção: o Oxford English Dictionary e o Webster’s American Dictionary em inglês, o Littré, o Robert e o Trésor de la Langue Française, no francês nativo da região em causa, têm uma perspectiva estática do assunto e remetem para um só estado borguinhão, o que no critério do investigador os qualificou com uma nota de um em quinze possíveis (1:15).
Nas enciclopédias obtiveram-se melhores resultados. Começando por The New Encyclopaedia Britannica, que recebeu uma nota boa (11:15), referindo-se a 11 dos 15 estados da lista de Norman Davies; o Nouveau Petit Larousse francês também não se portou mal (10:15); o Brockhaus em alemão ficou-se por uma nota medíocre (7:15) e os conhecimentos de polaco de Davies levaram-no à Wielka Encyklopedia Powszechna que obteve uma nota mediana (9:15). Por fim, a norte-americana Gazetteer of the World ia bem a meio da narrativa (5:15) quando foi desqualificada por ficção. Afinal, talvez a erudição das tais obras clássicas nunca tenha sido tão erudita como pensáramos... Talvez os nossos horizontes é que fossem mais limitados... Como conclui Davies, a internet tem obras de qualidade variável como qualquer outra biblioteca. 
Afastando os pensamentos maldosos, resta desejar que tantas alertas para com a fiabilidade da informação aparecida na internet e apresentada pela Wikipedia não sejam exibições de pedantismo nostálgico, mas sim sintomas de um novo patamar de exigência quanto ao rigor das fontes…

3 comentários:

  1. este é excelente, mas se não leu o livro do Davies sobre a 2ª guerra mundial na Europa (No Simple Victory, e até traduzido em português), vá lê-lo a correr.

    continue com o bem trabalho
    António Lino

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  2. Antes deste «Vanished Kingdoms», comecei por conhecer Norman Davies através de «The Isles: A History», depois li dele o monumental «Europe: A History» e ainda «White Eagle, Red Star» sobre a guerra entre russos e polacos de 1919-1920. Neste último livro, como historiador de conflitos militares, Davies não me impressionou particularmente. Aliás, sobre o livro que me aconselha, permita-me retribuir-lhe com uma ligação para uma recensão a seu respeito (http://www.independent.co.uk/arts-entertainment/books/reviews/europe-at-war-19391945-by-norman-davies-422637.html) onde a obra é zurzida de uma forma que me parece tecnicamente fundamentada…

    Embora as creia feitas com a melhor das intenções, o embaraço que se pode desencadear com recomendações de leitura assim feitas, sem se conhecer os gostos do destinatário ou as suas leituras prévias, é que o sugerente¹ pode cair na situação de estar a fazer recomendações a quem, não as solicitando, até as poderia dispensar. Agradecendo a intenção, naturalmente.

    Cumprimentos
    A.Teixeira

    ¹ Prefiro esta palavra, de um portuguesismo duvidoso, mas que transmite o activismo da sugestão, em vez da palavra sugestivo, em que esse processo é feito de forma passiva.

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  3. o Davies é sem dúvida polémico e certamente desigual, e pode-se não concordar com tudo o que ele postula - um dos defeitos é uma certa sobranceria em relação a colegas de profissão.
    Em qualquer caso, não estou aqui para fazer a apologia de qualquer autor.
    Reitero a continuação do bom trabalho
    António Lino

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