17 dezembro 2007

ATÉ À BATALHA DO CUITO CUANAVALE – 2

Em Angola e nos países com que faz fronteira, a evolução da situação nos 13 anos que vão dos finais de 1975 a 1988 (data da batalha) foi bastante mais complexa do que a que foi aqui descrita para Moçambique e o Zimbabué. Ali, era previsível que o vácuo de poder deixado pelos portugueses iria ser disputado militarmente, desta vez de uma forma mais convencional do que a guerra que se havia travado até então (1961-74), e vizinhos (África do Sul, Zaire*) e aliados ideológicos (Cuba) já ali andavam a assumir posições em defesa das respectivas facções ainda alguns meses antes da declaração formal da independência, mesmo tendo que o fazer de uma forma camuflada.
O historial e a capacidade militar daquelas três Forças Armadas intervenientes no conflito civil angolano era completamente distintos. As zairenses eram simplesmente medíocres e cedo foram afastadas, como adiante se verá. As sul-africanas tinham desenvolvido recentemente competências em acções de guerra contra-subversiva, em territórios sob a sua jurisdição (Sudoeste Africano**) e em apoio a rodesianos e portugueses. As Forças Armadas cubanas, muito pelo contrário, haviam nascido de um embrião formado pela insurreição da Serra Maestra e quase tudo na sua cultura valorizava o seu carácter revolucionário e as suas competências no domínio da subversão.

Ironicamente, com a vitória do MPLA na primeira fase (convencional) da guerra civil angolana e o reconhecimento internacional da República Popular de Angola por ele proclamada em Luanda, sul-africanos e cubanos viram-se na situação paradoxal de terem de travar uma guerra clássica de subversão e contra-subversão mas nos papéis inversos às funções para que se mostravam mais vocacionados… Aos cubanos, apoiando o governo central legítimo, competia estender o exercício da autoridade central às populações de todo o território; aos sul-africanos, apoiando a UNITA que desafiava essa autoridade central, competia subverter esse esforço…
Além de Angola, Moçambique e Zimbabué, as áreas de conflito estendiam-se para os países adjacentes, nomeadamente o Zaire* e o Sudoeste Africano**: era quase um traço identificativo do Bloco socialista na época apoiar todas as guerras de libertação e neste caso, na perspectiva angolana, juntava-se o imperativo ideológico ao benefício táctico de levar a subversão ao território inimigo. As organizações usadas pelos angolanos para esse fim eram a FNLC no Zaire e a SWAPO no Sudoeste Africano. A actuação da primeira organização, que já havia sido usada pelos portugueses contra o próprio MPLA, obteve resultados quase de imediato, a segunda, não.

Por duas vezes, em Março de 1977 e Março de 1978, duas invasões consecutivas de guerrilheiros da FLNC, com incentivo e apoio logístico angolano e cubano, à província meridional do Katanga (abaixo), demonstraram a completa incapacidade do exército zairense em os deter. Se as potências ocidentais demonstraram das duas vezes que não estavam na disposição de deixarem os angolanos interferirem nos seus interesses (da segunda vez, a França fez mesmo intervir a sua Legião Estrangeira na libertação da cidade mineira de Kolwezi), de qualquer modo, Luanda conseguiu obter dos zairenses o fim do apoio aos guerrilheiros anti-governamentais que se serviam do seu território para atacar Angola.
Se no Leste a resolução foi relativamente rápida, no Sul não o foi. O governo central viu-se numa situação muito semelhante à que fora vivida pelo governo colonial português que o antecedera, controlando os centros urbanos mas tendo imensas dificuldades em assegurar a mesma segurança nas zonas rurais. Aliás, comparando indicadores objectivos dos resultados da luta contra a subversão levada a cabo pelas forças armadas governamentais e pelo exército cubano contra as forças da UNITA, os resultados mostravam-se embaraçosamente inferiores àqueles que haviam sido obtidos pelo exército colonial português, que tinha disposto de muito menos meios…

Uma comparação entre a participação das Forças Armadas portuguesas e das Forças Armadas cubanas em Angola é muito menos descabida do que parece à primeira vista: as tarefas foram as mesmas (contra-subversão), a duração da sua participação no conflito muito aproximada, 13 a 14 anos (1961-74, 1975-89), e os efectivos envolvidos também (35 a 43 mil soldados metropolitanos no caso português, 35 a 40 mil no contingente cubano). Mas materialmente, a vantagem cubana era inquestionável: Angola e Cuba nunca sofreram dos condicionamentos de abastecimentos de material de guerra por parte da sua superpotência que haviam afectado os portugueses em África no seu tempo***…
Todavia, as forças governamentais angolanas nunca conseguiram reactivar o importante Caminho de Ferro de Benguela (CFB – acima), cuja protecção tantas preocupações causara aos portugueses enquanto fonte de receitas por canalizar boa parte do comércio externo da Zâmbia. E vale a pena recordar o valor de propaganda que foi atribuído à criação pelo PAIGC de uma capital alternativa na Guiné-Bissau em 1973 (Madina do Boé), comparando-a com a existência durante anos a fio de uma capital alternativa da UNITA no Sul de Angola (Jamba), onde até se realizavam congressos e era destino de visitas de deputados portugueses – foi ali que João Soares foi vitima de um grave desastre de avião…

Na segunda metade da década de 80, parecia que as duas partes em confronto já se haviam acomodado. Retrospectivamente, se os cubanos haviam sido preciosos para escorar o governo de Luanda na fase da declaração da independência e para o assistir na expansão da sua autoridade ao resto do território angolano, a sua assistência para a resolução da fase contra-subversiva da guerra tinha sido despicienda. Como os soviéticos (onde os cubanos iam buscar a sua doutrina) estavam então a descobrir no Afeganistão, não eram apenas as potências capitalistas que não descobriam soluções para derrotar guerrilheiros. Só que os próprios guerrilheiros de Angola também já quase nem pareciam guerrilheiros.
Definidas as regiões que cada lado controlava, a UNITA (acima) tinha-se sedentarizado. Essa é uma das explicações para ter havido uma batalha de Cuito Cuanavale. Ainda hoje não há certezas a quem atribuir a iniciativa da ruptura daquela espécie de tréguas tácticas que vigoravam no Sul de Angola. O que é seguro é que, em vez de serem evasivos e retirarem, como mandam os manuais de guerra subversiva, a UNITA e os sul-africanos resolveram responder simetricamente ao aumento de efectivos e meios feito pelos cubanos e pelos governamentais. O resultado acabou por ser uma batalha clássica, a segunda maior batalha de blindados de África, depois de El-Alamein, travada entre Setembro de 1987 e Fevereiro de 1988.

Quem venceu a batalha ainda hoje é discutível. Pode-se ler argumentos defendendo um lado e outro, ambos com forte conteúdo ideológico. Num critério mais objectivo, em termos de perdas humanas e materiais, os sul-africanos marcam pontos: as perdas do seu lado foram muito inferiores às do inimigo. Mas, na minha opinião, e dada a natureza do conflito que se travava, em termos políticos, ao escolherem travar aquela batalha os sul-africanos deram a vitória aos cubanos: justificaram retrospectivamente a presença deles em Angola que, de outro modo, terminaria penosamente… Cuito Cuanavale terá sido mais uma das inúmeras batalhas em que o resultado táctico difere do resultado estratégico…
* Actualmente República Democrática do Congo.
** Actualmente Namíbia
*** O material fornecido pelos norte-americanos a Portugal só podia ser usado na área NATO (Europa). É por isso que a maioria do material usado pelas FA portugueses era de origem francesa (viaturas Berliet, helicópteros Allouette III ou SA-330), alemã (G-3, viaturas Unimog) e mesmo italiana (caças Fiat G-91).

Acrónimos

FNLC – Frente Nacional de Libertação do Congo
MPLA – Movimento Popular para a Libertação de Angola
NATONorth Atlantic Treaty Organization
PAIGC – Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde
SWAPO South-West Africa People's Organisation
UNITA – União Nacional para a Independência Total de Angola

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