27 agosto 2008

ORADOUR-SUR-GLANE

Oradour-sur-Glane (há três povoações na região do Limousin que têm o mesmo nome de Oradour, distinguindo-se pelo curso de água que lhes passa próximo) é uma aldeia francesa situada a cerca de 25 km a Noroeste da cidade de Limoges. O destino dos seus habitantes durante a Segunda Guerra Mundial é um episódio cada vez mais esquecido, mas que permanece, ainda hoje, como um testemunho eloquente das consequências não só dessa Guerra, como de todas as guerras. Vale a pena contar aqui a sua História...

No seguimento do desembarque aliado na Normandia (6 de Junho de 1944) e do apelo dos Aliados à Resistência francesa para que esta dificultasse a progressão das unidades alemãs, um desses grupos clandestinos de guerrilheiros (conhecidos quando operavam em zonas rurais como maquis), organizou um golpe de mão em 9 de Junho em que se apoderou do Sturmbannführer SS (Major) Kämpfe e correu a notícia – que chegou naturalmente aos alemães – que os captores o pretendiam executar numa cerimónia pública.
A notícia, incluindo o local da suposta execução (Oradour-sur-Vayres, que fica a 28 km a Sul-Sueste de Oradour-sur-Glane) era falsa porque, como se veio depois a descobrir, Kämpfe fora executado pelos resistentes imediatamente depois da captura. Contudo, o oficial que ficou encarregue de investigar o caso, o Sturmbannführer SS Adolf Diekmann, pertencente à mesma unidade de elite de Kämpfe (a 2ª Divisão Blindada SS Das Reich - acima), acabou por confundir as duas localidades e conduziu o seu batalhão até Oradour-sur-Glane.

Estava-se a 10 de Junho de 1944, era um Sábado, fazia Sol, servia-se o almoço nos dois hoteis do centro da aldeia, o Hotel Abril e o Hotel Milord. Alguns citadinos, vindos de Limoges, andavam às compras daquelas provisões que tanto escasseavam naqueles tempos de racionamento. Mas, deixo o resto da descrição do que se passou a seguir para o trecho de introdução dos documentários da série O Mundo em Guerra (com a locução de Laurence Olivier):
Vindos desta estrada, num dia soalheiro de 1944… os soldados chegaram. Agora, ninguém cá vive. Ficaram apenas por umas horas. Quando partiram, a comunidade que aqui vivera por mil anos… morrera. Isto é Oradour-sur-Glane, em França. No dia em que os soldados chegaram, os habitantes foram reunidos. Os homens foram levados para garagens e celeiros, as mulheres e crianças foram levadas por esta estrada… e conduzidas… para esta igreja. Aqui ouviram os tiros enquanto os seus homens eram mortos. Então… também elas foram mortas. Algumas semanas depois, muitos dos que haviam matado tinha sido mortos por sua vez em combate. Nunca se reconstruiu Oradour. As suas ruínas são um memorial. O seu martírio representa os milhares e milhares de outros martírios na Polónia,… Rússia,… Birmânia,… China,… num Mundo em Guerra...*

O massacre fez 642 vítimas, com idades compreendidas entre os dezoito dias e os oitenta e cinco anos. Sobreviventes houve sete: uma mulher, cinco homens e uma criança. Valha a verdade que o episódio foi severamente condenado entre os alemães: o superior hierárquico de Diekmann, o Standartenführer (Coronel) Stadler mandou abrir contra ele um processo judicial. Mas a morte de Diekmann 19 dias depois do massacre, a derrota das tropas alemãs na Normandia e o veto de Hitler conduziram os resultados desse processo a nada. Só oito anos e meio depois do massacre (em Janeiro de 1953) é que o caso veio a ser julgado em tribunal, em Bordéus. Dos cerca de 150 a 200 participantes apenas 21 estavam no banco dos réus (abaixo). Além da ausência daqueles que haviam entretanto morrido (especialmente durante a Guerra), tanto a Alemanha Federal como a Alemanha Democrática haviam-se recusado a extraditar os seus nacionais envolvidos nos acontecimentos. E de uma forma que se revelava completamente paradoxal, dos 21 réus, havia 14 que eram franceses!

Tratava-se de franceses originários da Alsácia, a região que havido sido francesa desde os tempos de Luís XIV até 1871, que se tornara alemã entre 1871 e 1918, voltara a ser francesa de 1918 a 1940 e que novamente fora anexada pela Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. Os seus naturais (que habitualmente até falam um dialecto germânico) tinham-se tornado dessa forma cidadãos do Reich e foi assim que muitos se viram incorporados nas unidades militares alemãs – os chamados malgré nous**. O julgamento assumiu assim um carácter político de confronto entre duas regiões de França, com o Conselho de Guerra a pronunciar em Março de 1953 duas condenações à morte (uma de um alsaciano) e ainda doze penas de trabalhos forçados, seguidas de um enorme clamor de protesto na Alsácia, seguidas de discretos despachos administrativos comutando as penas, seguidos de outro enorme clamor de protesto no Limousin... Até aos últimos actos, o massacre de Oradour-sur-Glane nunca se libertou das suas contradições.
Ao contrário de Auschwitz, com cuja escala nem se compara, Oradour-sur-Glane é um memorial que pode transcender a evocação da Segunda Guerra Mundial. É que massacres como aquele podem ter tido lugar em muitos outros locais – quem se recordará hoje do que aconteceu em Kragujevac (Sérvia), Marzabotto (Itália) ou Kortelisy (Ucrânia)? – e em quase todas as Guerras: não poderão os próprios soldados franceses ter procedido posteriormente de uma forma idêntica em alguns locais da Indochina ou da Argélia? Em Oradour-sur-Glane, conhecendo-se a sua História, trata-se da guerra em todo o seu absurdo. Começando por questionar se aquela operação de rapto de um mero oficial superior, quando foi desencadeada pelos maquis, valeria militarmente o risco das previsíveis retaliações alemãs?... Continuando pela troca dos nomes das povoações feita por Diekmann que acabou por massacrar a aldeia errada… E terminando tudo com um processo de apuramento de responsabilidades que teve que ser suavizado por razões superiores de Estado…

* Down this road, on a summer day in 1944. . . The soldiers came. Nobody lives here now. They stayed only a few hours. When they had gone, the community which had lived for a thousand years. . . was dead. This is Oradour-sur-Glane, in France. The day the soldiers came, the people were gathered together. The men were taken to garages and barns, the women and children were led down this road . . . and they were driven. . . into this church. Here, they heard the firing as their men were shot. Then. . . they were killed too. A few weeks later, many of those who had done the killing were themselves dead, in battle. They never rebuilt Oradour. Its ruins are a memorial. Its martyrdom stands for thousands upon thousands of other martyrdoms in Poland, in Russia, in Burma, in China, in a World at War... ** A tradução da expressão, não literal, será apesar da nossa vontade. Note-se contudo que no total dos 642 mortos em Oradour-sur-Glane, se contam 9 pertencentes a 3 famílias alsacianas que ali se tinham refugiado por causa da guerra.

5 comentários:

  1. Não me parece que meu habitual :) qd quero de algum modo asinalar a leitura do post seja minimamente adequado agora. Não conhecia este "episódio". Estou arrepiada!
    O que eu aqui aprendo!

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  2. "assinalar"
    desculpe
    ah e a falta de vírgulas...

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  3. Este post, para além do seu conteúdo informativo e importantíssimo, como é hábito neste blogue, está escrito com uma sensibilidade e construído com uma habilidade e um rigor absolutamente arrepiantes. Obrigada pelas oportunidades que temos de ler estes textos.

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  4. Como sempre, acabo de ler o post com a sensação de que, num curto espaço de tempo, num pequeno texto, aprendi imenso, sensibilizei-me, revoltei-me e, sobretudo, fiquei à espera de mais.

    Por favor, compila todas estas informações históricas importantíssimas e ajuda-nos a aprender mais!

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  5. Estive visitando a França(vale do Loire) e alguns amigos me levaram até esta cidade proxima á Limóges.Fiquei realmente horrorizada com tudo o que vi Os nazistas não deixaram pedra sÔbre pedra... Nas ruinas da Igreja onde as mulheres e crianças foram assassinadas cruelmente(as portas foram fechadas e jogaram granadas)ainda existem marcas escuras de sangue no chão, o sino despencou sõbre o altar e ainda está no mesmo lugar.Na frente de cada casa(ou o que restou dela)tem uma placa com com os nomes e idade dos moradores...No final da vila(onde os homens foram fuzilados)ergueram um monumento com tudo o que restou do massacre roupas queimadas,brinquedos, um carrinho de bebê retorcido e me impressionou muito uma foto de um time de futebol com meninos alegres e felizes como qualquer rapazinho jovem...Realmente sei que jamais vou esquecer de tanta crueldade

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