18 novembro 2006

A ÁSIA ENTRE OS DOIS COLOSSOS DO FUTURO – 3

VIETNAME

Actualmente, a palavra Vietname costuma mais ser empregue noutro sentido do que o de identificar um país asiático, na Indochina. Assim como o idioma francês ainda guarda a palavra Beresina em alusão a um famoso episódio da campanha da Rússia que correu muito mal para as tropas de Napoleão (1812), como sinónimo sintético de uma colossal confusão de desfecho catastrófico, a palavra vietname tem, em muitos idiomas e não só no inglês, graças à globalização, um significado semelhante a uma grande trapalhada da qual não se sabe a maneira de pôr termo. E contudo, a palavra Vietname enquanto referência geográfica, tem apenas uns 200 anos. Uns 200 anos muito intensos, concorde-se, a que as vitórias obtidas nos últimos 50 contra três das potências mundiais (França, Estados Unidos e China) ainda mais dão destaque. Mas, para além do prestígio decorrente desses feitos, o Vietname, em todos os outros indicadores de desenvolvimento, tem um longo caminho a percorrer.

O Vietname pode ser descrito por uma extensa fatia irregular de terra de 1.650 Km. de extensão e com uma largura média de 200 Km, muito embora essa largura possa variar entre os 600 Km., a norte e os 50 Km., no centro do país. Devido ao seu formato, as costas são extensíssimas (quase 3.500 Km.) para a área total do país (331.000 Km2), que, além disso, tem três países vizinhos: a China (uma fronteira de 1.280 Km.), o Laos (2.130 Km.) e o Cambodja (1.230 Km.). Depois há um quase-vizinho, a Tailândia, cuja fronteira, em certos locais, fica apenas a 100 Km de território vietnamita. Os franceses do período colonial preferiam decompor o Vietname em três grandes regiões: de Sul para Norte, e por ordem da sua dominação colonial, a Cochinchina, o Aname e Tonquim. A primeira é composta essencialmente pelo delta do poderosíssimo rio Mekong (4.220 Km., desde o Tibete, o 10º maior rio do mundo em extensão e em débito, dos quais 220 Km. correm em território vietnamita) e a terceira pelo delta do rio Vermelho (510 Km. do seu curso em território vietnamita), onde se localiza o berço histórico da cultura vietnamita. Entre elas, o Aname, a região que, ligando aqueles dois extremos, lhes dava coesão, e onde, por isso, se localizava a capital imperial (Hué) e onde os franceses foram buscar a designação que empregavam para os habitantes da colónia durante todo o seu período de dominação: anamitas.

Mesmo fora das zonas irrigadas, o clima de monção permite colheitas abundantes, o que torna o país extremamente povoado, com 84,2 milhões de habitantes (2005), o que corresponde a uma fortíssima densidade populacional média de 250 hab./Km2. Entre 85 a 90% da população são vietnamitas propriamente ditos e habitam os deltas, as zonas costeiras e mais irrigadas, enquanto as minorias (estão identificadas mais de 50) foram empurradas para as zonas montanhosas mais inóspitas, num processo de expansão da maioria e assimilação das minorias que tem vindo a decorrer há séculos. Há minorias nas terras altas do Tonquim (a Norte) aparentadas com os lao do Laos e da Tailândia, misturadas com outras minorias étnicas que se podem encontrar na província chinesa de Yunão, enquanto que no Sul a minoria étnica mais numerosa é da dos khmer, aparentada com a população maioritária do Cambodja. Outra minoria relevante, também pelo seu significado político, é a chinesa, predominantemente urbana e que se encontra concentrada no Sul do país.

A religião maioritária é o budismo. Só que, ao contrário dos outros países da região (Cambodja, Laos, Tailândia ou Birmânia), a versão do budismo mais praticada é a mahayana, oriunda da China, que é a sua versão mais flexível, permitindo aos seus seguidores a convivência com outras práticas e preceitos éticos e religiosos. A minoria cristã, a qual é esmagadoramente católica, que se estima atingir actualmente os 5 milhões de crentes, é bastante antiga (desde o Século XVII) e enraizadamente nacional (substituindo-se aos missionários europeus, o clero foi desde cedo de origem local) apesar de ter sido protegida naturalmente pelos franceses durante o período colonial. Outra marca distinta da religiosidade no Vietname é a importância que atingem as confissões locais, com seitas conhecidas por Cao Dai e Hoa Hao a atingirem, respectivamente, 3 e 1,5 milhões de adeptos, combinando um sincretismo religioso de inspiração predominantemente budista com uma hierarquia rígida decalcada da existente na igreja católica.

Há uma certa distinção entre contar a História do povo que hoje se designa por vietnamita, e contar a do território onde hoje se situa o Vietname. Porque a primeira evolui sempre na sombra da grande potência do Norte, a China, enquanto que as regiões que hoje são o Aname e a Cochinchina, eram estados que se designavam no Século V da nossa era, nos primeiros relatos históricos existentes, por Champa e Funam, com as capitais com os nomes de Indrapura e Vyadhapura, nomes esses que os põem, evidentemente, debaixo da esfera de influência cultural indiana. Entretanto, logo no Século VI, os khmer, oriundos do curso médio do Mekong (onde fica o actual Cambodja) haviam conquistado o seu delta, destruindo o estado de Funam. Mas só quatro séculos mais tarde (no Século X), os vietnamitas aproveitaram uma ocasião propícia de perturbações internas na China, para se autonomizarem com o reino de Tonquim e começarem um processo de expansão que, vindo de Norte para Sul, se pode dizer que só terminou verdadeiramente em 1975.

De certa maneira a progressão e as conquistas que o reino de Tonquim vai obtendo sobre o reino de Champa, são também um símbolo de vitórias do modelo cultural e civilizacional chinês (com o budismo mahayana) sobre o modelo indiano (com o budismo theravada). A disputa entre os dois termina no final do Século XVII (1697), com a vitória final vietnamita. E começa a disputa pela Cochinchina, travada agora entre os vietnamitas e os khmer que a dominavam há mais de mil anos. No final do Século XVIII (1780) o estado vietnamita atinge os limites meridionais que hoje tem e o reino de Gia Long (1802-1820), com a capital em Hué, e o título de imperador reconhecido por Pequim (embora prestando-lhe vassalagem) é considerado pelos nacionalistas como a época do apogeu do Vietname. Pela primeira vez se ouve falar da palavra Vietname, correspondendo Viet ao nome do estado e Nam, Sul, em relação à sua localização geográfica, a Sul da China, bem entendido. Só que a época de apogeu também corresponde à época em que a vantagem tecnológica do Ocidente vai permitir às potências europeias uma capacidade de interferência nos assuntos asiáticos como nunca acontecera no passado.

Em 1840, num primeiro exemplo, o Reino Unido declarou guerra à China e venceu-a na Primeira Guerra do Ópio (1842). Por seu lado, a França envolveu-se na Cochinchina, a pretexto da acção dos seus missionários católicos, que acabou por transformar em colónia em 1862. O resto é fácil de adivinhar: em 1885, sob a forma de colónia ou de protectorado, todo o Vietname acabou sob dominação francesa. Esse estatuto só foi perturbado em 1940 com a intromissão do Japão que ocupou militarmente o país, embora deixando a administração civil a cargo dos franceses. Como o nacionalismo birmanês, também o vietnamita teve uma génese fortemente militarizada, embora na sua formação tenha havido uma contribuição de uma componente ideológica comunista muito mais forte, consequência da influência dos comunistas chineses.

E essa componente militar teve ocasião de se exprimir muito mais cedo do que no caso birmanês porque a disposição dos franceses para a negociação da concessão da autonomia ou da independência das suas colónias era muito mais restrita do que a disposição manifestada pelos britânicos. Também neste campo, na doutrina e nos métodos de condução da guerrilha que os nacionalistas vietnamitas desencadearam contra os franceses, a influência dos comunistas chineses se veio a tornar marcante. A ele, juntou-se mais tarde, em 1949, com a vitória final de Mao Zedong na Guerra Civil chinesa, o apoio logístico, enfraquecendo progressivamente a posição francesa, que ficou cada vez mais dependente da assistência norte-americana. A vitória do exército do Vietminh (o movimento nacionalista vietnamita) na batalha de Dien Bien Phu, em 1954, é apenas o corolário de todos esses acontecimentos, embora essa vitória tenha vindo a assumir um carácter simbólico desproporcionado em relação à influência na situação táctica no terreno.

Isso comprova-se facilmente pelas inúmeras cedências que os vencedores de Dien Bien Phu tiveram que fazer na mesa de negociações (1954), aceitando a divisão provisória do país em dois regimes até à realização de posteriores eleições democráticas em todo o país, tendo em vista a sua reunificação. Em suma, como no Norte existia um regime comunista, e no Sul um regime ditatorial conservador, a hipótese de eleições livres era remota e o desfecho mais provável era que viessem a existir dois regimes antagónicos, no mesmo modelo em que se dividira, e recentemente se reforçara a divisão, da península coreana. Para mais, é perceptível para quem conheça a história vietnamita, como a linha de fractura escolhida, se havia feito num local onde seria capaz de dar origem a duas sociedades distintas: há 800 anos de diferença a distinguir a antiguidade da vietnamização de Hanói, capital do Tonquim, da nova República do Vietname do Norte e antiga capital política da época colonial, de Saigão (actual Ho Chi Minh), capital da Cochinchina, da nova República do Vietname do Sul e antiga capital comercial do período francês.

Foi na defesa desta República do Vietname do Sul, mais mestiçada e onde se nota muito menos a influência cultural chinesa (embora paradoxalmente, fosse em Saigão que se concentrava a comunidade chinesa no Vietname…), que os Estados Unidos se envolveram num conflito que, começando numa guerra civil no Sul (o Governo contra o Vietcong), com os rebeldes apoiados descaradamente pelo Norte (1964-73), passou, depois da desistência dos norte-americanos, a uma invasão convencional do Sul pelo Norte (1974-75), numa reminiscência da expansão histórica de 800 anos dos vietnamitas. Mas os últimos episódios da guerra estavam guardados para 1978-79, quando o Vietname invadiu o Cambodja, depôs o seu governo, e reconstituiu a área de influência na Indochina que havia sido a da França, ao mesmo tempo que conseguiu depois travar uma invasão chinesa, num confronto militar breve de que se sabe muito pouco, apenas ter sido violentíssimo (56.000 mortos num mês!).

Em termos geográficos, na vizinhança de Cantão e da China meridional, que são um dos maiores pólos de desenvolvimento da economia asiática, o Vietname está muito bem localizado quando se pensa nas suas potencialidades de desenvolvimento económico. É comum falar das suas impressionantes taxas de crescimento mas há que contar com o atraso económico do Vietname em relação a muitos dos seus vizinhos, consequência da guerra e da década de estagnação que se lhe seguiu. Derrotar militarmente potências e superpotências também tem os seus custos em termos de isolamento internacional. No entanto, pela sua dimensão demográfica, o Vietname é o segundo maior vizinho da China (a seguir ao Japão), numa perfeita combinação de entendimento com os Estados Unidos: a estes interessa apoiar uma potência regional junto à sua grande rival do futuro e ao Vietname importa arranjar apoios para compensar a forte influência chinesa. Por alguma razão os vietnamitas substituíram o alfabeto chinês pelo latino no Século XVI e nunca mais deixaram de o usar desde aí…

3 comentários:

  1. Agradeço mais uma vez esta informação.

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  2. Mais uma vez os meus parabéns ao sr. professor pelos sempre excelentes posts! Merecem sempre ser lidos avidamente, o que faço com prazer!
    Ainda que mal te pergunte, alguma motivação especial para te inspirar esta série de posts? Talvez o actual encontro diplomático entre Índia e China, ou a enésima constatação do seu pujante crescimento económico e do papel preponderante que sem dúvida irão desempenhar no futuro xadrez mundial? Uma reflexão sobre o que foi, e o que poderá ser, a vida "entalada" entre esses dois colossos? E, já agora, irás também escrever sobre o Laos e o Cambodja (o Bangladesh talvez não se enquadre no teu conceito, juntamente com o pequeno Butão)?

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  3. Muito obrigado pelos comentários. Quanto à motivação, ela virá de uma embirração minha com os emparalhamentos automáticos que, justificados nuns casos, como Laurel e Hardy, não tem qualquer razão de existir noutros, como Carlos Lopes e Fernando Mamede.

    Ambos foram grandes atletas, corriam os 10.000 metros, mas um foi campeão olímpico e o outro recordista mundial - penso que ainda o é da Europa.

    E nos temas internacionais escuto vezes demais análises emparelhando China e Índia com a mesma leveza com que se associava outrora Lopes e Mamede...

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