06 novembro 2006

O NOSSO SIR HUMPHREY

Falho da existência em Portugal de uma carreira profissional que os levasse até aos lugares de topo da hierarquia do Estado (com pena, com muita pena do visado…) Bettencourt Picanço é a coisa mais parecida que existirá entre nós de semelhante a Sir Humphrey Appleby, o famoso burocrata que tudo emperrava nas saudosas séries de comédia política britânicas Yes, Minister e Yes, Prime Minister.
Escutar Bettencourt Picanço ontem à noite no programa Diga Lá, Excelência na televisão ou ler uma síntese da sua entrevista hoje no jornal é presenciar uma réplica quase perfeita da figura protagonizada pelo actor Sir Nigel Hawthorne na forma como se mostra, em cada resposta, obstrutivo a qualquer reforma concreta depois de enunciar sempre no início de cada um dos temas, uma concordância teórica à implementação das reformas.

Outra saudosa técnica que ontem vi ressuscitada é a de embrulhar as respostas a um tema delicado numa extensa, palavrosa e hermética torrente de palavras com o objectivo de deixar desgastado e desconcertado o interlocutor. Durante a entrevista verificaram-se alguns incidentes onde os jornalistas tiveram que pedir a Bettencourt Picanço que descodificasse a (extensíssima) resposta.
Num outro gag, também bastante engraçado, Bettencourt Picanço chegou a reclamar para o seu sindicato a virtude de andarem há doze anos a preconizar a reforma gradual da segurança social, como se a situação desta não se estivesse a agravar, fazendo lembrar aquela anedota das pessoas que têm deixado de fumar, porque também já andam há doze anos a tentar deixar de fumar por diversas vezes…

As grandes diferenças entre esta nossa cópia e o original estarão na falta de vontade da imprensa em justapor comparativamente os exemplares que Bettencourt Picanço (tão bem) representa aos dos políticos profissionais que ela costuma (e justamente) causticar e no facto do entrevistado poder vir a ficar aborrecido por apenas o considerarmos por desempenhar, em sério, o papel daquilo que Sir Humphrey é, em caricatura…

6 comentários:

  1. É o chamado discurso redondo a que os franceses chamam "langue de bois", falar para nada dizer, empatar jogo, ocupar o terreno, mastigar sem engolir.
    É típico das esquerdas do antigamente, cassetes estafadas cuja única curiosidade consiste na dúvida em que ficamos (?) quanto à convicção dos "artistas".
    Será que eles acreditam no que dizem?
    Contudo, (independentemente da qualidade dos jornalistas) não lembra ao diabo aquele título piroso e ridículo "Diga lá Excelência".
    Em verdade, quem faz tal convite não merece melhor que este ou outro Picanço...

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  2. O "langue de bois" também se aplica a estas circunstâncias?

    Normalmente tenho-o visto transposto para o idioma português - e mal, porque a metáfora "língua de pau" não tem entre nós qualquer significado aparente - no caso do discurso comunista clássico, inimaginativo e cheio de chavões de conteúdo vago - confirme-se mais abaixo no primeiro comentário ao poste "A RESISTÊNCIA E OS RESISTENTES ANTI-FASCISTAS"...

    No caso de Sir Humphrey ele fala para não ser percebido...

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  3. A "langue de bois" é, tanto quanto pude observar, a cassete, a repetição de frases feitas, enlatados que pouco ou nada têm a ver com a pergunta incómoda.
    É o que se diz quando não se pode deixar de responder. É a negação da evidência através de frases postiças, macaqueadas, decoradas e servidas em qualquer circunstância.
    É o que leva um jornalista a dizer a Georges Marchais:
    - Mas essa não foi a minha pergunta!!
    Ao que o impávido Marchais replica:
    -Mas é esta a minha resposta.

    Deliciosos camaradas...

    O discurso-Picanço poderá ter, de facto, um toque adicional de hipocrisia e de má fé, quando não só repete os enlatados como pretende baralhar os interlocutores com raciocínios capciosos.

    Já não será simples "langue de bois" mas sim "langue de vipère" ou manipulação servida com um sorriso de falsa bonomia.

    A análise destas subtilezas é apenas um exercício benigno de dialéctica...

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  4. Judite Sousa também fez com Cunhal o mesmo truque que refere com Marchais. Recebeu aproximadamente a mesma resposta acrescida de um comentário sobre a liberdade da jornalista fazer as perguntas que entendesse equiparada à liberdade do entrevistado dar as respostas que entendesse. A expressão de Judite Sousa transmitia visivelmente o "curto-circuito" que decorria por detrás dos seus olhos...

    Claro que não seria Judite Sousa a retorquir que não era a liberdade de responder que estava em jogo mas o teor da declaração (que não tinha nenhuma correspondência com a pergunta)...

    Há um álbum em que RanTanPlan se torna momentaneamente inteligente mas isso é mesmo BD...

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  5. Mais uma posta certeira. Está em grande forma, este blogue e o seu autor.
    Também fiz umas referências a este senhor, hoje, no RdM.

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  6. Já tinha lido o poste e o que nele invejei foi a capacidade de levar a sério as manobras de Bettencourt Picanço. É que eu só vejo nele um Humphrey Appleby...

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