13 outubro 2006

MAIORIAS DE ESQUERDA

Muito embora a história dos anos 60 do PCP ainda esteja envolta naquela opacidade que lhe é peculiar, é ainda assim possível deduzir como deve ter sido importante para o partido o trabalho na clandestinidade desenvolvido por Octávio Pato que, provavelmente por causa disso, apareceu em 1974 quando o partido se tornou legal, numa posição cimeira entre o conjunto de dirigentes comunistas de maior nomeada.

Contudo, de entre todos eles, deve ter sido aquele onde mais se notou a dificuldade de adaptação aos novos tempos, à necessidade de se expor e, sobretudo, à de falar em público. Octávio Pato ficava ainda mais nervoso do que o dirigente comunista médio, passava a língua pelos lábios para os humedecer como lhe haviam ensinado com uma frequência que transformava o gesto num tique e a caneta que segurava - adereço obrigatório em qualquer dirigente comunista quando fala em público - quase lhe voava das mãos…

Deixo a José Pacheco Pereira a tarefa de inventariar em próximo volume seu sobre Cunhal as hipóteses do que poderá ter estado por detrás da decisão do comité central do PCP em indicar Octávio Pato como candidato do partido ás eleições presidenciais de 1976. A nossa candidatura presidencial como diria muitos anos depois, noutras eleições presidenciais, Jerónimo de Sousa: como se, no cenário improvável de uma vitória, o colectivo do comité central se mudasse em peso para o palácio de Belém…

Regressando a 76, tornou-se depois patente que o PCP cometeu um erro político de monta ao disputar eleições presidenciais como de legislativas se tratassem, sob o slogan: Assim se vê a força do PC! ou apelando à racionalidade e à utilidade do voto, como se lê no cartaz em cima. No dia das eleições verificou-se que quase metade dos votos nos comunistas nas eleições legislativas realizadas dois meses antes se haviam transferido para Otelo Saraiva de Carvalho e a força que se estava a ver era uma humilhante votação de 7,5% em Octávio Pato e no PCP.

Em tudo isto não há como não sentir simpatia por Octávio Pato que, militante disciplinado, lá teve de falar para a comunicação social num auditório da Gulbenkian, em que toda a sua linguagem corporal transmitia o seu desconforto por se estar assim a expor, ainda para mais quando o seu partido tinha enfardado daquela forma e as perguntas se anunciavam difíceis. E, importa recordar, que entre os bordões linguísticos que o PCP usava naquela altura era a maioria de esquerda (PS + PCP) que tinha resultado das eleições legislativas de Abril de 1976.

Não posso jurar pelos antecedentes, mas suponho que um dos jornalistas terá provocado Octávio Pato, dizendo-lhe que a maioria de esquerda se havia desfeito naquelas eleições presidenciais ao que ele terá respondido que não. Como assim? E Pato, caindo na armadilha, explicou: os seus votos, mais os votos em Otelo, mais os votos de esquerda em Pinheiro de Azevedo e em Eanes - ou seja, a esquerda havia-se dispersado por todos os quatro candidatos concorrentes às eleições…- compunham a tal maioria de esquerda do povo português, tão querida – na altura - do PCP!

Se bem recordo, a explicação de Octávio Pato terminou abafada pelo clamor trocista da audiência. Coitado dele, a devoção à causa, mesmo em democracia, tinha outros desconfortos – preferíveis ainda assim! – do aqueles que tinha em ditadura… Mas, confesso, o que me fez lembrar este longínquo episódio de 30 anos, onde se invocam, a despropósito e de calçadeira em punho, maiorias de esquerda que não têm tradução sociológica foi o artigo de Vítor Dias de hoje no Público.

Sinta-se toda a nostalgia das maiorias de esquerda e das frentes populares contida no trecho em destaque do seu artigo:

A realização do anunciado referendo (sobre o aborto) colocará no primeiro plano da cena política uma arrumação de forças (PS, PCP, Verdes e BE de um lado, PSD e CDS do outro) que não tem qualquer correspondência com a arrumação que, infelizmente, se verifica nos outros grandes temas da vida nacional.

Adiantará dizer que o aborto deve ser uma das questões em que, consensualmente, não existe correspondência perfeita entre partidos e opiniões a seu respeito? Vale a pena mencionar Guterres no PS ou Pacheco Pereira e Rui Rio no PSD? Que, por causa disso, querer separar esquerdas e direitas a propósito da despenalização do aborto é um exercício canhestro? Que a hierarquia da actual representação parlamentar da esquerda é PS, PCP, BE e Verdes e não a que Vítor Dias usa?

De Vítor Dias, que já lá devia andar na Gulbenkian há 30 anos, deve poder dizer-se o mesmo que se dizia dos aristocratas franceses exilados por causa da revolução francesa quando regressaram a França depois de 30 anos de exílio: não haviam aprendido nada e não haviam esquecido nada… O ridículo nunca foi dos que viveram o antigo regime no seu devido tempo, é daqueles que o continuam a vivê-lo fingindo não se dar conta que entretanto houve uma revolução...

Três notas finais:
Uma, em antecipação, para os controleiros do PC que costumam aparecer cá no blogue, sempre por acaso, quando à procura de referências na blogosfera ao nome Vítor Dias. A referência a Octávio Pato é demonstrativa de apreço, embora ele se possa manifestar de uma forma pouco ortodoxa (eu sei que o conceito de falta de ortodoxia vos é estranho mas vão por mim…)

Outra para o blogue Tó Colante de onde retirei o cartaz de Octávio Pato, que agradeço e recomendo vivamente a visita.
Uma final, notando que, ao procurar fazer a ligação à pagina dos colunistas regulares no Público on-line (falhou, porque é pago...), reparei que lá faltam as figuras de Vitor Dias, Mário Pinto e Constança Cunha e Sá. E, na minha opinião, é de toda a justiça que qualquer um deles lá esteja...

3 comentários:

  1. Caro A. Teixeira:

    Sobre este seu «post», e creia que apenas com a boa e recta intenção de aprofundar o debate e colocar à disposição dos leitores mais elementos de informação e reflexão, permita-me as seguintes observações, tão curtas quanto me é possível:

    1.Quanto às presidenciais de 1976, gabo-lhe sem dúvida a capacidade de reconstituir certos elementos daquela época, mas saliento que, a meu ver, o seu texto (não era certamente fácil fazê-lo) omite algo de essencial para a compreensão daquelas eleições, ou seja, o contexto polítco que lhe era imediatamente anterior. E estou a referir-me designadamente ao 25 de Novembro de 1975, seja no que efectivamente mudou no curso da revolução seja naquilo que não mudou, embora houvesse sectores que queriam ir mais longe.

    2.Com isto quero sinteticamente lembrar que no PCP sabiamos à partida que a orientação do Partido traduzida na candidatura presidencial de Octávio Pato tinha aspectos muito ingratos e dificeis mas que era a única possível face à candidatura de Eanes (que já era apoiada pelo PS, pelo PSD e pelo CDS) e face à candidatura, com uma orientação completamente irresponsável e aventureira de Otelo Saraiva de Carvalho (para quem, é bom recordar-se, a eleição de Eanes representava o fascismo).

    3. Com a candidatura de Octávio Pato, o PCP, além de pretender na máxima medida possível afirmar a sua presença política autónoma, procurava não esgravatar nas feridas do 25 de Novembro e nas fissuras que se tinham cavado entre sectores militares democratas e antes, pela sua patente não hostilização de Eanes, favorecer uma reunificação ou pelo menos descida do nível de conflitualidade entre militares, tendo em conta que nessa altura já estava em vigor a Constituição da República, o que constituia um importante factor de estabilização e de defesa de avanços alcançados.

    4.Confirmando que «já lá andava» (na Gulbenkian) no dia da votação, não hesito em manter a opinião que aquilo a que chama «uma humilhante votação de 7,5% em Octávio Pato e no PCP» foi muito mais importante para o futuro e mais durável que os 18% recebidos por Otelo ( que nas presidenciais seguintes teve para aí um virgula qualquer coisa ou dois por cento, no quadro de um percurso que descrevi num esquecido opúsculo assinado por Vítor Caetano e intitulado «Otelismo- o que é ?»).

    5.Já quanto às «maiorias de esquerda» e outras linguagens da época, a verdade é que naquela época ainda se prolongava o estranho (ou, bem vistas as coisas, talvez não) fenómeno de a linguagem estar muito mais à esquerda do que a realidade política objectivamente considerada.Dou-lhe dois exemplos: um é que durante os acontecimentos do 25 de Novembro, os comunicados saidos da Presidência da República e escritos pelo (Ten-)Coronel Ferreira da Cunha tratavam sempre os «nove» e os seus aliados como «revolucionários» e a esquerda militar era tratada como
    «os contra-revolucionários»; e o outro é que, na sua célebre declaração na noite de 25/11, o que Melo Antunes veio dizer foi que o PCP era «uma força indispensável para a construção do socialisno» (repare: do socialismo, quando pelos olhos de hoje se perceberia melhor que tivesse dito da «democracia»).

    6. Sinceramente não vejo nenhuma razão para que da citação que faz do meu artigo no «Público» me atribua saudades ou nostalgias das «maiorias de esquerda» ou das «frentes populares». O que nem você nem ninguém pode esperar é que eu festeje a patente convergência de políticas entre o PS e a direita que, aliás, tantos comentadores não comunistas têm anotado e registado. Acrescento ainda que você citou o «destaque» feito pelo «Público» e já agora talvez valha a pena os visitantes deste blog conhecerem o parágrafo integral que eu escrevi e que, talvez cansativamente, reza assim :" a realização deste anunciado referendo, colocará pelo menos durante mês e meio no primeiro plano da cena política uma arrumação de forças (PS, PCP, Verdes e BE de um lado, PSD e CDS do outro) que não tem qualquer correspondência com a arrumação que, infelizmente, se verifica nos outros grandes temas da vida nacional e sobretudo nos que mais atingem os trabalhadores e a maioria dos portugueses (e onde é patente que PS, PSD e CDS, com mais ou menos fitas e simulacros, estão de um lado e PCP, Verdes e BE estão do outro)".

    7.Por fim, mas talvez devesse ter sido o 1º ponto, você parece não ter reparado que eu falei da «arrumação de forças» a respeito
    da despenalização do aborto e no provável referendo. Não estava a falar da arrumação das pessoas porque nesse âmbito sei perfeitamente qe há pessoas que não seguirão a orientação dos seus partidos e, por outro lado, também não quis reduzir esta batalha eleitoral aos partidos. E se não tenho razão diga-me então o A. Teixeira como é que se posicionaram e intervieram as forças políticas no referendo de 98 ? E como é que , com toda a probabilidade, se vão posicionar desta vez ? A resposta só pode ser a de que,com toda a probabilidade, será exactamente segundo o quadro que eu tracei no meu artigo. É certo que tanto Marcelo Rebelo de Sousa como até Marques Mendes andam para aí repetidamente a fazer a rábula que o PSD dá liberdade de voto ou que em 98 não fez campanha pelo «não».Mas isso são histórias da carochinha pois em 98 eu bem vi, na noite dos resultados e já madrugada adentro, o Marcelo na televisão a festejar a vitória, ainda que tangencial, do «sim».

    Desculpe a extensão do texto, mas há coisas que não se podem discutir só com «soundbytes».

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  2. Caro Vítor Dias:

    Dirijo-me a si, tomando-o como o autor do artigo hoje publicado no Público que tive oportunidade de comentar no meu blogue, e permita-me fazer esta ressalva porque infelizmente já me deparei com casos aparentados envolvendo textos idênticos assinados por pseudónimos distintos, começando por lhe agradecer a delicadeza da sua resposta bem como os argumentos e explicações nela contidos.

    Comungando das mesmas intenções que nela manifesta, de aprofundar o debate e colocar à disposição dos leitores mais elementos de informação e reflexão, permita-me comentar o seu comentário, agora necessariamente num registo bem mais sóbrio do que aquele que empreguei no meu “post”, procurando seguir a estruturação que lhe deu.

    1 e 2. Não era minha intenção, porque o tornaria ainda mais extenso, fazer a discrição no meu “post” do ambiente político da época. O meu foco de atenção foi, confessadamente, a noite eleitoral e o mau bocado porque passou Octávio Pato. Mas, se o tivesse feito, dificilmente compartilharia a opinião que exprime quanto à situação política geral, nomeadamente quanto ao aventureirismo e irresponsabilidade da candidatura de Otelo Saraiva de Carvalho. Não que não concorde consigo actualmente, tenho é dificuldade de acompanhar a presciência que já lhe permitia a si compreender isso tudo logo na altura. E, deixe-me dizer-lhe, não votei Otelo.

    3. Claro que me apresento em desvantagem consigo quanto ao conhecimento do processo de decisão que levou à escolha de Octávio Pato como candidato, facto que, curiosamente, apresenta como adquirido no ponto 3 do seu comentário. Nem sei até que ponto já naquela faria parte do núcleo decisor do partido, nem espero que me esclareça sobre isso, mas perceba que, do exterior, ficam as interrogações. Vasco Gonçalves é a figura que fica claramente excluída da análise que apresenta, mas porque não Álvaro Cunhal em pessoa? Porque não um democrata próximo de vós? Desculpar-me-á, a situação não se afigurava brilhante, mas mantenho que houve uma má escolha de candidato (fechando-o para dentro do partido) e uma má passagem de mensagem para o eleitorado e os resultados demonstraram-no.

    4. A sua análise dos resultados é correcta desde que estivesse a ser feita em Dezembro de 1980, com a reeleição de Eanes e a desforra do PCP sobre Otelo. Eu estou a descrever o ambiente em Junho de 1976 onde, se já lá andava, devia estar com a cachola de todo o tamanho ao ver o candidato do seu partido receber sensivelmente metade dos votos que o seu mesmo partido recebera dois meses antes. Eu bem sei que se tornou tradicional durante muito tempo – até se tornar ridículo – que nenhum partido – e o PCP não foi excepção nisso, muito pelo contrário - reconhecesse a derrota à frente das câmaras de televisão, mas isto é um blogue e já lá vão 30 anos, Vítor Dias…

    5. Se já tiver lido outros posts do meu blogue e tendo eu já lido alguns dos seus artigos de opinião, podemos perceber que a leitura atenta da história ensina-nos que as épocas acabam por criar a sua própria semântica. As situações só se tornam cómicas quando a semântica empregue já está desajustada da realidade a que se referem: quando se fazem apelos a operários e camponeses e os trabalhadores do sector de serviços já estão em maioria na sociedade ou a simbologia dos soldados e marinheiros esquece que já existe o ramo da força aérea… E a comicidade naquela situação era que, visto da vossa perspectiva, o resto da esquerda para formar a maioria era o PS dirigido por Mário Soares… E, mais adiante, veremos como, na minha opinião, quem dirige o quê é muito importante…

    6. Creio que o parágrafo que citei, que resulta da selecção feita pelo próprio jornal, não desvirtua as suas afirmações no corpo do artigo. E se puder eleger uma palavra que possa simbolizar a nostalgia a que me refiro, seria o “infelizmente” de
    (…) uma arrumação de forças (…) que não tem qualquer correspondência com a arrumação que, infelizmente, se verifica nos outros grandes temas da vida nacional (…) . Sinceramente, se desta descrição não consegue compreender como eu posso associar o seu texto a uma nostalgia por uma maioria de esquerda, não tenho mais meios para o fazer.

    7. No aspecto da despenalização do aborto que foca, vale a pena assumirmos as nossas divergências quanto à forma de ler a situação. A discordância, na minha opinião, não incide sobre aquilo que designa como “arrumação das forças” nem sobre as perguntas que me coloca e a que se encarregou de responder com respostas com que concordo. Só que, na minha perspectiva, o resultado do referendo de 98 foi que as “forças” mesmo que arrumadas demonstraram não ter “força” nenhuma. Para mim, o resultado sintetizado foi que, em 6 portugueses, 1 disse que sim, 1 disse que não e 4 nem se incomodaram a lá ir… Costuma atribuir-se a Guterres a responsabilidade de no PS não se ter feito força nenhuma – aqui está um caso de alguém que, individualmente, pode ter contribuído para o desfecho… - mas a dinâmica no PSD não me parece ter sido melhor, mau grado o entusiasmo de Marcelo que refere – ele teria preferido que o referendo tivesse aquele resultado E tivesse uma taxa de afluência que o validasse…

    É que os eleitores por vezes não reagem aos estímulos das forças. Lembra-se de Junho de 76? Como vê pela dimensão da resposta, esteja à vontade quanto a extensões de textos e aceite um abraço

    A.Teixeira

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