03 junho 2015

CINCO CAMINHOS DISTINTOS PARA A PRESERVAÇÃO DA NEUTRALIDADE

Acabei por descobrir que, quando se debate a questão das neutralidades durante a Segunda Guerra Mundial é útil relembrar um truísmo: o de que num grande conflito com aquelas características só conseguiram permanecer neutrais os países que o conseguiram, não os que o desejaram e o proclamaram. Basta vermos uma lista dos países beligerantes da última Guerra (1939-45) para nos apercebemos do impressivo número de países europeus que se viram arrastados para ela, apesar das mais veementes profissões de neutralidade: Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Dinamarca, Noruega, Grécia, Bulgária, etc. Ter permanecido neutral é assim considerado como uma demonstração de sucesso histórico em qualquer dos cinco países que conseguiram tal estatuto, com a notável excepção portuguesa. A Segunda Guerra Mundial acabou há 70 anos, período a que se seguiram 30 de encómios pela habilidade da acção de Salazar, até ao derrube do seu regime em 1974, a que se seguiram outros 40 de críticas e desvalorizações da conduta portuguesa durante o conflito. Creio que já vai sendo tempo de se ser razoável.

É evidente que, adoptando o ponto de vista da historiografia do pós-Guerra e de entre os cinco países que permaneceram neutrais, os mais antipáticos são as duas ditaduras ibéricas. Mesmo aí, a Espanha é para ser considerada pior que Portugal. Se, quanto aos dois blocos em conflito, do ponto de vista dos interesses estratégicos de ambos, as suas posições eram equívocas (mais a espanhola do que a portuguesa), não haveria dúvidas sobre o sentido das suas simpatias ideológicas, completamente enviesadas para o Eixo. Mais do que isso, no caso espanhol havia um passivo por saldar em relação aos dois grandes países (Alemanha e Itália) que o constituíam por causa do apoio recebido durante a Guerra Civil de 1936-39. De facto, a neutralidade espanhola teve muito mais de circunstancial do que aquilo que os adeptos do determinismo histórico gostarão de admitir. Se os resultados militares sobre os céus de Inglaterra se apresentassem mais favoráveis para a Luftwaffe no Outono de 1940, talvez Franco pudesse ter decidido de outra forma. Se Hitler tivesse outra disposição para com as ambições coloniais em África da Espanha (feitas a expensas da França), talvez Franco pudesse ter decidido de outra forma. Se Hitler não tivesse assinado o Pacto com Estaline em 1939, talvez Franco tivesse feito outra avaliação do líder alemão e pudesse ter decidido de outra forma. Sobretudo, se os espanhóis fossem menos espanhóis, e tivessem uma imagem mais realista da sua real importância no xadrez político europeu e talvez Franco pudesse ter decidido de outra forma. A conjugação de tudo isso, muito mais do que a habilidade de persuasão de Salazar sobre Franco, como sugeriu a propaganda posterior do nosso Estado Novo, fez com que a Espanha não se engajasse formalmente na Guerra. Do ponto de vista alemão, e se os espanhóis não se mostravam dispostos a dar esse passo, o status quo vigente era-lhes suficientemente vantajoso para que não valesse a pena rompê-lo por sua iniciativa, ocupando-o. Este foi um padrão de comportamento dos alemães tão válido em Espanha quanto na Suécia ou na Suíça, os três dos cinco países neutrais que estavam ao alcance directo das armas da Wehrmacht. Para mais, Hitler, que sempre valorizou os precedentes históricos nos seus processos de tomada de decisão, terá recordado o que acontecera aos exércitos napoleónicos de ocupação na Espanha dos primórdios do Século XIX.


E, por muito que a evidência nos melindre, o destino de Portugal estava indissociavelmente ligado ao que viesse a acontecer em Espanha. Enquanto Irlanda, Suécia e Suíça estavam geograficamente isoladas para resolver o problema da preservação da sua neutralidade por si sós, com as suas características autónomas, Portugal e Espanha eram o único cluster de neutrais, em que essa preservação era interdependente. Sem a predilecção que Adolf Hitler mostrava pela evocação da História, Salazar também saberia quais as lições a extrair dela: nunca haveria processo satisfatório da Alemanha ocupar directamente em Portugal sem a colaboração espanhola, como ficara aliás demonstrado durante o período napoleónico. Havia que evitar a todo o custo que a diplomacia alemã cravasse uma cunha entre os dois países, assinando o Pacto Ibérico mas sobretudo lembrando à Espanha que a cumplicidade em tal manobra lhe custaria certamente o estatuto de neutralidade por parte dos adversários da Alemanha. Era convicção de Salazar que, se os alemães entrassem na península, fosse a convite espanhol ou forçando a mão, as possibilidades de Portugal preservar a neutralidade com os alemães em Espanha tornar-se-iam praticamente nulas: ou Portugal se tornava num país-satélite do Eixo (uma Hungria) ou então tornar-se-ia em mais dos países ocupados (uma Grécia). Isto para a parcela continental, porque os seus três arquipélagos do Atlântico Norte (Açores, Cabo Verde e Madeira) iriam ser certamente disputados pelas potências beligerantes.

A questão do Portugal atlântico era o outro grande problema de Salazar. Não haviam os britânicos ocupado a Islândia (então dinamarquesa) em Maio de 1940, respondendo à ocupação da Dinamarca pelos alemães no mês anterior? E não haviam os norte-americanos ocupado a Gronelândia em Abril de 1941, oito meses antes da sua entrada na Guerra? Nos dois casos o Reino Unido e os Estados Unidos haviam-se mostrado muito ciosos do controle do espaço Atlântico, capazes de acções preventivas para preservar esse controle. No caso dinamarquês, os alemães haviam-se antecipado e ocupado a própria Dinamarca o que servira de justificação para a ocupação pelos Aliados das suas possessões atlânticas (Islândia e Gronelândia). Evitar que isso se repetisse em Portugal era o primeiro dos problemas de Salazar. O segundo dos problemas de Salazar era que o mesmo desfecho tivesse lugar, sendo as ocupações feitas pela ordem inversa: os anglo-saxónicos podiam ocupar primeiro os arquipélagos atlânticos e era isso que serviria de justificação para os alemães ocuparem o território continental. Conversações havidas no Rio de Janeiro entre norte-americanos e brasileiros para que entre essas eventuais forças de ocupação (dos Açores) houvesse um contingente brasileiro que, pela irmandade da língua, minorasse o impacto do gesto, só impressionavam em Lisboa pela ingenuidade; de resto, assustavam. Quando Salazar se decidiu finalmente a assinar um acordo com os britânicos, cedendo-lhes posições nos Açores, a tendência do desfecho da Guerra já era nítida. Os seus contornos rebuscados, invocando a (mais velha) Aliança agradarão às minúcias jurídicas de Salazar mas nada daquilo resistiria a um daqueles bons ultimatos de 48 horas de Adolf Hitler, fossem outras as circunstâncias. Em Agosto de 1943 os aliados acabavam de ocupar a Sicília e os soviéticos haviam terminado de vencer a batalha do Kursk. Mas ainda havia suficiente indefinição política para que o gesto de Salazar tivesse significado e reconhecimento: para comparação refira-se que só nesse mesmo mês é que os Estados Unidos e a União Soviética reconheceram estatuto ao CFLN (Comité Francês de Libertação Nacional) gaullista, que havia sido criado em Londres três anos antes!

É engraçada a pretensão de moralidade daquelas duas potências na forma como criticaram posteriormente à Guerra a conduta de todos os países que conseguiram permanecer neutrais, pelo egoísmo demonstrado por eles em preservar os seus interesses particulares em detrimento da segurança colectiva da Europa que a ascensão da Alemanha fazia perigar. É verdade que é a elas duas – União Soviética e Estados Unidos – que se deve primordialmente a vitória final no conflito, mas esse reconhecimento não nos pode fazer esquecer que, factualmente, ambas permaneceram neutrais o mais que puderam (dois anos a dois anos e meio) e que só entraram na Segunda Guerra Mundial quando foram arrastadas para o efeito, com a operação Barbarrossa e com o ataque a Pearl Harbour.

A Suécia terá sido, dos cinco países neutrais, o único em que não se personalizou numa única pessoa a condução política do país pelos caminhos tortuosos da neutralidade. A tarefa terá ficado dividida entre o primeiro-ministro social-democrata Per Albin Hansson e o rei Gustavo V. A contribuição e a importância de cada um dependerá da perspectiva de quem observa. É verdade que a Suécia era uma monarquia constitucional e que as responsabilidades recaíam todas no executivo e em que o chefiava mas também é verdade que a aristocracia sueca era, por norma, germanófila, de que um exemplo emblemático fora a primeira esposa de Hermann Göring, Carin. É razoável sintetizar que a pessoa do octogenário Gustav V, que subira ao trono em 1907, aportava à política externa sueca um capital de respeitabilidade que Hansson devia considerar muito bem-vindo.

Há que reconhecer que as opções em aberto para a conduta da Suécia a partir da Primavera de 1940 eram escassas. A Alemanha ocupara os outros dois países escandinavos (Dinamarca e Noruega) e a União Soviética fizera o mesmo com os três países bálticos (Estónia, Letónia e Lituânia). Os contactos marítimos de Estocolmo com o resto do Mundo passavam pelo Øresund (com 4 km de largura no seu ponto mais estreito), com a Wehrmacht posicionada do outro lado. Na península escandinava, ao contrário do que se passava na ibérica, a geografia permitia que a Alemanha pudesse ocupar o país da fachada atlântica (Noruega) sem precisar da conivência do seu vizinho. Claro que o reabastecimento logístico posterior do exército alemão seria muito mais facilitado se a Suécia, deixando-se de uma prática rigorosa da neutralidade, desse mostras de uma certa compreensão, o que veio de facto a acontecer. Toneladas de equipamento e munições e sobretudo muitos milhares de soldados da Wehrmacht em licença atravessaram regularmente o território sueco em comboios que, por serem cuidadosamente monitorizados pelos suecos, não deixavam por isso de ser violações flagrantes da neutralidade sueca. A forma como cada país escandinavo avaliou o comportamento dos seus dois outros parceiros durante a Guerra pôde ser avaliada em 1949, quando da formação da NATO: Dinamarca e Noruega aderiram, deixando a Suécia isolada na sua decisão de querer continuar a manter a neutralidade no Báltico durante a Guerra-Fria.

A ameaça dissuasora de Estocolmo em destruir as infra-estruturas das suas minas de ferro do norte que se revelavam muito convenientes, quase indispensáveis, para o esforço de guerra alemão, não teria produzido grandes efeitos de dissuasão se não houvesse garantias do outro lado que a conduta sueca seria cooperante para com a Alemanha sob o status quo que se acabara de formar na Primavera de 1940. Outra atitude da parte da Suécia teria provocado a guerra e a ocupação. Há uma estranha capa de opacidade em relação à Suécia de 1939-1945 e às formas como evoluíram as simpatias da sua opinião pública. Em 1945, não se sabe bem como, a germanofilia tradicional das suas elites havia desaparecido, o nacional-socialismo e as organizações fomentadas pelos alemães haviam tido apenas uma influência marginal na sociedade e é um trabalho laborioso tentar saber quantos voluntários suecos se apresentaram para combater nas Waffen-SS ou na Wehrmacht.
De todos os neutrais, a Suíça tinha a posição geográfica mais ingrata, a partir de Junho de 1940 ficara rodeada por todo o lado de entidades políticas pertencentes ou dependentes do Eixo. E uma situação administrativa peculiar. A situação internacional conferira um conjunto de poderes centrais extraordinários a um chefe militar, Henri Guisan, anormais num país que tradicionalmente os distribui pelas autoridades dos cantões da Confederação. Em fundo, havia a famosa neutralidade suíça, proclamada originalmente em 1516 e que fora galhardamente preservada até à Primeira Guerra Mundial (1914-18). Era um slogan, nem sempre verdadeiro. Na realidade, desde 1798 até ao fim do período das guerras napoleónicas em 1815, essa neutralidade fora pura e simplesmente esquecida pelos franceses. E podê-lo-ia voltar a ser facilmente, desta vez pelos alemães e por uma maioria de razão: uma ampla maioria (quase ¾) dos suíços era germanófona, o que viria a propósito do programa de quem se propusera reunir todos os alemães no mesmo Reich.

Nem de propósito, Henri Guisan pertencia à minoria francófona da Suíça. Era protestante. E politicamente seria de um conservadorismo musculado que não o distinguiria por aí além de Philippe Pétain. Mas as expectativas sobre Guisan e sobre o comportamento da Suíça eram muito menores do que as que se depositavam, de um lado e outro, sobre a França de Vichy. De uma Suíça economicamente muito aberta para o exterior e muito dependente dele (vale a pena recordar que a Suíça de então era conhecida por ser o maior produtor mundial de relógios – e que precisava de os exportar...), o que mais se lhe podia pedir – do lado dos Aliados – é que ela fosse o mais neutral possível. O critério de avaliação do comportamento dos suíços durante a guerra tem por isso que ser temperado. Aquilo que noutros países é considerado de uma neutralidade elementar, no caso da Suíça tem que ser valorizado doutro modo. As disputas a respeito dos direitos de circulação ferroviária entre a Alemanha e a Itália são um desses exemplos. A capacidade negocial da Suíça estava tolhida pela capacidade recíproca dos seus interlocutores em facilitar-lhe a ela o acesso a portos marítimos para o seu comércio externo com países terceiros.

Sendo o país politicamente neutral, os números do comércio externo da Suíça desses anos desmentem essa neutralidade do ponto de vista económico, fazendo da Suíça quase um satélite do Reich, produzindo para o seu esforço de guerra. Mas isso é compreensível, sendo a contrapartida de não o fazer o desemprego de uma boa parte da população vocacionada para dispersar a sua produção industrial para mercados que agora estavam fora de alcance. Muito menos compreensíveis seriam as transacções financeiras em que a Suíça reforçou o seu papel de plataforma central das menos transparentes. Em tudo isto, a importância de Henri Guisan vem a revelar-se muito mais simbólica que efectiva. Mas o Comandante-Chefe dos exércitos suíços foi precioso para lhes conferir a credibilidade de dissuasão suficiente para que os alemães não pensassem que a invasão da Suíça seria uma espécie de um Anschluss (anexação da Áustria) um pouco mais musculado

Ao contrário dos quatro casos anteriores o maior – senão mesmo o exclusivo – problema da preservação da neutralidade da Irlanda era o Reino Unido. Apresentado de uma forma prosaica, não se punha a questão dos irlandeses simpatizarem particularmente com os alemães – ainda na Grande Guerra precedente quase 50.000 irlandeses haviam perdido a vida combatendo-os – a questão é que os irlandeses detestavam ainda mais os britânicos que haviam sido a potência colonial na Irlanda até 1922. Houvera uma guerra civil e uma partição da ilha e muito ressentimento que os poucos anos transcorridos não apagaram.

A compreensão britânica quanto à atitude irlandesa era profundamente negativa e, se possível, só piorou quando Churchill se tornou primeiro-ministro em Maio de 1940. A Irlanda era um Domínio, fazia parte da Commonwealth e para um velho imperialista como Winston Churchill era um axioma que os problemas da Metrópole eram os problemas do Império. Se o Canadá, a Austrália, a África do Sul ou a Nova Zelândia haviam declarado guerra à Alemanha porque não o fizera a Irlanda? Eamon de Valera, o primeiro-ministro irlandês responder-lhe-ia que a questão não tinha nada a ver com a Irlanda.

E podia fazê-lo sem o receio das retaliações que abundavam no continente. A Irlanda era uma democracia, reivindicando-se dos mesmos valores pelos quais o Reino Unido dizia bater-se e seria um verdadeiro desastre de imagem se os britânicos forçassem de alguma forma violenta os vizinhos a alinharem-se numa posição externa de que o seu governo legítimo se havia distanciado. Por isso, ao contrário de uma Suécia, de uma Suíça e mesmo de um Portugal que teve que reforçar os contingentes militares nos seus arquipélagos atlânticos, a Irlanda pôde atravessar toda a Segunda Guerra Mundial sem precisar de investir num dispositivo militar que desse mais credibilidade à sua neutralidade.

Mas aquilo que não se podia fazer ostensivamente, podia fazer-se por omissão: o Reino Unido, que, como antiga potência, controlava praticamente todo o comércio externo da Irlanda, votou os irlandeses a uma verdadeira autarcia económica, apenas privilegiando aquilo que a Irlanda produzia e que conviria ao seu esforço de guerra. Para um país geograficamente afastado da guerra as carências de alguns artigos importados por que os irlandeses passaram durante esses anos assemelhavam-se às sofridas pelos habitantes dos países ocupados.

2 comentários:

  1. Uma excelente dissertação. Parabéns. Gostei muito.

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  2. Obrigado. Mas suspeito que o conteúdo seja um pouco exigente demais para o meio onde foi publicado. Ainda agora lhe adicionei mais duas imagens para evitar que o texto fique um pouco sorumbático demais.

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